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Tomografia computadorizada multidetectores não-contrastada na avaliação do abdome agudo: um novo paradigma no pronto-socorro?

EDITORIAL

Tomografia computadorizada multidetectores não-contrastada na avaliação do abdome agudo: um novo paradigma no pronto-socorro?

Marcos Roberto de MenezesI; Fernando Uliana KayII

IMédico Assistente, Chefe do Serviço de Radiologia de Emergência do Instituto de Radiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

IIMédico Preceptor do Departamento de Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Historicamente, e quase de forma dogmática, a série radiográfica do abdome agudo foi utilizada como ferramenta diagnóstica universal na avaliação dos pacientes com dor abdominal aguda nos diversos departamentos de emergência do mundo. Há certa resistência, por parte tanto de radiologistas quanto de cirurgiões, em emitir um parecer sobre qualquer caso em que não tenha sido obtida uma série radiográfica do abdome. Na contramão dessa linha de pensamento, surgem trabalhos científicos atuais questionando este paradigma: será a radiografia simples ainda necessária na era da tomografia computadorizada (TC) multidetectores? Diversos estudos vêm mostrando que a TC, combinada com o exame físico e os exames laboratoriais, confere importantes informações diagnósticas nos casos de abdome agudo admitidos no pronto-socorro. O abdome agudo é definido como uma síndrome caracterizada por dor abdominal difusa de início repentino, que necessita de intervenção médica de urgência, clínica ou cirúrgica(1–4). O diagnóstico etiológico é de extrema importância, uma vez que o atraso na sua determinação pode resultar em tratamento tardio, com conseqüente piora do prognóstico do paciente. O diagnóstico diferencial do abdome agudo inclui grande variedade de doenças, que muitas vezes confunde os clínicos e cirurgiões.

De maneira geral, sabe-se que o diagnóstico clínico-laboratorial é inespecífico, de modo que a realização de procedimentos invasivos, como laparotomias exploradoras, fosse preconizada em grande número de casos. Uma razoável parte desses procedimentos acabava por revelar doença de tratamento não cirúrgico (laparotomias "brancas"), valorizando a importância em se desenvolver métodos menos invasivos de diagnóstico. Dombal, realizando revisão da literatura, chegou a um número de 10.682 casos de dor abdominal aguda, com causa indeterminada em 34%, apendicite em 8%, colecistite aguda em 9,7%, obstrução do intestino delgado em 4,1%, doença ginecológica em 4,0%, pancreatite aguda em 2,9%, cólica renal em 2,9%, úlcera péptica perfurada em 2,5%, câncer em 1,5% e doença diverticular em 1,5%(4). Observa-se que a minoria das afecções requeria tratamento cirúrgico. Em uma era não muito distante, cirurgiões aceitariam um índice entre 8% e 30% de laparotomias brancas, sob pena de não diagnosticar doenças com risco iminente de morte.

É nesse contexto que se vem inserindo a TC. O exame clínico, os exames laboratoriais e as séries simples do abdome (radiografia ântero-posterior em decúbito dorsal, em posição ortostática e radiografia de cúpulas diafragmáticas) faziam parte do algoritmo clássico de avaliação do abdome agudo. Na prática diária, as radiografias de abdome se mostram úteis na identificação de quadros obstrutivos e de quadros perfurativos (pneumoperitônio), com sensibilidade considerada razoável. Todavia, o conjunto desses métodos não se mostra sensível e específico o suficiente para a determinação de doenças, exemplificadas pela apendicite e pancreatite aguda. Estudos mostram que o custo adicional de US$ 136.00–184.00 e a dose de 2,44 mSv, apesar de pequenos, não justificariam o uso generalizado da técnica como única forma de avaliação da dor abdominal aguda, já que a baixa "performance" pode implicar subdiagnóstico de doenças com grave impacto negativo no prognóstico dos pacientes(4,5).

Com o advento, melhoria e aumento da disponibilidade da TC como método diagnóstico, pôde-se demonstrar que ela se presta de maneira mais acurada na determinação desses diversos quadros. Não só a TC é mais específica na definição da etiologia do abdome agudo, como também é mais sensível que as radiografias na determinação da presença, do nível e da causa dos quadros obstrutivos. A TC é, pelo menos, tão sensível quanto a radiografia na demonstração da presença de perfuração, permitindo inclusive a determinação do nível da perfuração em casos específicos.

O avanço tecnológico também tornou o método mais rápido e disponível. Os novos aparelhos multidetectores são capazes de fazer varredura do abdome e da pelve do paciente em uma única apnéia, rapidamente fornecendo cortes finos de alta resolução. A aquisição volumétrica também se mostra ideal para a geração de imagens reformatadas nos planos coronal, sagital e oblíquos e nas reconstruções multiplanares curvas, auxiliando no diagnóstico de diversas doenças (por exemplo, a utilidade do plano coronal na avaliação da litíase urinária e dos casos de apendicite) por meio da demonstração das alterações de uma forma mais anatômica. Também fornece planos de corte com os quais clínicos e cirurgiões estão mais habituados a raciocinar. A mudança no expediente de trabalho radiológico também auxiliou na ampliação da aplicabilidade da TC. A presença de um radiologista durante as 24 horas do dia, pronto para analisar os estudos tomográficos, agilizou o processo de diagnóstico e terapêutica dos pacientes, sendo esta uma tendência que vem sendo implantada de maneira universal.

Existem diversos protocolos tomográficos para a avaliação do abdome agudo. Alguns protocolos de rastreamento abrem mão do uso de meio de contraste iodado endovenoso, oral ou retal, aumentando ainda mais a rapidez do método (por exemplo, o uso do contraste diluído via oral retarda o início do exame em cerca de uma hora, que é o período de tempo médio necessário para que haja a opacificação adequada das alças intestinais). Outra vantagem dos protocolos de rastreamento não-contrastado seria a possibilidade de universalização do procedimento, estendendo-se inclusive para pessoas com antecedentes alérgicos ou demais contra-indicações (por exemplo, insuficiência renal). Deve-se, como de costume, ponderar a utilização do método nos casos de gestantes e crianças. A dose de radiação ionizante, assim como o custo da TC multidetectores, vêm sendo debatidos como empecilhos em sua universalização. MacKersie et al. demonstraram doses de 12 mSv para homens e 17 mSv para mulheres nos exames com TC multidetectores, em comparação com doses de 2,4 mSv para séries radiográficas do abdome(5).

Trabalhos, entretanto, demonstram que os benefícios diagnósticos se equiparam ou se sobrepõem aos custos em termos financeiros e em termos de dose(4,5). A TC multidetectores ainda oferece o benefício teórico de aumentar a acurácia diagnóstica pelas suas qualidades intrínsecas de melhor resolução espacial axial e resolução quase isotrópica nos demais planos.

No nosso meio, diferentemente da literatura americana, o ultra-som desempenha papel importante no diagnóstico de doenças comuns na urgência, como na avaliação das vias biliares, emergências ginecológicas e apendicite e na avaliação inicial do paciente politraumatizado. Em nossa experiência no Pronto-Socorro do HC-FMUSP, a ultra-sonografia otimiza e racionaliza o uso da TC com multidetectores para os casos não resolvidos ou triados por este método, com impacto na redução geral do custo do paciente, em virtude do baixo custo do exame.

Ainda não existe consenso sobre a melhor abordagem dos pacientes com quadro de abdome agudo. Acreditamos que a participação ativa do radiologista de emergência na escolha do melhor método de investigação por imagem racionaliza e otimiza o fluxo de pacientes, principalmente nos serviços de grande volume. Muitos autores, entretanto, acreditam em um cenário em que os pacientes nessas condições sejam submetidos rotineiramente à TC com multidetectores como forma de rastreamento, classificando, assim, os casos em cirúrgicos ou não-cirúrgicos, substituindo a série radiográfica do abdome agudo. Com os custos em mente, o uso da TC multidetectores pode permitir a triagem desses pacientes de uma forma rápida, segura e decisiva em direção a uma terapia otimizada.

REFERÊNCIAS

1.Federle MP. CT of the acute (emergency) abdomen. Eur Radiol Suppl 2005;15(Suppl 4).

2.Leschka S, Alkadhi H, Wildermuth S, Marincek B. Multi-detector computed tomography of acute abdomen. Eur Radiol 2005;15: 2435–2447.

3.Marincek B. Nontraumatic abdominal emergencies: acute abdominal pain: diagnostic strategies. Eur Radiol 2002;12:2136–2150.

4.Mindelzun RE, Jeffrey RB. Unenhanced helical CT for evaluating acute abdominal pain: a little more cost, a lot more information. Radiology 1997;205:43–47.

5.MacKersie AB, Lane MJ, Gerhardt RT, et al. Nontraumatic acute abdominal pain: unenhanced helical CT compared with three-view acute abdominal series. Radiology 2005;237:114–122.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Maio 2006
  • Data do Fascículo
    Abr 2006
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