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Cardiomiopatia hipertrófica obstrutiva latente: o ecocardiograma é suficiente?

Cardiomiopatia hipertrófica; ecocardiografia; ressonância magnética cardíaca

RELATO DE CASO

Cardiomiopatia hipertrófica obstrutiva latente: o ecocardiograma é suficiente?

João Abecasis; Regina Ribeiras; Antonio Ferreira; Raquel Gouveia; Miguel Mendes

Hospital de Santa Cruz, Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, Lisboa - Portugal

Correspondência Correspondência: João Maria Veiga Abecasis Rua de São Ciro, 52 - 2º E 1200-823 - Lisboa - Portugal E-mail: joaoabecasis@hotmail.com

Palavras-chave: Cardiomiopatia hipertrófica; ecocardiografia; ressonância magnética cardíaca.

Keywords: Cardiomyopathy, hypertrophic; echocardiography; cardiac magnetic resonance.

Relato do Caso

Apresentamos o caso clínico de um paciente caucasiano do sexo masculino, de 51 anos, que foi encaminhado para teste ergométrico por angina não progressiva aos esforços. Seu histórico médico era normal. O exame físico foi negativo para anomalias cardiovasculares específicas. Seu eletrocardiograma de doze derivações em repouso (ECG), feito na posição deitada, apresentava inversão terminal da onda T nas derivações precordiais (figura 1, A). O exame ecocardiográfico em modo M e bidimensional foi normal. Em seguida, realizou-se teste ergométrico. A essa altura, as anormalidades de repolarização não estavam mais presentes no ECG de repouso em pé e o teste ergométrico confirmou a isquemia, tendo em vista que o paciente referia angina aos esforços semelhante com infradesnivelamento do segmento ST concomitante atingindo os 3 mm (figura 1, B). Foi solicitada tomografia computadorizada por emissão de fóton único para verificar o início tardio dos sintomas e alterações ao ECG (4º estágio no protocolo de Bruce), carga de exercício ideal e normalização imediata do ECG na recuperação. A perfusão de estresse revelava um possível defeito inferior (figura 1, C), por isso tentou-se uma angiografia coronariana, negativa para a doença dos grandes vasos.


Na tentativa de conseguir um diagnóstico completo, foi realizado um ecocardiograma transtorácico. O ecocardiograma mostrou uma assimetria leve na hipertrofia do Ventrículo Esquerdo (VE): índice de massa do VE 110 g/m2 pela fórmula do cubo, com uma relação de espessura da parede septal/posterior de 1,2. No entanto, em eixo curto paraesternal, detectava-se uma espessura máxima da parede de 19 mm medida no final da diástole no septo interventricular inferior ao nível dos músculos papilares e a massa do VE pelo comprimento da área foi determinada em 123 g/m2. Ambos os músculos papilares foram levemente deslocados anteriormente e havia um rastro de movimento anterior sistólico do folheto anterior da válvula mitral com regurgitação mitral protossistólica leve. Não houve obstrução intraventricular ou do trato de saída, mesmo após a manobra de Valsalva e em posição ereta. A fração de ejeção sistólica global encontrava-se preservada, com pressões de enchimento normais, embora com velocidades anulares mitrais reduzidas no exame de Doppler tecidual. O ventrículo direito não parecia estar comprometido (figura 1, DI, Clipe 1, 2, 3).

A análise de deformação sob o algoritmo do speckle tracing (60 e 82fps) foi realizada para avaliar o strain bidimensional longitudinal e radial (vistas apical e paraesternal, respectivamente). A velocidade de torção e rotação também foi avaliada (torção de pico, taxa de torção de pico e tempo do início da velocidade sem torção). O strain longitudinal médio global foi avaliado como normal (-19,9%), mas observou-se alguma assimetria em sua distribuição. De fato, a parede lateral basal apresentava um strain longitudinal pré-sistólico positivo e as paredes septal média e lateral média apresentavam deformação longitudinal sistólica reduzida (figura 1, J, Clipe 4). Ao nível do eixo curto na porção média do VE, a deformação radial (espessamento) mostrou-se igualmente reduzida nos segmentos médios septais inferiores e na parede inferior, correspondendo a áreas de hipertrofia (Clipe 5). A torção de pico foi determinada em 18,05º (figura 1, K).

O paciente também foi submetido a um ecocardiograma sob estresse com exercícios para avaliar o desenvolvimento do gradiente intraventricular dinâmico, o que eventualmente explicaria os sintomas. Detectou-se gradiente intraventricular de pico significativo (> 30 mmHg) na 3ª etapa do protocolo de Bruce, aparentemente não envolvendo o trato de saída do VE, com ausência de agravamento de regurgitação mitral (figura 1, L). Esses resultados foram simultâneos ao desenvolvimento de angina. O paciente foi colocado sob o uso de betabloqueadores, com resolução completa das queixas relatadas. O ECG Holter de 24 horas foi negativo para arritmias ventriculares.

A fim de confirmar o diagnóstico e para avaliar a presença de fibrose, uma Ressonância Magnética Cardíaca (RMC) foi realizada. Imagens dinâmicas (cine) utilizando a sequência steady state free precession (SSFP) revelaram hipertrofia assimétrica do VE, envolvendo principalmente o septo interventricular e a parede inferior (massa indexada do VE: 175 g/m2; espessura máxima da parede do VE: 17 mm no septo inferior médio). O ventrículo direito não estava hipertrófico e a fração de ejeção biventricular estava normal (Clipe 6, 7). A partir do tagging, a análise qualitativa mostrou deformação anormal no septo inferior e parede inferior (figura 2). Não houve realce tardio após a injeção de gadodiamida.


Discussão

Apresentamos um caso de uma forma obstrutiva da cardiomiopatia hipertrófica em que o diagnóstico só poderia ter sido feito após um estudo ecocardiográfico cuidadoso e detalhado: 1. A avaliação bidimensional revelou aumento de massa do VE, sendo posteriormente confirmado pela Ressonância Magnética Cardíaca (RMC). 2. As espessuras regionais do VE encontravam-se bem acima do normal pelo ecocardiograma bidimensional e medições feitas pela RMC1. 3. Os músculos papilares do VE encontravam-se anormalmente deslocados. 4. As velocidades obtidas pelo Doppler tecidual encontravam-se anormalmente baixas no septo inferior. Além disso, a avaliação do strain bidimensional por speckle tracking nos permitiu identificar a disfunção sistólica regional, como já descrita, envolvendo principalmente segmentos hipertróficos2. Além disso, e como relatado recentemente, tanto os pacientes com cardiomiopatia hipertrófica e doença hipertensiva do coração apresentam torção de pico realçada, o que pode ser sugerido nesse caso3.

Apesar disso, precisávamos de múltiplas modalidades de imagem para confirmação diagnóstica e correlação sintomática. Na verdade, tivemos que excluir a coronariopatia e realizamos RMC para confirmar o diagnóstico e obter informações de prognóstico4. No entanto, devemos enfatizar que o ecocardiograma deve ser plenamente explorado em suas diferentes modalidades (função regional, velocidades de fluxo e miocárdicas, deformação), quando esse diagnóstico é suspeito, já que essa técnica pode oferecer as principais características estruturais e funcionais. Na verdade, devem-se realizar estudos ecocardiográficos de exercício quando houver dúvida em relação correlação sintomática na ausência de via de saída e gradiente intracavitário em repouso, mesmo após manobras de mudança de carga.

Por fim, consideramos o presente caso peculiar em razão dos dados fornecidos por diferentes técnicas de imagem. Esses achados não foram importantes apenas para corroborar e confirmar o diagnóstico, mas também se ajustaram corretamente (figura 2), particularmente quanto aos dados bidimensionais morfológicos fornecidos pelo ecocardiograma e a RMC. Além disso, e apesar de sua baixa resolução espacial, a perfusão estresse por SPECT parece ter sido prejudicada nos segmentos posteriormente identificados como hipertróficos. Isso poderia até mesmo corroborar o conceito de perfusão anormal e reserva de fluxo coronariano deficiente na CMH4.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 20/06/11

Revisado em 23/08/11

Aceito em 28/09/11

  • 1. Cain PA, Ahl R, Hedstrom E, Ugander M, Allansdotter-Johnsson A, Friberg P, et al. Age and gender specific normal values of left ventricular mass, volume and function for gradient echo magnetic resonance imaging: a cross sectional study. BMC Med Imaging. 2009;9:2.
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  • Correspondência:
    João Maria Veiga Abecasis
    Rua de São Ciro, 52 - 2º E
    1200-823 - Lisboa - Portugal
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Set 2012
    • Data do Fascículo
      Jul 2012

    Histórico

    • Recebido
      20 Jun 2011
    • Aceito
      28 Set 2011
    • Revisado
      23 Ago 2011
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