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Jornalismo cidadão: informa ou deforma?

RECENSÃO

Antonio Teixeira de Barros

Professor doutor, pesquisador do Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento da Câmara dos Deputados (Cefor), no curso de pós-graduação em Instituições Políticas do Legislativo. E-mail:antonibarros@gmail.com

TARGINO, Maria das Graças. Jornalismo cidadão: informa ou deforma? Brasília: Unesco/ IBICT, 2009. 258 p. ISBN: 978-85-7013-065-5

A leitura do livro em referência suscita vários questionamentos aos leitores. É um livro diferente do que se costuma esperar das adaptações de estudos acadêmicos.1 1 Trata-se de adaptação de tese pós-doutoral apresentada, ao final do ano de 2007, ao Instituto Interuniversitario de Iberoamérica da Universidad de Salamanca. Devido à sua natureza de livro-manifesto, o texto incomoda (no sentido positivo). É impossível folheá-lo de modo impassível. O estudo instiga o leitor a repensar suas verdades, suas crenças, sua visão do jornalismo, do webjornalismo, da internet e do próprio mundo. Por tudo isso, trata-se de uma obra que merece leitura atenta, discussão nas salas de aula, nas redações, nos eventos acadêmicos e profissionais.

Recomendo a leitura de outros estudos da autora, em especial o artigo "Divulgação de resultados como expressão da função social do pesquisador" (TARGINO, 2001). Impressionam também suas concepções no texto "A beleza oculta da miséria do jornalismo", no qual ela comenta o livro A miséria do jornalismo, de Juremir Machado (TARGINO, 2006).

Jornalismo cidadão é utopia? Pode ser. Sei que muitos acham que sim. Mas é inegável o papel histórico e social das ideias consideradas utópicas. Pensar em um livro com esse conteúdo até pouco tempo também era utopia. Caberia perguntar ainda: Jornalismo cidadão é uma realidade? Tanto é utopia quanto é realidade. Afinal, a dualidade não é excludente, mas dialética e relacional.

Nesse sentido, a obra é um estímulo para a análise de temas como a relação entre as empresas jornalísticas e os receptores, por exemplo. A esse respeito e em consonância com o estudo de Targino, Pierre Zémor (1995) ressalta a necessidade de se considerar a complexidade da relação com o cidadão receptor. Para o autor, o cidadão é um interlocutor ambivalente. Ao mesmo tempo que respeita e se submete às regras editoriais das instituições midiáticas, ele protesta sobre a falta de informação ou sobre suas mensagens mal construídas, incompletas ou mal divulgadas.

Nos debates acadêmicos contemporâneos, tornou-se lugar-comum considerar a informação um capital relevante na dinâmica da distinção social e, consequentemente, na diferenciação entre supercidadãos e subcidadãos. Tal concepção supervaloriza a informação como valor em si e superdimensiona o papel da mídia e dos jornalistas. Acerca desse equívoco, presente na maioria das análises atuais sobre a relação entre mídia e cidadania, há um estudo que se destaca pelo vigor salutarmente dissonante em relação às vozes dominantes. Trata-se do estudo de Boris Libois, La communication publique: por une philosophie politique des medias (2002), no qual o autor reafirma o direito à informação e à opinião como requisito básico para a consolidação dos direitos de cidadania. Essa concepção é relevante porque também constitui um dos fundamentos do livro de Targino, Jornalismo cidadão: informa ou deforma?.

Na visão de Libois (pressuposto que também está nas entrelinhas do texto de Targino), atualmente a formação das identidades pessoais e culturais e das comunidades é indissociável da comunicação mediática. Entretanto, Libois ressalva que, ao mesmo tempo, os sistemas midiáticos convencionais - regidos pela lógica de mercado - parecem, cada vez mais, desconectados da opinião de seus públicos e do ordenamento jurídico que regulamenta o setor. Desse cenário, decorrem diferentes lacunas da esfera pública contemporânea, como a crise de representação política, da integração das sociedades multiculturais e disfunções no próprio sistema midiático, nos sistemas de ensino e demais sistemas culturais. O livro de Targino transcende a esfera das mídias convencionais, ao enfocar as mudanças que afetam o jornalismo e a ação do jornalista, com o objetivo de analisar o desenvolvimento do jornalismo cidadão ou jornalismo cívico - também denominado open source journalism, jornalismo de fonte aberta, jornalismo participativo. A autora toma como referência a atuação do Centro de Mídia Independente ou Independent Media Center em território brasileiro.

O livro chama a atenção para a cobertura de temas de interesse direto do cidadão. Trata-se, pois, de um alerta para a primazia absoluta dos critérios mercadológicos na cobertura de imprensa. Afinal, foi necessária uma leva de reflexões sobre temas relacionados a jornalismo cívico, jornalismo público, jornalismo cidadão e tantos outros termos (a autora faz amplo levantamento sobre a diversidade terminológica) para reforçar a função maior do jornalismo: seu vínculo com a sociedade, a cultura e o interesse público. Alguns críticos questionam: como falar de jornalismo público ou de jornalismo cidadão, se todo jornalismo deve ser público, voltado para atender a interesses da sociedade e do cidadão em particular? Jornalismo cidadão: informa ou deforma? mostra que a questão não é tão simples. Ao recorrer a fundamentos da filosofia, das ciências sociais, da história da imprensa e do próprio campo teórico do jornalismo, a autora constrói uma análise relacional e crítica sobre as transformações operadas no interior do campo jornalístico que permitiram a redefinição de conceitos e de procedimentos profissionais atinentes ao agendamento, à seleção e à tematização das questões sociais.

A respeito desse enfoque, Targino reitera o pressuposto basilar dos estudos contemporâneos sobre comunicação pública, ou seja, o de que a informação não pode ser concebida de forma meramente instrumental, visto que seu fim e seu objetivo final é oferecer melhores condições para o exercício da cidadania. Portanto, deve haver sintonia entre a instituição que presta os serviços de informações e seus públicos (LIBOIS, 2002).

Na trilha desses estudos, a análise de Targino contribui para o aprofundamento reflexivo - com base na observação de casos concretos - do debate sobre a liberdade de expressão no âmbito das redefinições do fazer jornalístico (newsmaking). No contexto do modelo convencional de imprensa liberal, geralmente esse princípio é associado à reivindicação da liberdade para os jornalistas e as instituições de comunicação. Essa visão, além de simplista e burocrática, contraria o princípio da liberdade de expressão dos públicos. Como é entendida pela visão liberal da imprensa privada, essa noção serve apenas aos interesses econômicos das empresas de comunicação, as quais reivindicam, no Brasil, com base na Lei de Imprensa, uma liberdade privada, pois é a liberdade de expressão dos patrões e dos jornalistas somente. Ao estudar o jornalismo de fonte aberta, a autora oferece ao leitor outros ângulos de análise sobre o princípio mencionado.

Outro estudioso do tema, Marc Ferry (2002), destaca que, na prestação de serviços de informação aos cidadãos, a concepção liberal de liberdade de expressão chega a ser maléfica à cidadania, pois institucionaliza e legitima o monopólio privado da crítica e da opinião, com base no poder discricionário de apenas uma categoria profissional que não tem legitimidade política para representar a opinião dos cidadãos. Para ele, essa categoria monopoliza ainda a prerrogativa de definir a agenda pública, com a consequente escolha do enquadramento temático e ideológico para os debates públicos (que, na sua visão, não são realmente públicos, já que são delineados pelos jornalistas e pelas empresas de mídia). Na esteira dessa reflexão, Targino expõe exemplos concretos de como é possível, com as redefinições do jornalismo na internet, romper as barreiras apontadas por Ferry e permitir a formação de uma "rede social, privilegiando a participação, a colaboração do cidadão e dos grupos sociais à frente da produção de notícias" (p.59).

A análise da autora reforça a premissa de que o amadurecimento da democracia requer, necessariamente, liberdade de expressão, o que inclui, fundamentalmente, liberdade de opinião. O jornalismo cidadão, portanto, não deve perder esse horizonte. O social deve permear não só a agenda noticiosa, mas também a tematização (debates).

Outro assunto de relevo abordado no livro é a relação entre valor-notícia e interesse público, o que remete ao esquema formulado por Anthony Downs (1972) a respeito do ciclo de interesse da notícia (issue-attention-cycle)2 2 Downs explica porque algumas notícias apresentam ciclo de vida muito curto na imprensa, enquanto outras se estendem por longos períodos. Em sua concepção, o ciclo de atenção pública ao noticiário sobre um fato depende de um conjunto de fatores, como a existência de condições sociais para pôr o assunto em evidência; o respaldo de grupos sociais para dar suporte à repercussão pública sobre as notícias; a natureza dos conteúdos (alarmismo, denuncismo ou euforia coletiva); a idéia de progresso ou avanço na solução dos problemas noticiados. O declínio no ciclo de interesse da notícia, por sua vez, está condicionado ao gradual desinteresse da sociedade e à proeminência de novos temas, mesmo sem a solução dos anteriores. Esse ciclo de interesse e declínio de interesse do público pelas notícias é um dos pontos nevrálgicos da cobertura de temas de interesse social, como Targino exemplifica. . Nessa relação, como ressalta Targino (em sintonia com Downs), nem sempre o interesse público coincide com os critérios determinados pela concepção de valor-notícia. O jornalismo atual,

determinado pelas novas tecnologias, não é algo que se superpõe à condição humana, à cultura, à sociedade, à vida, nem tampouco às expectativas do cidadão, que, agora, vislumbra a chance de expressar ideias e pensamentos. É o espaço virtual favorecendo a circulação de notícias, jornalísticas ou não, como espaço de liberdade de expressão (TARGINO, 2009, p.74).

Mesmo ao reconhecer as limitações ainda reinantes no Brasil em relação ao acesso à internet, a autora aponta a contribuição do Centro de Mídia Independente e do webjornalismo, de modo geral, a pluralização das fontes de informação e, também, a ampliação das possibilidades de canais de informação para o cidadão: "Nos dias de hoje, é impossível falar de um só jornalismo, e sim de distintos jornalismos" (p.79). Em sua visão, o IMC "proporciona foro público para jornalistas independentes e organizações midiáticas com vistas à divulgação de artigos acerca de qualquer tema" (p.103).

A autora afirma ainda que o CMI relaciona, de forma responsável, o jornalismo cidadão e o treinamento para atitudes cidadãs:

O CMI difunde pensamento de indivíduos e entidades, como ONGs, associações de classe e sindicatos, antes sem acesso à mídia convencional. Isto corresponde a afirmar que a ação máxima do CMI em direção à cidadania é sua identidade como locus e/ou território de circulação livre de ideias (TARGINO; 2009, p. 220-221).

Targino conclui que o jornalismo de fonte aberta favorece as práticas de cidadania, pois proporciona aos indivíduos o gozo dos direitos civis e políticos, para os quais a informação é elemento básico tanto para a reivindicação de direitos, quanto para o exercício de deveres. Por fim, cabe destacar uma contribuição otimista, no âmbito de extensa fase de estudos que ressaltam as limitações e mazelas das práticas jornalísticas e dos pressupostos teóricos e metodológicos que orientam a produção acadêmica no campo jornalístico e seu capital simbólico dependente dos princípios da imprensa liberal e sua lógica de mercado.

  • DOWNS, A. Up and down with ecology: the issue-attention cycle. The Public Interest, [S. l.], v. 28, p.38-50, 1972.
  • FERRY, J.-M. Prefácio. In: LIBOIS, B. La communication publique: por une philosophie politique des medias. Paris: L'Harmattan, 2002. p.5-8.
  • LIBOIS, B. La communication publique: por une philosophie politique des medias. Paris: L'Harmattan, 2002.
  • SILVA, J. M. da. A miséria do jornalismo: as (in)certezas da mídia. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. 155 p. Recensão de: TARGINO, M. das G. A beleza oculta do jornalismo. Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, São Paulo, v. 29, n. 2, p. 187-196, jul. / dez. 2006.
  • TARGINO, M. das G. Divulgação de resultado como expressão da função social do pesquisador. Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 11-35, jan. / jun. 2001.
  • ZÉMOR, P. La communication publique Paris: PUF, 1995.
  • 1
    Trata-se de adaptação de tese pós-doutoral apresentada, ao final do ano de 2007, ao Instituto Interuniversitario de Iberoamérica da Universidad de Salamanca.
  • 2
    Downs explica porque algumas notícias apresentam ciclo de vida muito curto na imprensa, enquanto outras se estendem por longos períodos. Em sua concepção, o ciclo de atenção pública ao noticiário sobre um fato depende de um conjunto de fatores, como a existência de condições sociais para pôr o assunto em evidência; o respaldo de grupos sociais para dar suporte à repercussão pública sobre as notícias; a natureza dos conteúdos (alarmismo, denuncismo ou euforia coletiva); a idéia de progresso ou avanço na solução dos problemas noticiados. O declínio no ciclo de interesse da notícia, por sua vez, está condicionado ao gradual desinteresse da sociedade e à proeminência de novos temas, mesmo sem a solução dos anteriores. Esse ciclo de interesse e declínio de interesse do público pelas notícias é um dos pontos nevrálgicos da cobertura de temas de interesse social, como Targino exemplifica.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Out 2009
    • Data do Fascículo
      Abr 2009
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