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Enfermagem: um passaporte para a primeira fila

Nursing: a passport to the first line

ARTIGO ORIGINAL

Enfermagem: um passaporte para a primeira fila* * Aula inaugural proferida aos alunos ingressantes da EEUSP em 1996.

Nursing: a passport to the first line

Margareth Angelo

Professor Doutor do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica e Presidente da Comissão de Graduação da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo

Seria impossível iniciar minha mensagem sem usar uma idéia irresistível que me ocorreu, assim que comecei a pensar no que lhes falaria hoje. Na verdade é mais uma constatação, da qual não consegui me afastar.

Assim, aqui vai: esta é a última turma a se formar por esta escola neste milênio. A turma de 1996-1999.

Não há como negar que esta é de fato uma idéia irresistível sobre a qual trabalhar como tema para este momento.

Ela possibilita inúmeras abordagens, visto conter inúmeros significados. Ela diz respeito aquele futuro a que nos referíamos no passado, quando apontávamos para o ano 2000. E ele já está aí.

Houve um tempo, não tão distante, em que indagávamos sobre: como estaria o mundo no ano 2000? Como será viver no ano 2000? Aquele excesso de imaginação está perto de se transformar em constatação.

Dentro de 4 anos estaremos lá, eu espero, e muitos de nós juntos, para viver a realidade do novo milênio. Para mim isto é algo fantástico.

Não se trata apenas de acrescentar mais um número ao calendário. É muito mais. É a possibilidade de concretização de planos projetados para o futuro, e ter o futuro como presente, nos coloca diante do sonhado em processo de realização.

Todo o mundo está se preparando para o ano 2000; todas as áreas. Até mesmo o planeta, parece estar mais rápido, acomodando-se e reagindo de maneira cada vez mais evidente As experiências que vivencia.

A todo instante, ouvimos falar sobre globalização, que o caminho do futuro é um mundo sem fronteiras, que o mundo está se tornando cada vez menor.

Todas estas afirmações, não se tratam de frases de efeito, ou jargões automaticamente incorporados ao linguajar do cotidiano. Eles, foram incorporados sim, mas exatamente porque refletem o processo de transformação experienciado por todo o planeta, incluindo os seres que nele habitam, no limiar do novo milênio.

Mesmo a enfermagem, o caminho que nós aqui optamos trilhar, como nossa contribuição à humanidade da qual fazemos parte, experimenta a influência deste processo. Todo mundo se defronta com uma consciência crescente, com a desorganização ou nova organização que resulta do processo. E com a enfermagem não está sendo diferente. Para quem está chegando agora ao mundo da enfermagem, saibam que o processo global que estamos vivendo, tem possibilitado a (re) -organização da profissão.

Hoje, a enfermagem não é mais apenas realizar tarefas prescritas. Até há algum tempo, a enfermagem atraia pessoas mais pelas tarefas a realizar do que pelo potencial profissional e de conhecimento que continha. Durante muito tempo, a enfermagem foi vista como executando práticas delegadas e tornando-se os olhos, ouvidos e mãos de outros profissionais, quando era necessário ou conveniente.

Hoje, isto não é mais uma verdade. A prática de enfermagem não é prática de enfermagem apenas porque enfermeiros a realizam. A prática de enfermagem é prática de enfermagem, porque é baseada em conhecimento de enfermagem. Isto significa uma profunda diferença, não apenas na própria profissão mas na natureza das interações profissionais, nas relações enfermeiro-paciente e na qualidade de vida das pessoas cuidadas.

Enfermagem baseada em teorias, em pesquisa, é hoje uma realidade incontestável e confirma o lugar de contribuição peculiar da enfermagem no contexto de cuidado de saúde.

Não pretendo com esta fala, fazer qualquer previsão a respeito da enfermagem ou do próximo milênio. Não tenho este dom. Mas posso partilhar algumas idéias e conhecimentos sobre a experiência de aprender e de viver a enfermagem. desenvolvidos ao longo de uma trajetória que com o passar do tempo está ficando longa e muito rica .

Ser um aluno de enfermagem pode significar muitas coisas, já que vai implicar na vivência de muitas experiências de aprendizagem, algumas organizadas pelo currículo, outras determinadas pela vida, ou se preferirem, destino. É exatamente como a aventura de viver, algumas coisas sabemos que acontecerão, outras nos aguardam sem que esperemos, umas serão classificadas como boas experiências, outras como indesejáveis, porém inevitáveis. O fato é que estaremos o tempo todo vivendo e aprendendo algo, não apenas para fazer coisas que enfermeiros fazem, mas para vivermos como seres humanos dotados do conhecimento da enfermagem.

Vocês podem não ter consciência disso, mas este fato nos torna pessoas com características muito especiais.

A escola tem muito a oferecer, já que aqui, vocês aprenderão teorias de enfermagem e fundamentos das experiências humanas, não como simples matérias de um curso, mas como substâncias essenciais da enfermagem.

Não estou aqui para dar-lhes uma aula sobre enfermagem, mas para encorajá-los a conhece-la .

Fazer enfermagem é uma oportunidade de estar na primeira fila de um espetáculo chamado experiência humana em saúde .Para algumas pessoas, estar na primeira fila pode significar estar mais perto para presenciar dor e sofrimento, mas para mim tem um significado bastante diferente.

Estar na primeira fila representa para mim a possibilidade de testemunhar como a vida, a experiência humana é bonita e grandiosa. É ver de perto como o homem pode transcender os obstáculos e crescer justamente por causa deles.

Os que não vêem assim, sentem-se desanimados, ficam entediados como diante de um espetáculo já conhecido. Pensam: "Ora, é mais um outro paciente com AIDS. Eu já conheço tudo o que ele vai passar" . E assim pensando vão para uma fila mais distante, achando que de longe terão uma visão melhor ou pelo menos ficarão mais confortáveis.

Mas há os que insistem em ficar na primeira fila, mesmo sabendo tudo o que aquele paciente vai passar, porque sabem também que não é apenas isso que acontece: passar por experiências como colher exames, tomar toneladas de medicamentos, ficar dias sem se levantar da cama, não conseguir se alimentar. De fato, é verdade que as experiências são comuns. Mas elas são também apenas aparências. Na essência da cena já conhecida está o inédito, que é, alguém vivendo uma intensa experiência humana de superação de obstáculos e sofrimentos. E é somente estando na primeira fila, que é, possível ver todos os detalhes, todos os fenômenos contidos neste drama pessoal. A verdade interna única contida naquele, que poderia ser mais um diagnóstico comum.

No final do ano passado eu fui assistir a apresentação de um balé, e me sentei na primeira fila. Durante todo o espetáculo eu pude ver, não somente as piruetas, o desempenho dos bailarinos, mas eu vi também seus rostos, o empenho deles, o alívio, a emoção de cada um. No final, na hora dos aplausos, eu conscientemente aplaudi cada um com a mesma intensidade e admiração desde a criança que com muito cuidado transportava uma lamparina, até a primeira bailarina, que foi fantástica em sua atuação. Mas porque eu estava lá tão perto, eu sabia que cada um deu o melhor de si, e portanto em termos de transcender dificuldades, fizeram igualmente o melhor que podiam.

No entanto, aqueles que estavam mais ao fundo da platéia, por contemplarem o resultado global do espetáculo, aplaudiram com mais entusiasmo a bailarina mais experiente. Não sei se da distância em que se encontravam, conseguiram perceber o ar de desapontamento que esta diferença tão evidente na intensidade do aplauso provocou em uma das bailarinas, que sabia ter tido também um desempenho irrepreensível.

Enfermagem é um pouco assim. Não trabalhamos acreditando que somente a cura é o desempenho fantástico de nossos pacientes. Muitas vezes aquele que aparentemente foi derrotado pela doença, pode ter vivido cada uma das situações com dignidade e altivez, sendo que a morte não representa derrota, mas apenas o final honrado de sua experiência nesta vida.

Quando me perguntam se eu acredito em enfermagem, eu costumo dizer "Eu não acredito, eu conheço enfermagem". E porque conheço, sei de todo o potencial que a enfermagem tem para o ser humano e da contribuição que seu conhecimento pode dar para a qualidade de vida da pessoas. Sei a diferença que a enfermagem podem fazer.

A escola dá a oportunidade para conhecer a enfermagem. Tal qual a experiência inicial com um paciente que nos parece estranho, ameaçador. Com o passar do tempo, com as oportunidades que temos em nossas interações, ele passa a ser conhecido e portanto amado. Nós não amamos aquilo que não conhecemos; podemos dizer que acreditamos, que confiamos, mas não que amamos.

Enfermagem para muitos aqui presentes, é uma idéia na qual acreditam. Algo bonito, nobre, que demanda sacrifício, muito trabalho.

A escola vai lhes dar a oportunidade de transformarem a crença em conhecimento, passar do "eu acredito", para o "eu sei".

Será uma longa jornada, que demandará de cada um o pleno envolvimento com sua experiência pessoal.

Digo isto, porque sei que apesar de estarem previstas experiências comuns a todos os alunos, cada um vai vivê-las a seu próprio modo e possibilidade, segundo sua verdade própria.

Quanto mais perto da primeira fila estiver a verdade, melhor cada um se sentirá, apesar de nem sempre ser muito confortável a primeira fila: pode espirrar água, o ator pode cair no seu colo. Mas você vê e sente tudo o que está se passando. E isto vale também para o que se passa dentro de nós A medida que vivemos as experiências.

Temos que estar também na primeira fila do nosso próprio espetáculo pessoal, ou seja, estar no meio de nossa verdade central. Isto pode parecer um pouco complicado, até porque não estamos acostumados a pensar nisso.

Nossa verdade não é para ser esquecida. Ela é justamente aquilo que cada um tem no seu interior, bem lá dentro. Quando cada um se refere a si mesmo, apontando-se, não apontamos a cabeça, o cotovelo, mas vamos direto ao centro do peito. Isto não ocorre porque está próximo da mão, pois a mão alcança rapidamente qualquer parte do corpo. Este ato ocorre justamente porque é onde se localiza o nosso centro, a nossa verdade, o nosso eu.

Parem um pouco, olhem para dentro deste ponto onde vocês tocam quando dizem eu; reflitam sobre a verdade ali contida.

Vocês estão começando uma trajetória. Talvez alguns de vocês queiram registrar a verdade que identificam agora em si mesmos: como se sentem, como pensam a enfermagem. Seria interessante se o fizessem e acompanhassem a evolução pela qual essa verdade passa ao longo do tempo.

Olhar para o que se passa em nosso interior é ser centrado, e é exatamente o que nos permite continuar na primeira fila, mesmo já conhecendo alguns dos espetáculos. Ele pode ser conhecido para mim, mas ser totalmente novo para meu paciente. E é justamente este fato que torna a experiência inédita, inclusive para mim. enquanto pessoa e enfermeira.

Ser centrado que deve ser aprendido, não como algo inerente ao nosso papel como enfermeiros, mas como algo essencial ao nosso desempenho como seres humanos comprometidos com a vida, não apenas humana.

Ser centrado é ter auto-domínio. Eu tenho um certo receio de pronunciar esta expressão, porque ela é fatalmente mal interpretada. Mas minha verdade me diz que eu devo falar sobre isso.

Auto-domínio, não é indiferença, frieza, que são atributos próximos de estar na última fila. Auto-domínio é ser tranquilo, calmo. E não se deixar afetar, permanecer firme em qualquer situação, seja ela boa ou má. Existe uma frase em sânscrito, que traduzida significa "sofrimento ou felicidade, mente firme". Esta representa a certeza de que não há de fato bem ou mal, mas que tudo é uma questão de como reagimos.

O auto-domínio é um estado interior, que já existe em cada um. As experiências que vivemos não servem portanto para criá-lo, mas para re-encontrá-lo.

Mas o que tudo isso tem a ver com faculdade, com tantas coisas a estudar, a resolver. Parece não haver muito lugar para filosofia existencial. Mas é justamente pelo tanto que nos espera que precisamos reservar um lugar para o nosso interior, que é o que nos possibilitará viver plenamente as nossas experiências, não desistir de nossos sonhos. A considerar não somente nossas perspectivas enquanto profissionais, mas da nossa própria vida.

Algumas vezes todos nós precisamos de uma injeção de ânimo, para continuar, para não desanimar, para ser forte. Como enfermeiros precisamos saber como ajudar o outro a lidar com a vida, mas não é raro não sabermos como lidar com nossa própria vida. E esta sensação de impotência, interfere em nossa verdade e interna e nos tira do eixo. Por isso precisamos de algo que nos devolva ao eixo. Esse algo é o auto-controle, pois ele nos ajuda a ter a consciência do que fazer e porque fazer. Não é apenas o conhecimento que acumulamos que nos ajuda a tomar decisões e agir, mas é também a consciência do uso que fazemos desse conhecimento.

Por isso, a idéia do ser centrado é apropriada, medida em que é o que nos capacita a não perder aquilo que temos dentro de nós, principalmente a esperança que certamente está presente em cada um neste momento. Este momento de hoje significa nascimento, e como todo nascimento representa também transição daquilo que era para o que será, e por isso também de novidade e medo.

Cada um está aqui por diferentes motivos. Alguns por curiosidade, outros pela verdade interna e uns tantos por desespero. O que isto significa? Significa que aqui reunidas estão pessoas com diferentes capacidades de estar, de dar e de receber, de viver a enfermagem e o que ela contém.

Ser centrado é essencial para a aventura de viver. Quando olhamos para as coisas que aprendemos a cada dia, a aprendizagem da vida passa a tomar a forma da auto-consciência, de estar no mundo, de ser transformado e poder transformar o mundo.

Não sei se isto os preparará para o próximo milênio, mesmo porque não é esta a minha intenção, mas sei que os capacitará a viver centradamente cada dia, derrubando ou transformando uma a uma as barreiras que limitam o desenvolvimento e a plenitude da pessoa humana que existe em cada um de vocês.

Quando vocês tiverem, não mais a crença mas o conhecimento que só a vivência pode dar, do que representa viver plenamente, vocês saberão também como utilizar este conhecimento para atender aos objetivos da saúde, cura ou qualidade de vida das pessoas sob seus cuidados.

O que vivemos hoje na enfermagem certamente é a materialização das visões de enfermeiros que nos antecederam no tempo.

Minha visão para o futuro, é a de enfermeiros profundamente centrados, conscientemente usando e produzindo conhecimento de enfermagem, partilhando as experiências humanas na primeira fila.

Isto pode ser um sonho. Mas sonho é pensamento, que facilmente se transforma em planejamento e realização. Às vezes é apenas uma questão de tempo e oportunidade. De qualquer maneira, eu sonho ultrapassar a milênio e continuar na primeira fila das experiências humanas. E espero também encontrar muitos de vocês lá, quem sabe empenhando-se para materializar a visão que lhes apresentei.

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    Aula inaugural proferida aos alunos ingressantes da EEUSP em 1996.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Mar 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 1996
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