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Caso 1/2014 - Homem de 24 Anos de Idade com Ventrículo Único do Tipo Esquerdo em Hipóxia Crônica

Cardiopatias Congênitas; Procedimento de Blalock-Taussig; Técnica de Fontan; Estenose de Valva Pulmonar; Adulto

Dados clínicos: Cansaço aos pequenos esforços e acentuação da cianose são notados há dois anos. Foi operado com 17 dias e com nove meses para Blalock-Taussig à direita e à esquerda, respectivamente. Manteve-se com saturação acima de 85%, mas Hct = 65% e Hg = 19 g/dl orientaram a realização de Glenn bidirecional com 19 anos. Cateterismo cardíaco com 20 anos revelou pressão média pulmonar de 22 mmHg, o que postergou a indicação operatória para completar o princípio de Fontan. Permaneceu em uso de AAS, com saturação de oxigênio superior a 80%, Hct = 63% e Hg = 20 g/dl.

Exame físico: Eupneico, cianótico +, pulsos normais, sem turgência jugular. Peso: 58 kg, altura 163 cm, PA: 90/60 mmHg, FC: 78 bpm, saturação de oxigênio = 83%. Aorta palpada ++ na fúrcula.

No precórdio, ictus cordis no 4.º e 5.º espaços intercostais esquerdos e impulsões sistólicas discretas na BEE. Bulhas cardíacas hiperfonéticas; sopro sistólico, ++, rude, BEE e ponta; sopro contínuo discreto na fúrcula. O fígado não era palpado.

Exames complementares

Eletrocardiograma mostrava ritmo sinusal e sinais de sobrecarga biatrial e de ventrículo esquerdo. A onda P era apiculada em I, V2-5 e alargada em II, F, V5-6, com deflexão negativa em V1 e V2. O complexo QRS era de morfologia RS em V1 e Rs em V6. AQRS: +120º, AT: −60º, AP: +40º.

Radiografia de tórax mostrou área cardíaca aumentada em grau discreto (índice cardiotorácico: 0,54) com arcos, ventricular e médio esquerdos longos. A trama vascular pulmonar era aumentada (Figura 1).

Figura 1
Radiografia de tórax mostra área cardíaca aumentada, arcos ventricular e médio esquerdos longos, e trama vascular pulmonar aumentada. O arco médio sugere a aorta emergindo do ventrículo direito à esquerda. Ecocardiograma apical de quatro câmaras salienta, em A, a dupla via de entrada de ventrículo único esquerdo com duas valvas atrioventriculares, e, em B, na mesma projeção, insuficiência moderada da valva atrioventricular direita (mosaico de regurgitação).

Ecocardiograma (Figura 1) mostrou dupla via de entrada de ventrículo único esquerdo com discordância ventriculoarterial, aorta emergindo do ventrículo direito rudimentar à esquerda e atresia valvar pulmonar. O ventrículo principal tinha diâmetro de 80 mm e havia insuficiência da valva atrioventricular, moderada à direita e discreta à esquerda. A função ventricular era de 58% pelo método Sympson. As anastomoses do tipo Blalock-Taussig estavam patentes dos dois lados e Glenn funcionante. As artérias pulmonares eram de calibre adequado, com estenose discreta à esquerda.

Cateterismo e tomografia cardíaca (Figura 2): Visualizou-se um vaso venoso que desviava o fluxo da veia cava superior direita pela veia inominada e daí para o seio coronário. A pressão média da artéria pulmonar era de 17 mmHg e, após o fechamento momentâneo da veia inominada por cateter-balão, passou a 19 mmHg. A resistência vascular pulmonar era de 1,6 UW.

Figura 2
Angiocardiografia cardíaca salienta a veia cava superior direita em conexão com a artéria pulmonar direita de bom calibre e o início do vaso venovenoso em A, que se continua bordeando o coração, em B, e desemboca no átrio direito, em C. A artéria pulmonar esquerda é de bom calibre e com discreto estreitamento pré-hilar em D.

Diagnóstico clínico: Dupla via de entrada de ventrículo único esquerdo, discordância ventriculoarterial com aorta à esquerda, atresia pulmonar, Blalock-Taussig bilateral, Glenn bidirecional, estenose da artéria pulmonar esquerda, insuficiência das valvas atrioventriculares e vaso venovenoso para seio coronário, em hipóxia crônica.

Raciocínio clínico: Os elementos clínicos de cardiopatia cianogênica com hipofluxo pulmonar e hipoxemia de longa data se expressam por cansaço e elevação do hematócrito. As bulhas hiperfonéticas orientam a má posição arterial com obstrução ao fluxo pulmonar, compensado pelas anastomoses sistemicopulmonares, estas exteriorizadas pelo sopro contínuo. Sobrecarga de ventrículo esquerdo no ECG orienta ao diagnóstico de ventrículo único esquerdo, e o surgimento da insuficiência das valvas atrioventriculares decorre da sobrecarga de volume imposta ao longo do tempo. Radiografia de tórax sugere a aorta à esquerda (arco médio longo).

Diagnóstico diferencial: Cardiopatias com ventrículo direito rudimentar do tipo atresia tricúspide se acompanham de hemibloqueio esquerdo. A maior dificuldade diagnóstica diferencial ocorre em presença de outras anomalias que se acompanham de ventrículo direito hipoplásico.

Conduta: Em face da repercussão hipoxêmica de longa data com manifestações clínicas desfavoráveis, a operação cavopulmonar foi indicada, além da correção da insuficiência das valvas atrioventriculares, da ligadura das anastomoses sistemicopulmonares e do vaso venovenoso, mais estenose da artéria pulmonar esquerda. O risco operatório foi estimado acentuado pelo aumento da pressão pulmonar, pela disfunção ventricular apesar de discreta e os outros fatores mencionados, além da idade adulta. A baixa resistência pulmonar com saturação de oxigênio alta constituiu fator atenuante. A programação operatória foi completada com os passos traçados anteriormente. Procedeu-se ao fechamento da valva AV direita, malformada e de difícil reparo. Tubo externo 20 foi inserido entre a veia cava inferior e a artéria pulmonar direita, com fenestração de 4 mm entre o tubo e a cavidade atrial. Evolução imediata foi favorável, com extubação endotraqueal nas primeiras horas, pressão venosa central inferior a 14 mmHg e saturação de oxigênio superior a 90%.

Comentários: Embora seja paliativa a operação de Fontan, com complicadores evolutivos, continua a oferecer boas perspectivas desde que obedeça rigorosamente aos critérios de indicação. No adulto, dados os fatores adquiridos obrigatórios em cardiopatias com sobrecargas de duração prolongada, o risco operatório se torna maior (10%). Nessa circunstância, a dificuldade de indicação cirúrgica reside em aspectos adquiridos, como disfunção ventricular, lesões anatômicas das valvas, além da pressão mais elevada na artéria pulmonar, entre outros. Esses elementos devem ser contrabalançados com a evolução clínica desfavorável decorrente dos elementos representativos da hipóxia crônica. Os benefícios pós-operatórios podem suplantá-los; por isso o raciocínio clínico deve priorizar elementos considerados reversíveis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan 2014

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2013
  • Revisado
    23 Jul 2013
  • Aceito
    30 Jul 2013
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