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Representações sociais sobre cuidar e tratar: o olhar de pacientes e profissionais

Representaciones sociales sobre cuidar y tratar: la visión de pacientes y profesionales

Resumos

A pesquisa teve por objetivo conhecer o núcleo central das representações sociais de pacientes e enfermeiras(os) acerca do significado de cuidar e tratar. Consiste em um estudo de natureza qualitativa, baseado na fundamentação teórico-metodológica da abordagem estrutural das representações sociais. Participaram do estudo 90 sujeitos. Aplicou-se um questionário utilizando-se a técnica de livre associação. Os dados foram analisados com o auxílio do software Evoc. Os resultados revelam que as representações sociais de pacientes e profissionais acerca dos conceitos de cuidar expressam uma relação ética, sensível, solidária, afetiva e compromissada com a vida humana amorosa. Entretanto, as representações sobre o tratar apontam para diferentes significados e distintas expectativas. Conclui-se que a discrepância entre essas representações é bastante preocupante e merece atenção especial da categoria. Tal discrepância denuncia que o serviço oferecido pelos profissionais não satisfaz à demanda e ao desejo dos pacientes.

Cuidados de enfermagem; Humanização da assistência; Relações interpessoais; Competência profissional; Relações enfermeiro-paciente


La investigación objetivó conocer el núcleo central de representaciones sociales de pacientes y enfermeras/os acerca del significado de cuidar y tratar. Estudio de naturaleza cualitativa, basado en fundamento teórico-metodológico del abordaje estructural de las representaciones sociales. Participaron 90 sujetos. Se aplicó un cuestionario usando técnica de libre asociación. Los datos se analizaron con ayuda del software Evoc. Los mismos revelaron que las representaciones sociales de pacientes y profesionales acerca de los conceptos de cuidar expresan una relación ética, sensible, solidaria, afectiva y comprometida con la vida humana amorosa. Mientras tanto, las representaciones sociales sobre el tratar apuntan hacia diferentes significados y distintas expectativas. Se concluye en que la discrepancia entre las representaciones es bastante preocupante y merece atención de la categoría. Tal discrepancia expresa que el servicio ofrecido por los profesionales no satisface la demanda y el deseo de los pacientes.

Atención de enfermería; Humanización de la atención; Relaciones interpersonales; Competencia profesional; Relaciones enfermero-paciente


The objective of this study was to learn about the central nucleus of the social representations of caring and treating for patients and nurses. This qualitative study was founded on the theoretical-methodological framework of the structural approach of social representations. Participants were 90 subjects, who answered a questionnaire using the free association technique. Data analysis was performed using Evoc software. Results show that the social representations that patients and professionals have of the concepts of caring express an ethical, sensitive, solidary, affective and committed relationship with a loving human life. However, the representations of treating point at different meanings and different expectations. In conclusion, the difference between these representations is rather concerning and deserves special attention. Such discrepancy denounces that the service that the professionals have delivered does not meat the demand and desires of patients.

Nursing care; Humanization of assistance; Interpersonal relations; Professional competence; Nurse-patient relations


ARTIGO ORIGINAL

Representações sociais sobre cuidar e tratar: o olhar de pacientes e profissionais* * Extraído da pesquisa "O dilema da Enfermagem: cuidar ou tratar", Programa de Iniciação Científica da Universidade de Brasília, 2008.

Representaciones sociales sobre cuidar y tratar: la visión de pacientes y profesionales

Moema da Silva BorgesI; Lilian Silva QueirozII; Hellén Cristina Pereira da SilvaIII

IProfessora Doutora do Departamento de Enfermagem da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília. Brasília, DF, Brasil. mborges@unb.br

IIGraduanda do Curso de Enfermagem da Universidade de Brasília. Bolsista Voluntária do Programa de Iniciação Científica. Brasília, DF, Brasil. liloca.lil@gmail.com

IIIEnfermeira do Hospital Brasília. Bolsista do Programa de Iniciação Científica da Universidade de Brasília. Brasília, DF, Brasil. isis-hoc@hotmail.com

Endereço para correspondência: Endereço para correspondência: Moema da Silva Borges SQN 205 - Bloco G - Apto. 301. CEP 70843-070 - Brasília, DF, Brasil

RESUMO

A pesquisa teve por objetivo conhecer o núcleo central das representações sociais de pacientes e enfermeiras(os) acerca do significado de cuidar e tratar. Consiste em um estudo de natureza qualitativa, baseado na fundamentação teórico-metodológica da abordagem estrutural das representações sociais. Participaram do estudo 90 sujeitos. Aplicou-se um questionário utilizando-se a técnica de livre associação. Os dados foram analisados com o auxílio do software Evoc. Os resultados revelam que as representações sociais de pacientes e profissionais acerca dos conceitos de cuidar expressam uma relação ética, sensível, solidária, afetiva e compromissada com a vida humana amorosa. Entretanto, as representações sobre o tratar apontam para diferentes significados e distintas expectativas. Conclui-se que a discrepância entre essas representações é bastante preocupante e merece atenção especial da categoria. Tal discrepância denuncia que o serviço oferecido pelos profissionais não satisfaz à demanda e ao desejo dos pacientes.

DESCRITORES: Cuidados de enfermagem; Humanização da assistência; Relações interpessoais; Competência profissional; Relações enfermeiro-paciente.

RESUMEN

La investigación objetivó conocer el núcleo central de representaciones sociales de pacientes y enfermeras/os acerca del significado de cuidar y tratar. Estudio de naturaleza cualitativa, basado en fundamento teórico-metodológico del abordaje estructural de las representaciones sociales. Participaron 90 sujetos. Se aplicó un cuestionario usando técnica de libre asociación. Los datos se analizaron con ayuda del software Evoc. Los mismos revelaron que las representaciones sociales de pacientes y profesionales acerca de los conceptos de cuidar expresan una relación ética, sensible, solidaria, afectiva y comprometida con la vida humana amorosa. Mientras tanto, las representaciones sociales sobre el tratar apuntan hacia diferentes significados y distintas expectativas. Se concluye en que la discrepancia entre las representaciones es bastante preocupante y merece atención de la categoría. Tal discrepancia expresa que el servicio ofrecido por los profesionales no satisface la demanda y el deseo de los pacientes.

DESCRIPTORES: Atención de enfermería; Humanización de la atención; Relaciones interpersonales; Competencia profesional; Relaciones enfermero-paciente.

INTRODUÇÃO

Toda profissão precisa justificar a necessidade da sua prestação de serviços, delimitar seu campo de competência e dar provas de sua indispensabilidade(1). Entretanto, após mais de um século de profissionalização, a identidade da Enfermagem continua sendo um alvo a ser alcançado(1). A falta de clareza sobre o significado do cuidado de Enfermagem é influenciada por muitos fatores, dentre os quais se destacam: as questões de gênero que caracteriza a carreira como feminina; a lógica capitalista que regula e permeia a organização dos serviços de saúde; a formação que privilegia a corrente ligada à tecnicidade centrada na doença; a hegemonia do saber e poder médico no contexto da assistência à saúde com enfoque no curar/tratar em detrimento do cuidar(2).

Nas instituições de saúde, sobretudo no hospital, a indistinção entre os conceitos de cuidar e tratar favoreceu que o significado do último invadisse, insidiosamente, o primeiro, revestindo-se dele(1). Os valores e a organização hierárquica dos papéis de tratar dão a entender, para a sociedade, que os cuidados de enfermagem só serão requeridos em presença da doença.

O estabelecimento da equação enfermeira = doença cria obstáculos para o reconhecimento de sua competência profissional, o que compromete o valor social do trabalho de enfermagem. O desconhecimento de que cuidar é diferente de tratar desvia o foco do fazer da enfermagem, deslocando o seu papel de auxiliar dos doentes para auxiliar dos médicos(1,3).

No cotidiano profissional, o resultado desse conjunto de fatores é traduzido por um sentimento de exclusão, que propaga o (des)valor do trabalho entre os próprios profissionais. E embora esse aspecto não exclua a enfermeira do espaço de trabalho, a deixa em uma condição de vulnerabilidade. Como um fator agravante, pacientes e familiares alegam não saber qual é o real papel e o valor do trabalho da enfermagem(3-4).

A valorização do cuidado de enfermagem parece estar condicionada a dois aspectos: por um lado, à comprovação de que seus cuidados são a expressão e o cumprimento de uma ação indispensável em certas circunstâncias da vida das pessoas, serviço esse não prestado por outros profissionais(1), e, por outro lado, os cuidados devem ser oferecidos a partir do que é significativo para a vida de alguém, na compreensão do seu sentido, estabelecendo os laços que são importantes para essa pessoa.

Nessa perspectiva, o cuidado de enfermagem é complexo e demarcado por um amplo cenário de possíveis ações. No bojo dessa complexidade é preciso considerar que o campo de competência da enfermagem localiza-se numa zona de intercessão entre o campo de competência do usuário e do médico, situando-se entre o cuidado e tratamento(1).

A ação de cuidar objetiva desencadear tudo que mobiliza a energia de vida, enquanto o tratamento busca apenas circunscrever a doença, detê-la, atenuar os seus efeitos, limitando seus prejuízos. Se a função de um órgão acha-se impedida, o saber da medicina ajuda a natureza a remover a obstrução, e nada mais, enquanto a Enfermagem mantém a pessoa nas melhores condições possíveis, a fim de que a natureza possa atuar sobre ela(5). O que é preciso compreender é que até pode-se viver sem tratamento, mas não se pode viver sem cuidado. Logo, as ações de cuidado não podem ser postas à parte, ou mesmo excluídas do tratamento(1).

Nessa perspectiva, é essencial explicitar as diferenças entre os conceitos de cuidar e tratar. A não-delimitação das intercessões e dos limites entre cuidar e tratar impede a identificação do campo de competência do cuidado de enfermagem à medida que o confunde com o próprio trabalho médico. Em outras palavras, afirma-se que a falta de clareza sobre o verdadeiro significado de cuidar e a indistinção entre ele e o tratar mascararam as ações dos cuidados de enfermagem, comprometendo sua representação e sua prática.

Todavia, a possibilidade de mudança sobre a representação dos cuidados de enfermagem implica obrigatoriamente na reelaboração de novas interpretações sobre ele. Isso porque as representações sociais são tanto produto como processo de uma atividade de apropriação da realidade externa ao pensamento e de uma elaboração psicológica e social dessa realidade(6).

Nesse contexto, a representação sobre o cuidado deve permitir à Enfermagem conferir sentido aos seus procedimentos, entender a complexidade da realidade mediante os sistemas de referências das pessoas envolvidas no processo.

De acordo com um estudo(7), estruturalmente, uma representação é composta pelos seus sistemas central e periférico, que se apresentam como duplo sistema, em que cada um tem um papel específico e complementar ao outro.

O núcleo sistema/núcleo é dado pela análise da história de vida de determinado grupo e suas experiências, o que corresponde a suas bases histórica, social e psicológica. Por isso, o núcleo central afere o caráter de estabilidade à representação e marca sua resistência às mudanças.

Por outro lado, o sistema/núcleo periférico permite que a representação se ancore na realidade do momento, adaptando com facilidade ao discurso politicamente correto desse momento. Sendo assim, seus elementos são mais vivos, mais concretos e de grande mobilidade. Embora o sistema periférico não defina a representação social, ele contribui efetivamente para sua organização.

O presente estudo teve como objetivo apreender o núcleo central das representações sociais de pacientes e profissionais de Enfermagem acerca dos conceitos de cuidar e tratar. Busca-se ampliar a clarificação sobre o significado do cuidado em Enfermagem e a reflexão sobre seu campo de competência e identidade profissional.

MÉTODO

Trata-se de um estudo de natureza qualitativa, baseado na fundamentação teórico-metodológica da abordagem estrutural das representações sociais. Os dados foram coletados em Brasília-DF ao longo dos meses de fevereiro e março de 2009, em centros de saúde e hospitais da região. Participou do estudo um total de 90 sujeitos: a) 45 usuários dos serviços de saúde abordados em salas de espera de consultórios de postos de saúde de maneira aleatória (optou-se por esses serviços em virtude da disponibilidade desses sujeitos em aceitar a abordagem durante a espera); b) 45 profissionais de Enfermagem que desempenhavam suas funções em postos de saúde e hospitais públicos (essa escolha deu-se pela facilidade de acesso aos sujeitos pelos entrevistadores). Utilizaram-se dois instrumentos: 1) questionário de perguntas fechadas que objetivou identificar o perfil dos participantes e 2) questionário no qual se empregou a técnica de livre associação, que consiste em apresentar uma palavra indutora aos indivíduos (correspondente ao objeto representado) e solicitar que produzam todas as palavras, expressões ou adjetivos que lhe venham à mente a partir dela. As palavras indutoras foram cuidar e tratar e foi solicitado aos participantes que se manifestassem acerca dos dois termos.

Como critério de inclusão para os usuários adotou-se o de idade maior ou igual a 18 anos e ter recebido algum cuidado de enfermagem, enquanto para os profissionais os critérios foram ter idade maior de 18 anos e curso de graduação em Enfermagem. Os dados obtidos foram transcritos e analisados com o auxílio do software Evoc(8). As palavras evocadas de forma mais frequente devem provavelmente constituir elementos centrais de representação. O software Evoc permite vislumbrar o núcleo central em função do duplo critério frequência e ordem de evocação das palavras/frases.

A partir do cruzamento dos critérios de frequência e evocação, é definida a relevância dos elementos associados (palavras, frases e expressões) ao termo indutor. Esses resultados são apresentados em quatro quadrantes organizados em dois eixos. O eixo vertical contempla a frequência, enquanto o eixo horizontal contempla a ordem de evocação(8).

No quadrante superior esquerdo, aparecem os elementos mais relevantes que surgem nos primeiros lugares da ordem de evocação com uma frequência significativamente mais elevada [núcleo central]. Nos quadrantes superior direito e inferior esquerdo, são contemplados os elementos menos nítidos quanto ao seu papel na estrutura da representação, embora significativos em sua organização. Esses quadrantes constituem a primeira periferia ou periferia próxima(8). No quadrante inferior direito aparecem os elementos menos frequentes e menos prontamente evocados, correspondendo à segunda periferia, que neste estudo não formam considerados.

Obedecendo à Resolução 196/96, os dados foram coletados após aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética da Faculdade de Ciências da Saúde sob o parecer nº 140/08. Todos os participantes do estudo, após concordarem em participar da pesquisa, assinaram o termo de consentimento informado.

RESULTADOS

O perfil dos 45 usuários ficou composto da seguinte maneira: 26 (57,8%) dos entrevistados tinham entre 18 e 30 anos, 14 (31,1%) entre 31 e 50 anos e 5 (11,1%) entre 51 e 58 anos. Quanto ao sexo: 26 (57,8%) eram do sexo feminino e 19 (42,2%) eram do sexo masculino. Quanto à escolaridade: 6 (13,3%) responderam ter cursado até o nível fundamental, 14 (31,1%) o ensino médio, 14 (31,1%) não ter o nível superior completo e 11 (24,4%) ter o nível superior completo.

Frente à palavra indutora cuidar, evocou-se, mais pronta e frequentemente, os termos amar, carinho e dar, indicando o provável núcleo central da representação dos pacientes. Na primeira periferia evocaram-se, mais pronta e frequentemente, os termos responsabilidade, prevenção, atenção e a expressão dormir bem (Figura 1).


Frente à palavra indutora tratar, evocou-se, mais pronta e frequentemente, as palavras doença e tratamento, indicando o provável núcleo central da representação dos pacientes. Na primeira periferia, evocaram-se mais pronta e frequentemente os termos, médico, remediar, responsabilidade e atenção (Figura 2).


Os 45 profissionais tinham o seguinte perfil: 1) Quanto à faixa etária: 12 (26,6%) dos entrevistados tinham entre 18 e 30 anos, 10 (22,3%) entre 31 e 42 anos, 18 (40%) entre 43 e 55 anos, 4 (8,8%) entre 55 e 65 anos e apenas 1 (2,2%) tinha + de 70 anos. 2) Quanto ao sexo: 34 dos entrevistados (76%) eram do sexo feminino e 11 (24%) eram do sexo masculino. 3) Quanto à escolaridade: 13 (28,8%) eram graduados, 27 (60%) eram especialistas, 2 (4,4%) eram mestres e 3 (6,6%) eram doutores.

Frente à palavra indutora cuidar, evocou-se, mais pronta e frequentemente, as palavras amor, atenção, dedicação e respeito, indicando o provável núcleo central da representação dos profissionais. Na primeira periferia, evocaram-se mais pronta e frequentemente os termos carinhosos, compromisso e zelo, estar e paciente (Figura 3).


Frente à palavra indutora tratar, evocou-se, mais pronta e frequentemente, as palavras conhecimento e medicar. Na primeira periferia, evocaram-se mais pronta e frequentemente os termos curar, medicação e a expressão ser impessoal (Figura 4).


DISCUSSÃO

O termo amar foi o que mais se destacou na Figura 1. Esse resultado indica que o provável núcleo central das representações sociais dos pacientes gira em torno dos significados do verbo amar. Pode-se inferir que, na visão dos entrevistados, o fundamento amoroso do cuidado comporta tanto o sentimento de carinho quanto uma atitude de doação complementar ao amor, base essencial da ação de cuidar.

É importante ressaltar que o amor e o cuidado têm sido distinguidos como compromisso com a humanização, bem como a expressão máxima da ética(9-10). Sendo assim, sem eles, tornar-se-ia impossível despertar as forças potenciais de cada indivíduo na geração do processo de autocura. Amar configura-se, portanto, como a base de todos os processos cuidativos, bem como da própria vida. Donde se pode (re)afirmar que, sem o cuidado, desde o nascimento até o derradeiro momento de sua vida, o ser humano se desestrutura, definha, perde o sentido e morre(10).

Nesta linha de raciocínio, percebe-se que o núcleo central das representações sociais dos usuários acerca do cuidado, ou seja, o sistema resistente a mudanças, pede que o sentido primordial de preservação e promoção da vida - o amor - e o resgate das emoções e sentimentos que têm sido desvalorizados no modo de produção da assistência de saúde sejam recolocados no foco do cuidado de enfermagem.

Reitera-se que o sistema periférico não define a representação social, mas contribui efetivamente para sua organização. Então, o termo responsabilidade, evocado no primeiro quadrante (Figura 1), complementa a ideia de que o amor é um ato responsável e implica no estabelecimento de uma importante e recíproca relação entre o Eu e o Outro. Entretanto, no cotidiano de trabalho, a frieza dos protocolos e a pressão temporal do atendimento podem levar os profissionais a despersonalizar o cuidado das pessoas. Muitas vezes nos flagramos referindo-nos ao paciente como o infarto, ou o TCE, esquecendo ou ignorando que além do diagnóstico existe um ser humano como nós(11).

No segundo quadrante, os termos dormir bem, prevenção, e atenção (Figura 1) indicam que o conteúdo subjacente a cada um desses termos coloca em foco o conceito de saúde e consequentemente a noção de bem-estar. Esse aspecto baliza que a prática do cuidado não descura das preocupações vitais para manutenção e preservação da vida. Sendo assim, dormir bem, prevenir doenças e ter atenção aos aspectos que promovem a condição saudável da vida orbitam em torno do ato de cuidar, o que requer vigilância à satisfação das necessidades vitais dos indivíduos.

Os resultados revelam que o elemento estruturante das representações do cuidar para os usuários vai ao encontro da grande finalidade do cuidado de enfermagem, que consiste em permitir, aos pacientes desenvolver a sua capacidade de viver ou de tentar compensar o prejuízo das funções limitadas pela doença, procurando suprir a disfunção física, afetiva ou social afetada(1,5).

O termo doença foi o que mais se destacou (Figura 2). Esse resultado indica como provável núcleo central da representação o conceito de doença. A representação da doença é o contrário do que é bom algo desagradável, que afeta o sujeito e o incapacita, revela algo de ruim em si(12). Ratifica-se, então, que somente perante a doença é requerido um tratamento.

Em geral, um tratamento é desencadeado pelo indivíduo quando as ações de cuidado que pretendiam atenuar, compensar e impedir o agravamento da doença não obtiveram sucesso. Em virtude desse aspecto, em geral, os usuários detêm os primeiros elementos de qualquer diagnóstico e, durante a consulta médica, esperam a confirmação da análise que já iniciaram(1). Esse aspecto sinaliza para uma necessária abordagem dialógica que considera as diferentes formas de construção dos conceitos de saúde e doença no cuidado. Assim, as crenças não podem ser desconsideradas, pois nelas reside uma riqueza de sentimentos, que dão o significado e sentido às vivências dos sujeitos construídas no dia-a-dia, nas relações com todo ambiente social, que compõem a realidade dos sujeitos(12).

No primeiro quadrante, o termo médico indica ser esse o profissional responsável pelo tratamento (Figura 2). Cabe ao médico diagnosticar e prescrever o tratamento que, na maioria das vezes, é garantido pelo próprio usuário e/ou seus familiares. Somente em situações mais graves ou complexas haverá a necessidade de se recorrer a uma competência mais especializada, tanto para iniciar quanto para acompanhar o tratamento. Nesse caso, essa competência é delegada pelo médico às enfermeiras(1).

Sob este prisma, o pessoal de enfermagem precisa atentar para dois aspectos importantes e que merecem máxima consideração: o primeiro destaca que, na assistência à saúde, nenhum campo de competência profissional pode ser privilegiado em detrimento de outro tipo de saber, incluindo o saber do próprio usuário. Essa linha de raciocínio ratifica que o campo de competência da Enfermagem durante o tratamento situa-se em inter-relação com o campo de competência dos usuários e dos médicos, partilhando com eles zonas comuns(1);

O segundo enfatiza que quando a responsabilidade do tratamento é partilhada entre a enfermeira e o médico, a atenção da enfermeira não deve fixar seu olhar na doença de forma isolada, pois, sobretudo nessa condição, o cuidado de enfermagem situa-se, por um lado, numa relação com tudo o que melhora as condições que favorecem a promoção e prevenção da saúde, objetivando limitar a doença e, por outro, em relação a tudo que recupera, revitaliza a pessoa doente(1). Esses dois lados constituem as faces da moeda do cuidar durante o tratamento.

Assim sendo, embora o tratamento seja objeto de prescrição médica, cabe ao domínio de decisão e iniciativa próprias do pessoal de enfermagem a execução da prescrição, mantendo atenção à interação existente entre cuidado e tratamento(1). Pode-se, nesse contexto, chamá-lo de tratamento de enfermagem.

No segundo quadrante, os termos remediar, responsabilidade e atenção novamente reafirmam que os pacientes, todos os dias, abortam um bom número de pequenos males pelo autocuidado e evitam, assim, a instalação da doença(1). De acordo com o senso comum, remediar significa reparar ou corrigir com remédio a doença ou a dor. Logo, a reapresentação dos termos responsabilidade e atenção parecem complementar a ideia de que o uso de remédios exige foco nas competências técnicas e relacionais. Nesse sentido, é prudente não valorizar uma competência em detrimento da outra.

Portanto, pode-se inferir que, na perspectiva dos usuários, tratar não se resume ao procedimento técnico por si só, mas, sobretudo, em uma ação integral, que tem significados e sentidos voltados para a compreensão das necessidades das pessoas em determinada conjuntura.

O termo amor obteve destaque, apontando o provável núcleo central das representações sociais do cuidar para a categoria dos profissionais de enfermagem (Figura 3). Esse resultado corrobora a pesquisa em que o amor também emergiu como o provável núcleo central da representação da categoria de enfermagem(3). Quando um acolhe o outro, o amor surge como fenômeno biológico(9). Logo, o amor como fenômeno biológico se dá do dinamismo da vida, desde as realizações mais primárias até as mais complexas. O amor significa a aceitação do outro junto a nós, sem amor não há socialização, e sem esta não há humanização(9-10).

A presença dos termos amor, atenção, dedicação e respeito permite inferir que, para os profissionais, a representação de cuidar organiza-se em torno desses quatro elementos nucleares. Vale enfatizar que a manifestação dos sentimentos subjacentes à palavra respeito coincide com a expressão máxima do amor e traduz a capacidade de acolher o outro, sem julgamento pelo que ele sente, fala ou faz. Assevera-se então que o amor e o cuidado constituem o fundamento do fenômeno social, sendo responsável por todas as implicações éticas advindas da dinâmica biossocial.

No primeiro quadrante, aparecem os termos: carinhoso, e compromisso e zelo, que constituem a filologia da palavra cuidado. À vista desses termos, corrobora-se que o cuidado significa desvelo, solicitude, diligência, zelo, atenção, bom trato(10). Logo, a manifestação dos sentimentos subentendidos nessas palavras remete à raiz essencial da profissão, ou seja, o amor ao próximo, cujo objetivo principal era: a preocupação com os sentimentos de próximo, o respeito e a compaixão, o contacto direto com o paciente, a busca de valores humanos e espirituais e a reflexão sobre o homem e a concepção da vida(13).

No segundo quadrante, os termos estar e paciente ratificam a importância de estar presente de forma autêntica, manifestada pela capacidade de ser real e mostrar-se ao outro de forma genuína, por meio de palavras e atos. Ressalta-se aqui a valorização da relação interpessoal e habilidades comunicativas (comunicação verbal e não-verbal) por meio de mensagens que revelam atenção e cuidado.

Os resultados sinalizam que, na visão dos profissionais, o cuidado de enfermagem somente se concretiza na medida em que na relação com o outro se pode propiciar o florescimento do cuidado que verdadeiramente humaniza: o sentimento profundo, a vontade de partilhar e a busca do amor(10).

O termo conhecimento recebeu destaque sinalizando o provável núcleo central das representações sobre o tratar (Figura 4). A emergência associada dos termos conhecimento e medicar indicam que o tratamento se organiza em torno dos dois significados. Dessa forma, a representação guarda estreita relação com a ação de administrar medicações e ressalta a necessária competência técnica acerca do conhecimento especialista da farmacologia e terapêutica medicamentosa no que diz respeito à ação, dose, efeitos colaterais, métodos e precauções na administração de remédios.

Essas interpretações apontam para o nó górdio na prática da enfermagem, ou seja, o dilema entre cuidar e tratar traduzido pela estranheza entre uma competência e outra. Aqui duas questões merecem melhor entendimento: 1) a administração do medicamento não pode ser considerada pelos profissionais uma tarefa isolada no contexto do cuidado. Portanto, diante de um quadro de enfermidade, medicar representa única e exclusivamente um ato complementar aos cuidados de enfermagem e só pode ser realizado a partir da consideração da pessoa doente e da doença da pessoa. 2) toda ação de cuidado exige domínio de conhecimentos de alta complexidade, seja pela capacidade de percepção, de compreensão, de clarificação da informação, de criatividade, etc.

Portanto, o cuidado em saúde não pode, em hipótese alguma, ser considerado como simplesmente uma atividade, pois constitui algo que transcende o fazer de um profissional. Nesse sentido, a expertise de cada profissional deve ser apreciada como parte de uma estratégia, ou seja, um conjunto de ações que garantam a qualidade de vida dos indivíduos, minimizando os transtornos causados pela doença.

Assim, na relação de trabalho, não cabe submissão ou opressão da enfermagem ao poder médico. Os profissionais de enfermagem por vezes são cooptados a realizarem condutas nem sempre apropriadas, muitas vezes, ligadas às normas e prescrições que não foram seguidas, ou que já deveriam ter sido mudadas e não o foram(14). É necessário romper a assimetria que finda por perpetuar prejuízos à valorização do trabalho da enfermagem e torna o fazer da enfermagem invisível na arena do trabalho em saúde.

A categoria deve internalizar o conceito que os cuidados de enfermagem são constituídos pelo que compõe a sua essência - relação interpessoal - e pelo acessório da prática do cuidar - meios (técnicas, protocolos, terminologia, formas de organização, contextos dos cuidados etc.(15). A enfermagem precisa transformar a ação de cuidar numa ajuda significativa, em que as dimensões acessória e essencial estejam unidas(16).

No desequilíbrio entre o essencial e o acessório pode-se perder a ação de cuidado. Na inversão total deles, o cuidado fenece e morre, resultando no descuido e esquecimento total. Se morrer o cuidado, morre também o ser humano(17). Assim, não se podem negligenciar as interações existentes entre os cuidados e o tratamento. Ambos são portadores de conhecimentos e a matriz epistêmica do cuidado foi, é, e será sempre relevante na manutenção da vida e humanidade.

Os termos emergentes no primeiro quadrante curar e medicação (Figura 4) explicitam o equívoco de olhar o tratamento como tarefa parcelar que caracteriza uma intervenção e não o processo de cuidar. Apesar do apelo insistente da abordagem tecnológica da saúde, é necessário ter clareza que o medicamento não opera milagres, logo medicar não é igual a curar. O que realmente cura é a força vital existente em cada ser humano associada ao seu desejo de viver, e cabe aos cuidados de enfermagem ajudar a despertá-la(1).

A noção de doença, termo que aparece no segundo quadrante, implica obrigatoriamente na representação de uma pessoa doente. Logo, pensar a doença é pensar um corpo doente que precisa de cuidados. No contexto dos cuidados de enfermagem, não cabe lidar ou tratar pessoas como coisas [...] de forma objetiva e distanciada(16). Portanto, diante de um paciente sob tratamento não se justifica a impessoalidade.

Toda zona de fronteira, margem, limite ou intercessão que os cuidados de enfermagem ocupam entre o cuidar e o tratar exige parceria entre o paciente e o profissional. Nesse contexto, a relação não se dá com a doença, mas com a pessoa doente. Ao relacionar-se com a doença, o profissional ocupa lugar de adversário - aquele que luta contra o mal. Relacionando-se com a pessoa, ele ocupa o lugar de parceiro(16).

O núcleo estruturante das representações sociais dos profissionais reflete um tipo de assistência à saúde forjada num contexto de trabalho fragmentado e de baixa intensidade de reflexão, onde as intervenções de enfermagem são realizadas, mas o cuidado não acontece.

CONCLUSÃO

No universo consensual de usuários e profissionais, o provável núcleo central das representações sociais acerca do ato de cuidar guarda o mesmo sentido e significado. Para ambos, a representação se alinha à ideia de uma ação mediada por uma relação ética, sensível, solidária, afetiva e compromissada com uma assistência humanizada.

Todavia, frente à ação de tratar, usuários e profissionais manifestaram distintos olhares e expectativas. Enquanto os primeiros anseiam por um tratamento que não se resuma apenas ao procedimento técnico, mas signifique, sobretudo, uma ação integral de significados e sentidos voltados para a compreensão de suas necessidades, para os profissionais o tratamento assume um caráter meramente técnico e impessoal. Essas representações sinalizam para atos específicos para os quais se atribuem significados que tem força de realidade.

Logo, essa discrepância denuncia que o serviço oferecido pela enfermagem não satisfaz a demanda e desejo dos usuários. Essa empreitada exige imprimir a marca do cuidado por dentro da conexão fria das organizações e das leis mercadológicas cristalizadas dos serviços de saúde.

Urge que a categoria de enfermagem reelabore a representação que forjou acerca do seu objeto de trabalho. Foi a raiz amorosa do cuidado que forjou a profissão de enfermagem; somente essa mesma raiz poderá resgatar e manter a sua identidade e valorização do trabalho da enfermagem.

Recebido: 28/02/2010

Aprovado: 09/03/2011

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  • Endereço para correspondência:

    Moema da Silva Borges
    SQN 205 - Bloco G - Apto. 301.
    CEP 70843-070 - Brasília, DF, Brasil
  • *
    Extraído da pesquisa "O dilema da Enfermagem: cuidar ou tratar", Programa de Iniciação Científica da Universidade de Brasília, 2008.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Recebido
      28 Fev 2010
    • Aceito
      09 Mar 2011
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