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Contato telefônico: ferramenta clínica útil?

EDITORIAL

Contato telefônico: ferramenta clínica útil?

Luis Cláudio Lemos Correia

Escola Bahiana de Medicina; Divisão de Cardiologia - Hospital São Rafael, Salvador, BA - Brasil

Correspondência Correspondência: Luis C. L. Correia Av. Princesa Leopoldina, 19/402 40.150-080 - Salvador, BA - Brasil E-mail Address: lccorreia@cardiol.br

Palavras-chave: Insuficiência cardíaca, educação em enfermagem, pessoal de saúde, telefone/utilização.

O paradigma principal da medicina baseada em evidências enfatiza a necessidade de estudos intervencionistas, randomizados e controlados, com o intuito de testar hipóteses sobre a eficácia de condutas médicas. Nas últimas décadas, estudos desse tipo mudaram nosso conhecimento sobre o tratamento da insuficiência cardíaca (IC), e o conforto de nossas crenças a respeito da eficácia dessas terapias é pautado no fato de essas informações serem provenientes de ensaios clínicos com metodologias adequadas1. Por outro lado, a medicina baseada em evidências traz-nos um segundo paradigma importante: eficácia não é o mesmo que efetividade. Normalmente, existe uma lacuna considerável entre o conhecimento trazido por ensaios clínicos (eficácia) e o real benefício desfrutado pelos pacientes-alvo da terapia (efetividade)2. Não há zona de conforto quanto à garantia de efetividade. Dada a complexidade do tratamento de pacientes com IC, a simples prescrição de medicamentos eficazes pode não ser suficiente para garantir todo o potencial benefício da terapia proposta. Por esse motivo, programas de gerenciamento de doenças (disease management programs) têm sido testados, com o objetivo de melhorar a aderência de pacientes a terapias, além de identificar e tratar precocemente quadros de descompensação3.

O estudo de estratégias de implementação de terapias faz parte de um ramo da ciência médica recentemente denominado outcomes research2. Essa linha de investigação utiliza dois tipos de metodologia: i) estudos observacionais, quando o intuito é descrever a efetividade de condutas ou identificar determinantes dessa efetividade; ou ii) estudos intervencionistas (ensaios clínicos), usados para testar estratégias de implementação de condutas médicas. O artigo de Domingues e cols. 4, publicado neste número dos Arquivos, representa um ensaio clínico randomizado que testa o benefício de um programa de gerenciamento ambulatorial em pacientes internados por IC4.

A intervenção realizada consistiu em um programa de educação durante o internamento, aplicado a todos os pacientes do estudo, seguido de randomização para contato telefônico sistemático (realizado por enfermeira, durante os três meses após a alta hospitalar de pacientes com IC) ou ausência de contato telefônico. Os autores apontam duas conclusões: i) a ausência de benefício da estratégia de contato telefônico; e ii) o benefício da estratégia de educação aplicada durante o internamento do paciente. Tal como toda evidência científica, esse trabalho deve passar pelo crivo de uma análise metodológica. Para a análise crítica de estudos sobre programas de gerenciamento, quatro critérios devem ser utilizados, os quais podem ser resumidos no acrônimo PICO: população, intervenção, comparação e outcome (desfecho)5.

Na análise do primeiro item (população), podemos afirmar que os critérios de seleção da amostra populacional representam adequadamente a população-alvo - indivíduos internados com IC. Por outro lado, os outros três critérios trazem questionamento quanto às conclusões dos autores. Como mencionado, os autores sugerem que não há benefício da estratégia de contato telefônico ambulatorial. No entanto, o tipo de intervenção (I) precisaria ser descrita com mais detalhe. Ou seja, qual a abordagem das enfermeiras durante os contatos realizados com os pacientes? A variação de peso do paciente foi indagada, sintomas indicativos de descompensação incipiente foram sistematicamente pesquisados? A falta de descrição da metodologia dos contatos deixa em aberto se um protocolo adequado foi utilizado no estudo. Em segundo lugar, o desfecho avaliado (O = outcome) não permite conclusão a respeito da estratégia de contato telefônico. O desfecho primário para avaliar a estratégia de contato telefônico não deveria ser o nível de conhecimento dos pacientes, pois esse desfecho é mais influenciado pelo programa de educação hospitalar, o qual foi aplicado igualmente em ambos os grupos. De fato, seria estranho que esse desfecho diferisse. O desfecho utilizado para comparar as duas estratégias deveria considerar as incidências de eventos clínicos, visto que o monitoramento por telefone identifica precocemente uma potencial descompensação, gerando estratégias de tratamento precoce. No entanto, o presente trabalho não é adequadamente dimensionado para desfechos clínicos, por isso, os autores não definiram esse tipo de desfecho como primário. Em termos absolutos, houve menor proporção de visitas a unidades de emergência, assim como menor frequência de óbito no grupo randomizado para contato telefônico, porém, essas diferenças não foram estatisticamente significantes. Considerando o número de pacientes no estudo (N = 108), a probabilidade do erro tipo II (decorrente de baixo poder estatístico) é considerável. Dessa forma, com base no presente trabalho, não podemos concluir pela ausência de benefício da estratégia de contato telefônico. De fato, em revisão sistemática, Holland R e cols. sugeriram a presença de redução na incidência de internamento e morte com essa estratégia aplicada a pacientes com IC3.

Quanto à conclusão de que o programa de educação beneficiou os pacientes, a análise do grupo de comparação (C) traz questionamento quanto a essa afirmação. Considerando que ambos os grupos foram submetidos ao mesmo programa educacional durante o internamento, não há grupo controle para essa intervenção, indicando que a hipótese de que essa estratégia é benéfica não foi metodologicamente testada. Sabe-se que comparações intragrupos não são suficientes para testar hipóteses, visto que o fenômeno de regressão à média pode simular benefícios inexistentes.

Finalmente, devemos salientar que o tipo de discussão metodológica suscitado pela publicação de Domingues e cols. 4 serve para destacar a importância dos estudos de outcomes research. O exemplo de Domingues e cols. 4 deve ser seguido para que novos estudos avaliem o benefício de programas de gerenciamento em amostras de pacientes com IC, no intuito de identificar formas de aumentar a efetividade em nosso meio de estratégias comprovadamente eficazes.

Artigo recebido em 17/08/10; revisado recebido em 17/08/10; aceito em 24/08/10.

  • 1. Hunt SA, Abraham WT, Chin MH, Feldman AM, Francis GS, Ganiats TG, et al. 2009 focused update incorporated into the ACC/AHA 2005 Guidelines for the Diagnosis and Management of Heart Failure in Adults: a report of the American College of Cardiology Foundation/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines: developed in collaboration with the International Society for Heart and Lung Transplantation. Circulation. 2009; 119 (14): e391-e479.
  • 2. Krumholz HM. Outcomes research: generating evidence for best practice and policies. Circulation. 2008; 118 (3): 309-18.
  • 3. Holland R, Battersby J, Harvey I, Lenaghan E, Smith J, Hay L. Systematic review of multidisciplinary interventions in heart failure. Heart. 2005; 91 (7): 899-906.
  • 4. Domingues FB, Clausell N, Aliti GB, Dominguez DR, Rabelo ER. Educação e monitorização por telefone por profissional da Enfermagem de pacientes com insuficiência cardíaca: estudo clínico randomizado.Arq Bras Cardiol 2011;95(6):233-239
  • 5. Clark AM, Savard LA, Thompson DR. What is the strength of evidence for heart failure disease-management programs? J Am Coll Cardiol. 2009; 54 (5): 397-401.
  • Correspondência:

    Luis C. L. Correia
    Av. Princesa Leopoldina, 19/402
    40.150-080 - Salvador, BA - Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2011
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