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Dupla troca valvar por disfunção secundária a tumor carcinoide

RELATO DE CASO

Dupla troca valvar por disfunção secundária a tumor carcinoide

Paulo Manuel Pêgo-Fernandes; André Micheletto Laurino; Danilo de Souza Ferronato; Frederico Perego Costa; Ramez Anbar; Fabio Biscegli Jatene

Hospital Sírio-Libânes, São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Paulo Manuel Pêgo Fernandes Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 Bl. 2, 2 andar, sala 9, Cerqueira César CEP 05403-000, São Paulo, SP - Brasil E-mail: paulo.fernandes@incor.usp.br

Palavras-chave: Tumor Carcinóide, Doença Cardíaca Carcinóide, Cirurgia, Doenças das Valvas Cardíacas.

Introdução

Tumores neuroendócrinos são neoplasias malignas raras capazes de secretar substâncias endócrinas, como a serotonina1,2. O trato gastrointestinal é o sítio preferencial para o tumor primário2,3.

Os sintomas da síndrome carcinoide (manifestação clínica da doença disseminada), como flushing (eritema facial), diarreia, hipotensão, broncoespasmo, estão relacionados à atividade vasoativa dos compostos secretados pelo tumor e muitas vezes são a primeira apresentação do tumor3.

Na progressão da doença, 50% dos pacientes chegam a apresentar doença cardíaca carcinoide4, que acomete as valvas cardíacas direitas, levando à disfunção valvar e à insuficiência cardíaca direita3. O lado esquerdo do coração raramente é atingido, devido à filtração dos produtos tumorais no pulmão5.

A evolução no tratamento aumentou a sobrevida do paciente com a síndrome carcinoide e, com isso, a doença cardíaca carcinoide passou a ser um fator determinante para o prognóstico. O paciente com a doença apresenta sobrevida de 31% no período de três anos em comparação ao percentual de 68% para indivíduos sem evidências ecocardiográficas de envolvimento cardíaco5.

A abordagem terapêutica da doença cardíaca é complexa. O risco cirúrgico, embora decrescente, ainda é significativo devido ao quadro de saúde do paciente. A substituição da válvula cardíaca, ou sua "reparação", é cada vez mais aceita para a doença cardíaca carcinoide. Relatos na literatura demonstram aumento na sobrevida média e a diminuição considerável ou a eliminação dos sintomas6,7.

No ecocardiograma, a imagem típica é o espessamento dos folhetos, causado pela deposição de placas carcinoides no endocárdio das valvas tricúspide e pulmonar, a falha de coaptação, a insuficiência valvar e/ou estenoses, o aumento das câmaras direitas que levam à insuficiência cardíaca direita8.

Evora e cols.9 observaram que não há nenhuma publicação nacional sobre o tratamento cirúrgico da doença cardíaca carcinoide. Esse achado sugere uma baixa prevalência da doença, ou que ela é subdiagnosticada. Por ser uma patologia rara, há pouca literatura. Como não há nenhum caso descrito, acreditamos que nosso relato de caso pode ajudar no reconhecimento de alguns padrões da doença, contribuindo para um melhor prognóstico desses pacientes.

Relato do Caso

Paciente G.N., masculino, diagnosticado com síndrome carcinoide em 2002, quando tinha 48 anos de idade. O diagnóstico foi confirmado, na ocasião, através de laparoscopia e biópsia hepática que revelaram a presença de um tumor neuroendócrino primário não definido de intestino e metástase hepática. O paciente realizou tratamento com ciclos terapêuticos de MIBG I131 (metaiodo-benzilguaninaiodo-131, um radioisótopo utilizado para o tratamento de tumores carcinoides).

Em 2008, aos 54 anos, foi realizada uma embolização hepática direita e iniciado tratamento com Sandostatin®. Aos 55 anos, foi submetido à cirurgia para ressecções do tumor primário e da metástase hepática. A imuno-histoquímica evidenciou lesões entéricas e nódulos hepáticos compatíveis com carcinoma neuroendócrino.

Em 2010, além dos sintomas da síndrome carcinoide, apresentava dispneia aos pequenos esforços; no exame físico foi notado edema de membros inferiores e sopro sistólico 5+/6+ em focos da base, mais acentuado em Foco Tricúspide.

Solicitamos um ecocardiograma que revelou dilatação leve do ventrículo direito e moderado do átrio direito, valva tricúspide espessada, com redução da mobilidade de seus folhetos induzindo a falha de coaptação dos mesmos e refluxo importante; a valva pulmonar apresentava redução de sua abertura com refluxo moderado, gradiente sistólico VD-TP máximo de 40mmHg. Confirmou-se o diagnóstico de insuficiência cardíaca direita devido à doença cardíaca carcinoide.

A escolha terapêutica para a patologia cardíaca foi a dupla troca valvar, prótese biológica aórtica número 21 na posição pulmonar e mitral número 33 na posição tricúspide. O ecocardiograma transesofágico realizado no sétimo dia pós-operatório mostrou as biopróteses, tricúspide e pulmonar normofuncionantes. O paciente evoluiu de forma satisfatória, tendo alta no 13º dia pós-operatório.

O anatomopatológico, corado com hematoxilina e eosina, evidenciou espessamento fibroso das válvulas tricúspide e pulmonar com áreas de hialinização, degeneração mixoide e proliferação de vasos neoformados focalmente, ausência de trombos ou vegetações e ausência de malignidade (Figuras 1 e 2).



O Ecocardiograma realizado dois anos após a cirurgia, em 2012, mostrou aumento discreto do átrio direito, ventrículo direito normal. A prótese valvar tricúspide não apresentava refluxo, com gradientes diastólicos com pico de 11mmHg e médio de 4mmHg. A prótese valvar pulmonar apresentava gradiente sistólico máximo igual a 26mmHg e médio de 17mmHg; as valvas nativas com textura e mobilidades normais e função ventricular normal.

O paciente apresentava discreto edema de membros inferiores, diarreia associada à ingesta de líquidos, sintomas relacionados à doença carcinoide.

Discussão

Em um trabalho prévio da Mayo Clinic, 26 pacientes com doença cardíaca carcinoide foram submetidos ao tratamento cirúrgico das valvas cardíacas. Embora a mortalidade tenha sido maior, a sobrevida tardia (8 de 26 pacientes) resultou numa diminuição considerável (2pacientes) ou na eliminação (6pacientes) de sintomas7. O maior estudo foi publicado por Møller e cols.6, no qual o autor analisou 200 pacientes com doença cardíaca carcinoide, em duas décadas (1980-2000). Nossa análise retrospectiva, 87 pacientes com doença cardíaca carcinoide foram submetidos à cirurgia. A mortalidade perioperatória foi reduzida de 25% para 9% nos últimos cinco anos desse estudo. Durante o mesmo período, o percentual de pacientes com doença cardíaca carcinoide submetidos à operação aumentou de 18% para 64%. Assim, a cirurgia demonstrou aumento na sobrevida média de 1,5 anos para 4,4anos ao longo das últimas décadas. A operação, que na década de 80 era realizada apenas em pacientes gravemente sintomáticos, atualmente é proposta para aqueles que estão apenas levemente sintomáticos, pois é evidente que a progressão da insuficiência cardíaca aumenta ainda mais a mortalidade6.

Apresentamos um caso em que o paciente portador de tumor neuroendócrino, diagnosticado em 2002, desenvolveu a síndrome carcinoide, sendo realizado todo o tratamento medicamentoso e clínico disponível para o tumor e suas recidivas. Em 2010, aos 56 anos, foi diagnosticada doença cardíaca carcinoide, com comprometimento das valvas cardíacas direitas, e devido ao quadro de insuficiência cardíaca direita, optou-se pelo tratamento cirúrgico das valvas. Escolhemos a utilização da bioprótese, devido à grande possibilidade desse paciente necessitar de novas intercorrências cirúrgicas em outros órgãos, as quais seriam dificultadas caso utilizássemos próteses mecânicas com a consequente necessidade de anticoagulação. Mabvuure e cols.10 advertem que o processo de destruição da valva nativa observada em pacientes com doença carcinoide não continua no mesmo nível na bioprótese.

No retorno, em 2012, o paciente apresentava melhora do quadro da insuficiência cardíaca, com melhora significativa da dispneia, melhora do edema dos membros inferiores e apresentava episódios de diarreia associada à ingesta líquida, sintomas estes relacionados ao tumor. Neste caso, a correção cirúrgica, apesar do seu risco, mostrou-se importante na melhora da sobrevida e da qualidade de vida deste paciente.

Em nosso meio, Evora e cols.9 chamaram a atenção para o fato de que em 2011 não havia nenhuma publicação nacional do tratamento cirúrgico da doença cardíaca carcinoide. Dentro dessa realidade, acreditamos que o nosso relato de caso possa contribuir para lembrança desse diagnóstico e da possibilidade do seu tratamento cirúrgico.

Conclusão

A melhora do tratamento oncológico dos tumores neuroendócrinos tem aumentado a sobrevida dos pacientes portadores dessa doença. Desse modo, uma parcela crescente desses doentes tem acometimento de válvulas cardíacas. Relatamos o caso de um paciente que apresentou valvopatia grave pulmonar e tricúspide, submetido à dupla troca valvar, com boa evolução até 2 anos de seguimento.

Contribuição dos autores

Concepção e desenho da pesquisa e Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual: Pêgo-Fernandes PM, Jatene FB; Obtenção de dados: Pêgo-Fernandes PM, Laurino AM, Ferronato DS, Costa FP, Anbar R; Análise e interpretação dos dados: Pêgo-Fernandes PM, Laurino AM, Ferronato DS, Costa FP, Anbar R; Redação do manuscrito: Laurino AM, Ferronato DS.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 14/05/12; revisado em 17/10/12; aceito em 19/10/12.

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  • Correspondência:

    Paulo Manuel Pêgo Fernandes
    Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 Bl. 2, 2 andar, sala 9, Cerqueira César
    CEP 05403-000, São Paulo, SP - Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013
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