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A prática social sistêmica do enfermeiro na perspectiva luhmanniana

La práctica social sistémica del enfermero en la perspectiva luhmanniana

Resumos

Objetivou-se compreender o significado da prática social do enfermeiro na perspectiva luhmanniana e possibilitar um debate acerca da construção de um código específico para a área que vá além do tradicional código saúde-doença predominante no sistema de saúde, cuja comunicação socialmente relevante é a doença. Utilizou-se como referencial metodológico a Grounded Theory e como técnica de coleta de dados uma entrevista realizada com 35 participantes, entre maio e dezembro de 2007. A codificação e análise dos dados permitem concluir que apostar na enfermagem como um sistema funcionalmente diferenciado implica em desenvolver um código binário que potencialize a saúde como comunicação socialmente relevante e o ser humano como um ser social, inserido em uma realidade complexa e multidimensional.

Cuidados de enfermagem; Papel do profissional de enfermagem; Responsabilidade social; Teoria de sistemas


Se objetivó comprender el significado de la práctica social del enfermero en la perspectiva luhmanniana, con el sentido de posibilitar un debate acerca de la construcción de un código específico para el área, que vaya más allá del tradicional código salud-enfermedad predominante en el sistema de salud, cuya comunicación socialmente relevante es la enfermedad. Se utilizó como referencial metodológico la Grounded Theory y como técnica de recolección de datos la entrevista, efectuada a 35 participantes entre mayo y diciembre de 2007. La codificación y análisis de los datos permiten concluir en que apostar a la enfermería como un sistema funcionalmente diferenciado, implica desarrollar un código binario que potencialice a la salud como comunicación socialmente relevante, y al ser humano como a un ser social, insertado en una realidad compleja y multidimensional.

Atención de enfermería; Rol de la enfermera; Responsabilidad social; Teoría de sistemas


The objective was to understand the meaning of the social practice of nurses in Luhmann's perspective and allow for a discussion about the construction of a specific code for nursing; one that would go beyond the traditional health-disease code prevalent in the health system, whose relevant social communication is the disease. The Grounded Theory was the methodological framework. Data collection was performed by interviewing the 35 participants between May and December 2007. Data coding and analysis resulted revealed that assuming that nursing is as a functionally differentiated system implies on developing a binary code to enhance health as socially relevant communication and human beings as social beings who are part of a complex and multidimensional reality.

Nursing care; Nurse's role; Social responsibility; Systems theory


ARTIGO ORIGINAL

A prática social sistêmica do enfermeiro na perspectiva luhmanniana

La práctica social sistémica del enfermero en la perspectiva luhmanniana

Dirce Stein BackesI; Marli Stein BackesII; Alacoque Lorenzini ErdmannIII

IEnfermeira. Doutora em Filosofia da Enfermagem. Professora do Departamento de Enfermagem do Centro Universitário São Francisco - UNIFRA. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Administração de Enfermagem e Saúde. Santa Maria, RS, Brasil. backesdirce@ig.com.br

IIEnfermeira. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Administração de Enfermagem e Saúde. Florianópolis, SC, Brasil. marli.backes@bol.com.br

IIIEnfermeira. Doutora em Filosofia da Enfermagem. Professora Titular da Universidade Federal de Santa Catarina Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Administração de Enfermagem e Saúde. Florianópolis, SC, Brasil. alacoque@newsite.com.br

Correspondência Correspondência: Dirce Stein Backes Rua Duque de Caxias, 938 CEP. 97010-200 - Santa Maria, RS, Brasil

RESUMO

Objetivou-se compreender o significado da prática social do enfermeiro na perspectiva luhmanniana e possibilitar um debate acerca da construção de um código específico para a área que vá além do tradicional código saúde-doença predominante no sistema de saúde, cuja comunicação socialmente relevante é a doença. Utilizou-se como referencial metodológico a Grounded Theory e como técnica de coleta de dados uma entrevista realizada com 35 participantes, entre maio e dezembro de 2007. A codificação e análise dos dados permitem concluir que apostar na enfermagem como um sistema funcionalmente diferenciado implica em desenvolver um código binário que potencialize a saúde como comunicação socialmente relevante e o ser humano como um ser social, inserido em uma realidade complexa e multidimensional.

Descritores: Cuidados de enfermagem. Papel do profissional de enfermagem. Responsabilidade social. Teoria de sistemas.

RESUMEN

Se objetivó comprender el significado de la práctica social del enfermero en la perspectiva luhmanniana, con el sentido de posibilitar un debate acerca de la construcción de un código específico para el área, que vaya más allá del tradicional código salud-enfermedad predominante en el sistema de salud, cuya comunicación socialmente relevante es la enfermedad. Se utilizó como referencial metodológico la Grounded Theory y como técnica de recolección de datos la entrevista, efectuada a 35 participantes entre mayo y diciembre de 2007. La codificación y análisis de los datos permiten concluir en que apostar a la enfermería como un sistema funcionalmente diferenciado, implica desarrollar un código binario que potencialice a la salud como comunicación socialmente relevante, y al ser humano como a un ser social, insertado en una realidad compleja y multidimensional.

Descriptores: Atención de enfermería. Rol de la enfermera. Responsabilidad social. Teoría de sistemas.

INTRODUÇÃO

Os diferentes sistemas funcionalmente diferenciados, dentre eles o sistema de saúde, precisam encontrar caminhos alternativos e ao mesmo tempo suficientemente complexos para responder à altura dos problemas sociais emergentes(1-2). Não é buscando estratégias fora da sociedade ou fora do sistema que se encontra a solução para os problemas, mas é criando estratégias internas, a partir da integração da ordem e desordem, das certezas e incertezas que se consegue possibilitar novos e diferentes olhares.

Na perspectiva luhmanniana, o entorno do sistema é condição para manter a identidade dos sistemas sociais, visto que a identidade somente é possível através da diferenciação(1). O sistema, à medida que estabelece relações e interações com seus elementos constitutivos, os faz com base nas exigências que se estabelecem no seu entorno. Desse modo, os sistemas são orientados pelo seu entorno, não apenas de forma ocasional e por adaptação seletiva, mas de modo especial pelas suas estruturas funcionais.

Para que um determinado sistema social se diferencie funcionalmente ele necessita, na concepção luhmanniana, garantir a sua própria comunicação mediante um código binário(3); isto é, mediante um código de distinção de duas possibilidades comunicativas, como no caso saúde-doença, o qual identifica o sistema de saúde e capacita-o a gerar novas comunicações(4-8).

Garantir a própria comunicação mediante um código binário implica, nessa direção, desenvolver a distinção de duas possibilidades comunicativas, como já fora dito anteriormente. No sistema de saúde, por exemplo, a comunicação se estabelece por meio do código de diferenciação saúde-doença. Nessa relação, no entanto, a doença é frequentemente considerada o ponto positivo e a saúde o ponto negativo do processo de diferenciação. Consequentemente, o saber da medicina e dos demais profissionais da saúde se orienta com base na doença do indivíduo e a comunicação socialmente relevante é reduzida à doença(7-8).

Para ser considerado um sistema funcionalmente diferenciado e autônomo, a enfermagem precisa garantir, gradativamente, a sua própria comunicação mediante um código específico(6); mas a partir de uma relação de dependência e interdependência com os demais sistemas, a fim de responder de forma ampla, pró-ativa e resolutiva à função social. Nessa interdependência sistêmica não existe, na concepção luhmanniana, uma relação de importância de um sistema sobre o outro, mas uma relação de diferença, de complementaridade e dialogicidade.

Sob esse enfoque, é possível pensar num código específico para a enfermagem como prática social sistêmica, que não seja o tradicional código saúde-doença predominante no sistema de saúde, cuja comunicação socialmente relevante é a doença? Como considerar a complexidade do processo saúde-doença com vistas a superar os reducionismos das ciências duras, que buscam dominar seu objeto e generalizar as conclusões? Que novos conhecimentos necessitam ser gerados ou ampliados na enfermagem/saúde a fim de ampliar e compreender as múltiplas variáveis que envolvem o processo saúde-doença?

Já existem algumas razões para se pensar num código binário específico para a área da enfermagem. Pesquisadores alemães, mais especificamente, discutem alguns códigos que podem ser considerados pelo sistema de enfermagem(4). Um deles diz respeito ao cuidado-descuidado, outro à necessidade de cuidado - não necessidade de cuidado e um terceiro à competência para o cuidado - não competência para o cuidado. Sem querer chegar a definições conclusivas, o autor em questão opta, em suas discussões, pelo código competência para o cuidado - não competência para o cuidado, visto que com esta diferenciação, o sistema é capaz de garantir a própria comunicação, sem excluir as demais possibilidades interativas e associativas.

É somente mediante um código específico que se pode pensar na auto-referência, isto é, em um sistema autônomo. Os sistemas autônomos, na compreensão luhmanniana, não se apóiam mais em regras morais, religiosas ou em camadas sociais, mas se identificam por possuírem uma função diferenciada no modo de produzir conhecimento e o produto de sua práxis. Nessas condições, o sistema de enfermagem precisa, crescentemente, ampliar e definir melhor o produto de sua práxis, ou seja, a sua identidade e especificidade comunicativa no contexto social atual.

Nesse processo, contudo, o sistema de enfermagem não pode ser considerado um sistema independente e/ou desconectado dos demais sistemas sociais parciais, visto que é capaz de influenciar apenas parcialmente o viver saudável dos indivíduos, famílias e comunidades. Grande parte, ou talvez a maior parte, recai sobre outros sistemas sociais, responsáveis por uma determinada dimensão do cuidado ao ser humano como ser singular e multidimensional.

A importância de um sistema, sob este enfoque, não estará mais na posição estrutural e/ou hierárquica, mas na diferenciação funcional e na capacidade de engendrar complexidade própria para reduzir a complexidade do entorno. Dito de outro modo, o sistema de enfermagem ou qualquer outro sistema, será caracterizado e reconhecido pela capacidade de desenvolver e estabelecer novas e sempre mais complexas comunicações, no sentido de regenerar continuamente a rede de relações, interações e associações.

Para os sociólogos alemães, a enfermagem é uma prática social por excelência. Uma prática, todavia, que se desenvolveu por meio do código saúde-doença e, consequentemente, sob a hegemonia do saber médico. Uma ciência que se desenvolveu e consolidou com base em práticas assistencialistas e num contexto em que prevalece o enfoque doença como o centro de interesses(8). Outro autor observa, que nas instituições de saúde o paciente é muitas vezes reduzido à doença e o médico transformado em Deus Criador(9); fato este que contribui para a predominância de um modelo divisível, ineficiente e unidimensional do sistema de saúde.

Com base no exposto e na tentativa de aprofundar e ampliar as discussões acerca da temática, o presente estudo teve por objetivo compreender o significado da prática social do enfermeiro na perspectiva luhmanniana, no sentido de possibilitar um debate acerca da construção de um código específico para a área, que não seja o tradicional código saúde-doença predominante no sistema de saúde, cuja comunicação socialmente relevante é a doença.

MÉTODO

Trata-se de um estudo qualitativo exploratório, orientado pelo método Grounded Theory, ou também chamado Teoria Fundamentada nos Dados (TFD).

Na Grounded Theory, a coleta de dados se constitui num processo amplo, tendo em vista que muitas coisas podem ser consideradas dados(10). Optou-se, no entanto, para este estudo, pela técnica de entrevista em profundidade. No total, foram entrevistados 35 participantes de diferentes estados do Brasil e de diferentes áreas de atuação, como: uma universidade pública, uma universidade privada, duas Unidades Básicas de Saúde, uma Secretaria Estadual de Saúde, um Projeto de Inclusão Social e um Programa de Internação Domiciliar. Os participantes foram selecionados de forma aleatória pelas pesquisadoras e mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Considerou-se como critério de inclusão, profissionais reconhecidos como empreendedores sociais e/ou engajados em alguma prática social e como critério de exclusão, participantes que se negaram a assinar o TCLE.

Dentre os participantes encontram-se: vinte enfermeiros, quatro médicos, um odontólogo, um nutricionista, um farmacêutico, dois psicólogos, um teólogo, dois pedagogos, um gerente administrativo e dois jovens, entre dezoito e vinte e quatro anos, integrantes de uma obra social, os quais não exerciam atividade profissional específica.

A coleta e codificação dos dados, etapas processadas de forma sistematizada e comparativa como prevê a Grounded Theory(11-12); foram realizadas entre maio e dezembro de 2007. Os resultados serão discutidos, na sequência, na perspectiva luhmanniana.

Para manter o anonimato das informações, os participantes da pesquisa serão identificados, ao longo do texto, pela letra P (Participante) seguida de um número correspondente à fala.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Cataria (UFSC), sob o número 052/07.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Os dados codificados e analisados refletem que a enfermagem possui possibilidades e potencialidade que garantem a diferenciação funcional da prática social do enfermeiro, mesmo que num contexto marcado pela hegemonia do saber médico e, consequentemente, do foco na doença.

Para os entrevistados, existe uma diferença expressiva na dinâmica organizacional e assistencial do enfermeiro em relação aos demais profissionais da saúde. Um dos profissionais da medicina exemplifica esta diferença dizendo que por todos os serviços de saúde por onde passou, sempre teve como gerência do serviço um enfermeiro e que, por este motivo, traz muito presente a figura do enfermeiro como sendo um profissional comprometido, responsável e capaz de tocar os serviços de saúde (P9).

Pelo fato de compreender o indivíduo como um todo, o enfermeiro consegue, no entender dos entrevistados, estabelecer uma identificação mais próxima com as necessidades sociais dos indivíduos, famílias e comunidades, além de manter uma interação mais intensa com as diferentes realidades. Consegue perceber e apreender os problemas e necessidades sociais de forma real e contextualizada. Para alguns profissionais, a própria formação e vínculo de trabalho favorecem para que o enfermeiro tenha um maior comprometimento e envolvimento sistêmico.

A formação específica... e o próprio vínculo de trabalho faz com que a enfermagem seja mais comprometida com o sistema de saúde (P11).

Eu acho que o enfermeiro tem uma identificação muito grande com as questões sociais. Ele enxerga as necessidades muito mais materializadas e a interação é muito intensa. O enfermeiro, eu acho, ele tem o papel de ser responsável pela saúde. Ele trabalha o conceito de saúde em plenitude, na sua prática do dia-a-dia. Ele utiliza os argumentos e ferramentas dos demais profissionais da saúde para estabelecer o cuidado completo... A enfermagem tem uma imagem muito consolidada do cuidado como um todo. O médico vem rapidamente, olha o paciente e vira as costas e a enfermeira toma conta do paciente como um todo (P14).

Nessa direção, os resultados evidenciam que a enfermagem possui especificidades que a distinguem dos demais sistemas funcionalmente diferenciados, à medida que acrescenta novos elementos à prática social, pela ênfase no viver saudável do ser humano como um ser singular e multidimensional. Na compreensão dos entrevistados:

O enfermeiro tem o papel da saúde, mas precisa desenvolver o empreendedorismo da saúde (P10).

Diferentemente da medicina, a enfermagem tem a questão da saúde junto das pessoas e isto é próprio dela (P16).

Com base nos argumentos anteriores, a comunicação socialmente relevante da enfermagem é o

cuidado do processo de viver saudável do indivíduo (P11),

mesmo que este esteja acometido por uma doença. Entende-se, nessa perspectiva, o cuidado de enfermagem como um fenômeno complexo por excelência, capaz de transcender qualquer dimensão de espaço, tempo, função, sistema(13); ou seja, capaz de transcender o enfoque simplificado do tradicional código saúde-doença, no qual o indivíduo frequentemente é reduzido à doença - indivíduo doente.

Para os entrevistados, o enfermeiro é um dos profissionais da saúde que mais se envolve com as necessidades concretas do indivíduo e que melhor compreende o processo de viver humano de forma ampla e contextualizada. É um dos profissionais que não se limita à dimensão física ou patológica, por buscar compreender o indivíduo como um todo integrado, como um ser complexo e multidimensional(14). Logo, possibilita criar vínculos, relações e interações sistêmicas, tanto com os usuários quanto com os demais sistemas parciais, a fim de garantir a resolutividade do cuidado em saúde, pela compreensão do ser humano como um ser integral e integrador, conforme refletem as falas a seguir:

[...] os sociólogos não poderiam ter outra classificação... para eles a enfermagem vem da medicina. Sobre o controle da medicina. Eu acho que não. Porque o forte da medicina é a patologia... Se olharmos para o momento social atual, se vamos desenvolver uma visão sobre a patologia, então vamos perecer. É preciso desenvolver a saúde e a enfermagem tem o papel da saúde (P20).

O enfermeiro trabalha o conceito de saúde em plenitude na sua prática do dia-a-dia. Ele utiliza os argumentos e ferramentas dos demais profissionais da saúde para estabelecer o cuidado completo... A enfermagem tem uma imagem muito consolidada do cuidado como um todo. O médico vem rapidamente, olha o paciente e vira as costas e o enfermeiro toma conta do paciente como um todo (P12).

Nós estamos com o cuidado da saúde. O médico está com o cuidado da doença. Nós estamos cuidando do cliente como um todo. O enfermeiro, na equipe, articula, ele olha o todo. Nós prestamos um cuidado holístico, integral e por isto empreendedor (P23).

A enfermagem tem algo que a sustenta e que não vai morrer nunca, pela questão de ajudar as pessoas a resolverem suas necessidades de saúde. Os outros profissionais podem também cuidar, mas eles não conseguem dar conta do contexto mais amplo das necessidades das pessoas. A enfermagem, ela tem a compreensão de que ela tem domínio de grande parte das atividades de saúde (P28).

O cliente, por exemplo, ele tem muito mais liberdade e confiança no enfermeiro do que com outro profissional, pela paciência de ouvir. O enfermeiro dá mais carinho, mais atenção, mais segurança e é isso que as pessoas procuram (P31).

Garantir a própria comunicação mediante um código binário, na perspectiva luhmanniana, implica em desenvolver a distinção de duas possibilidades comunicativas, capazes de identificar o sistema e capacitá-lo a gerar novas comunicações(3). Diferentemente do tradicional e hegemônico código saúde-doença, no qual o foco de interesses é a doença - indivíduo doente, a enfermagem vem se distinguindo, conforme evidenciado pelos entrevistados, pela capacidade de interagir e compreender as variáveis múltiplas que envolvem o processo de viver saudável dos indivíduos, famílias e comunidades. O seu foco de atenção e intervenções transcende a dimensão fisiopatológica da doença como um fim em si mesmo. Essa compreensão foi evidenciada tanto na fala dos usuários quanto dos profissionais ao mencionarem que sempre que necessitam encaminhar algum familiar para a Unidade de Saúde, o encaminham diretamente para o enfermeiro por ser ele o profissional que compreende o paciente em suas necessidades reais e procura encaminhá-lo da melhor forma possível. Nessa relação, o enfermeiro se distingue pela habilidade e sensibilidade de compreender a competência para o cuidado - não competência para o cuidado, ou seja, de ampliar a auto-competência para o cuidado do indivíduo e família, código binário mais considerado para a diferenciação do sistema de enfermagem(4).

A competência para o cuidado - não competência para o cuidado se traduz na capacidade de integrar a ordem e desordem e, por meio de um processo dialógico, ampliar as possibilidades interativas pela apreensão do ser humano não apenas como um ser individual, mas um sujeito social e protagonista da sua própria história.

Não adianta eu atender a Mariazinha na emergência com alterações na pressão arterial se eu não olhar para a realidade dela, para o marido que bate, para o emprego que não tem. Então é esta lógica de você não perceber o sujeito da ação como um ser individual, mas de vê-lo como um sujeito social. E hoje a profissão que mais tem esta lógica é a enfermagem. Vendo os outros profissionais, o dentista, o médico, o psicólogo, o fisioterapeuta, eles ainda são muito pontuais naquilo que pensam e fazem (P18).

Outro argumento que evidencia que a enfermagem pode ser considerada um sistema funcionalmente diferenciado está relacionado à fala de um dos profissionais da medicina, ao mencionar que enquanto integrante do Fórum que coordena às mudanças curriculares em todo o país as discussões tem convergido, cada vez mais, no sentido de compreender as especificidades da função do enfermeiro, ou seja, a comunicação específica do sistema de enfermagem. No entender dos entrevistados, a enfermagem possui especificidades que se destacam e distinguem na equipe de saúde, as quais estão relacionadas à organização, à compreensão do ser humano como um todo, à capacidade interativa e integrativa com os diferentes saberes, enfim, ao modo como os profissionais agem e reagem diante das situações adversas e contraditórias em que os usuários muitas vezes se encontram.

A enfermagem tem um diferencial. É a necessidade de ajudar as pessoas a resolverem os seus problemas de saúde. Os outros profissionais também cuidam, mas não se envolvem de modo tão intenso com as necessidades da pessoa (P2).

Eu valorizo tudo o que a pessoa fala. Eu me coloco no lugar da pessoa. Se ele me conta uma situação, eu tento imaginá-la e procuro dar um sentido ao que a pessoa fala... procuro dar uma resposta ou encaminhar a situação da melhor forma (P7).

O enfermeiro é o profissional que tem a vivência tanto do ponto de vista psicológico, físico e técnico. Ele é aglutinador do cuidado em saúde. Ele se identifica muito mais com as necessidades do usuário do que os demais profissionais. O enfermeiro já tem consolidado este saber. Os demais profissionais, ou seja, o psicólogo, o nutricionista, o farmacêutico, eles não tem este papel tão corpo a corpo, tão intenso como o profissional da enfermagem (P11).

A diferenciação funcional sistêmica amplia e potencializa, na perspectiva luhmannina, a concepção de ser humano como sujeito ativo, participativo e interativo na vida social. Integrando o entorno do sistema, o ser humano é capaz de aumentar gradativamente a complexidade própria para reduzir a complexidade do entorno, ou seja, é através do processo de subjetivação e inserção nos processos interativos, que o ser humano estabelece relações dialógicas e dialéticas com os diferentes setores e atores sociais. A enfermagem, sob esse enfoque, tem a possibilidade de ir além dos reducionismos provocados pelo enfoque - indivíduo doente e possibilitar um novo código de diferenciação, que tenha como centralidade o processo de viver saudável do ser humano, pela potencialização das práticas educativas e de promoção da saúde dos indivíduos, famílias e comunidades(8).

Pensar na enfermagem como um sistema funcionalmente diferenciado e autônomo significa, na perspectiva luhmanniana, desenvolver um código de diferenciação funcional integrado e articulado em rede com os demais sistemas sociais parciais. Na equipe de saúde a enfermagem já exerce um papel articulador e integrador pela capacidade de ligar e interligar os diferentes saberes, conforme reflete a fala, a seguir:

[...] o enfermeiro é um profissional com habilidades definidas, com vida própria. Mas, de qualquer forma, eu não tenho dúvidas que ele é um elo de ligação fundamental, que ele tem um papel complementar vital na equipe de saúde (P19).

A partir da visão sistêmico-complexa luhmanniana é possível argumentar, que a prática social sistêmica do enfermeiro é constituída e ao mesmo tempo constitui um movimento de diferenciação sistema-entorno, potencializado pelas múltiplas relações, interações e associações entre os sistemas funcionalmente diferenciados. Sob esse olhar, a diferenciação sistêmica é condição fundamental para o desenvolvimento de ações pró-ativas e empreendedoras no campo social.

Empreender socialmente por meio de um código de diferenciação funcional implica em investir forças no sentido de desenvolver novos referenciais capazes de superar o tradicional e hegemônico código de diferenciação saúde-doença, cuja comunicação socialmente relevante é a doença. Implica em desenvolver referenciais focados no viver saudável dos indivíduos e famílias, ou seja, práticas que tenham como foco o bem-estar do ser humano em suas diferentes dimensões.

A área de enfermagem, sob o enfoque luhmanniano, possui características específicas que a distinguem dos demais sistemas funcionalmente diferenciados e ao mesmo tempo possui uma comunicação socialmente relevante, centrada na compreensão do ser humano como um ser singular e multidimensional. E por compreender o processo de viver humano como um todo, há razões suficientes para se argumentar que o foco do cuidado de enfermagem como prática social sistêmica está voltado para o viver saudável ou a saúde do indivíduo, inserido na rede de relações e interações sociais. Nesse sentido, o enfermeiro busca gradativamente inovar, criar e protagonizar novas formas de intervenção social, seja pelo ensino, a pesquisa ou a extensão.

CONCLUSÃO

Compreender o significado da prática social do enfermeiro na perspectiva luhmanniana, no sentido de possibilitar um debate acerca da construção de um código específico que vá além do tradicional código saúde-doença predominante no sistema de saúde, não se constitui numa discussão simples e nem mesmo de fácil aceitação, principalmente em uma sociedade marcada pela hegemonia de uns sobre os outros ou numa sociedade em que a "saúde" é objeto de interesses políticos e ideológicos. É uma discussão, portanto, no mínimo necessária e pertinente para dar conta e fazer frente à crescente complexidade dos problemas sociais, os quais têm relação direta com as questões de saúde.

Sendo uma profissão central no sistema de saúde, a enfermagem se destaca e diferencia pelas práticas interativas e integradoras de cuidado, às quais vêm adquirindo uma repercussão cada vez maior tanto na educação e promoção quanto na recuperação e proteção da saúde dos indivíduos. Sem grandes premeditações é possível argumentar que a enfermagem é uma profissão eminentemente social e se configura crescentemente como a profissão do futuro, pela possibilidade de compreender o indivíduo não como um ser doente, mas como um ser complexo e com potencial auto-organizador, por isso, participe e autor da sua própria história. Basta, no entanto, que a enfermagem invista em atitudes pró-ativas, capazes de promover a saúde dos indivíduos pela ampliação das oportunidades e possibilidades reais.

Apostar na enfermagem como um sistema funcionalmente diferenciado implica em desenvolver um código binário específico. Um código que tenha como o foco da prática social do enfermeiro a geração de novas comunicações centradas na ampliação das competências - auto-competências para o cuidado - dos indivíduos e famílias. Esse processo requer, no entanto, inovação, criatividade, ousadia e a capacidade de protagonizar e visualizar novos espaços de atuação profissional por meio do ensino, da pesquisa e da extensão. Requer, igualmente, uma mudança no modelo relacional e assistencial, pelo desenvolvimento de ações estratégicas que potencializam o viver saudável como comunicação socialmente relevante e o ser humano como um ser social, inserido em uma realidade complexa e multidimensional.

O pensamento sistêmico luhmanniano evidencia, em um nível teórico e prático, que métodos tradicionais são cada vez menos eficientes para intervir de forma pró-ativa e resolutiva nas chamadas questões sociais e de saúde, visto que o ser humano está inserido em uma rede de relações e interações complexas, compreendidas somente à luz de referenciais que abarcam a multidimensionalidade dos fenômenos.

Recebido: 09/02/2009

Aprovado: 26/04/2010

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  • Correspondência:

    Dirce Stein Backes
    Rua Duque de Caxias, 938
    CEP. 97010-200 - Santa Maria, RS, Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2011

    Histórico

    • Recebido
      09 Fev 2009
    • Aceito
      26 Abr 2010
    Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
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