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Evolução da cirurgia cardiovascular: a saga brasileira. Uma história de trabalho, pioneirismo e sucesso

EDITORIAL

Evolução da cirurgia cardiovascular. A saga brasileira. Uma história de trabalho, pioneirismo e sucesso

Domingo M. BraileI, II; Walter J. GomesIII

IFaculdade Estadual de Medicina de S.J. Rio Preto, S.J. Rio Preto, SP - Brasil

IIFaculdade de Ciências Médicas Unicamp, Campinas, SP - Brasil

IIIEscola Paulista de Medicina Unifesp, São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Domingo M. Braile Av. J.K., 1505 - Tarraf 15091-450 - S. J. Rio Preto, SP - Brasil E-mail: dbraile@cardiol.br, domingo@braile.com.br

Palavras-chave: Procedimentos cirúrgicos cardiovasculares/história/ tendências.

A cirurgia cardiovascular foi e tem sido intensamente escrutinada e avaliada. Os cirurgiões cardíacos, por sua vez, têm consistentemente liderado no mundo os esforços em coletar, analisar e aplicar os resultados cirúrgicos a fim de melhorar a qualidade e reavaliar condutas e procedimentos1. Neste contexto, a cirurgia cardíaca brasileira é uma das mais respeitadas do mundo, com 116.821 procedimentos em 2008, segundo o DATASUS2, permitindo a uma instituição de renome, como o Incor, ter realizado mais de 71 mil procedimentos apenas entre 1984 e 2007, conforme levantamento do artigo "Evolução da Cirurgia Cardiovascular no Instituto do Coração: Análise de 71.305 Operações", de Lisboa e cols.3, publicado na página 174.

Poucas especialidades no país contribuíram tanto para o desenvolvimento do conhecimento quanto a cirurgia cardíaca brasileira. Assim, no campo da cirurgia de revascularização miocárdica, por exemplo, as duas contribuições que mais melhoraram os resultados cirúrgicos no mundo foram introduzidas por cirurgiões brasileiros, a saber, a técnica de revascularização miocárdica com o coração batendo (conhecida como técnica sem uso de circulação extracorpórea) e a utilização dos enxertos duplos de artéria mamária interna. No tratamento cirúrgico da insuficiência cardíaca, as técnicas atualmente utilizadas no mundo foram desenvolvidas por cirurgiões cardiovasculares brasileiros.

Esta pujança não é obra do acaso, mas sim resultado de um trabalho árduo desenvolvido durantedécadas, por pioneiros como os doutores Euryclides Zerbini, Adib Jatene e Hugo Felipozzi, que arregaçaram as mangas para obter tecnologia nacional que permitisse realizar as operações a céu aberto, quase simultaneamente com a experiência dos centros americanos liderados por Gibbon, Kirklin e Lillehei. Apenas dois anos após John Gibbon ter desenvolvido a primeira máquina de circulação extracorpórea (CEC) nos EUA, o Dr. Felipozzi e sua equipe conseguiram realizar, em 15 de outubro de 1955, uma operação a céu aberto no Brasil, usando equipamento desenvolvido em nosso país, no Instituto de Cardiologia Sabbado D'Angelo. No ano seguinte, foi feito o primeiro procedimento com CEC total4.

Em 1958, Zerbini, Jatene e equipe também desenvolveram a máquina de CEC, utilizando-a nas cirurgias realizadas no Hospital das Clínicas. Em 1968, Zerbini faz o primeiro transplante, apenas um ano após Christiaan Barnard.

Décadas depois, a cirurgia cardiovascular brasileira encontra-se em situação sólida, com profissionais e centros respeitados dentro e fora do país, indústrias nacionais que exportam equipamentos como máquinas de CEC, oxigenadores e valvas biológicas e mecânicas para os quatro cantos do mundo, economizando nossos dólares e gerando empregos. Diante deste quadro, é fundamental fazer levantamentos constantes sobre o número de operações, os acertos, as carências, a fim de que se possam implementar políticas públicas mais eficientes, que permitam encurtar o caminho para a universalização do acesso à Saúde, objetivo do SUS.

Por isso, trabalhos desse gênero são de extrema importância. Este, em particular, tem o mérito de fazer um profundo levantamento mostrando a evolução do número de cirurgias cardiovasculares realizadas no Incor durante 24 anos. O número total impressiona, afinal, a média é de 2971 procedimentos/ano - ou mais de 8 por dia. É interessante notar que o número vem subindo. Se tomarmos a revascularização do miocárdio como exemplo, os 856 procedimentos/ano, na década de 80, passaram a ser 1106/ano, atualmente. Este aumento se repete também nas operações valvares e na correção de cardiopatias congênitas.

Nesses procedimentos ocorre redução no índice de mortalidade (nas cirurgias de revascularização miocárdica a média atual é de 4,8%; nas operações valvares, de 8,5% e nas correções das cardiopatias congênitas, de 5,3%). A mortalidade média, que no início era de 7,5%, caiu para 7,0% nos últimos anos, dos quais 4,9% eram os procedimentos eletivos. Números interessantes, mas que, como os próprios autores apontam, podem ser ainda menores.

Vários fatores levam à diminuição da mortalidade, entre eles, o aperfeiçoamento dos profissionais, o desenvolvimento de novas drogas e a melhoria da qualidade de vida da população. O tema vem sendo debatido por vários autores, entre os quais destaca-se o estudo de Brown e cols.5, que analisou 108.687 pacientes submetidos à troca valvar entre 1997 e 2006, para concluir que houve uma queda na morbi-mortalidade, apesar do crescimento gradual da faixa etária dos pacientes5. Outros trabalhos também discutem o assunto, mostrando, também, a tendência para o aumento da sobrevida6-9. Em 2007, a divulgação do estudo do cardiologista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais Antonio Luiz Ribeiro gerou polêmica. Contendo dados de 2000 e 2003, o trabalho mostra que 8% dos pacientes morreram antes de receber a alta hospitalar. Hospitais de referência em cirurgia cardiovascular dos Estados Unidos e da Inglaterra, por exemplo, apresentam em média 4% de mortalidade.

Taxas de mortalidade têm sido comparadas entre bancos de dados de diferentes países e continentes. Os resultados de mortalidade após cirurgia cardiovascular realizada em hospitais do SUS no Brasil se revelaram maiores quando comparados com os do banco de dados da Sociedade de Cirurgiões Torácicos (STS - The Society for Thoracic Surgeons) nos Estados Unidos da América.. Entretanto, é preciso considerar que o banco de dados norte-americano é voluntário, engloba os resultados de hospitais de referência, que recebem os pacientes com melhores indicadores socioeconômicos e representam menos de 10% do total de cirurgias realizadas anualmente nos EUA.

Gomes e cols.10 destacaram que seria interessante fazer a comparação com bases de dados mais "comparáveis", como os do serviço de saúde pública dos países europeus, que são divergentes. No Reino Unido, o Registro de Cirurgia Cardíaca mostra mortalidade em cirurgia de revascularização miocárdica em torno de 3%, ao passo que na Espanha atinge uma taxa de 7,3%10,11.

A conclusão do artigo permanece extremamente válida, tanto no âmbito institucional como no nacional. A cirurgia cardiovascular continua em ascensão e a demanda de pacientes deve aumentar nos próximos anos, com a melhora do acesso da população ao sistema de saúde e de diagnóstico e também devido à aceleração do envelhecimento populacional, com o consequente aumento na incidência de doenças cardiovasculares. As políticas de saúde formuladas para a área deverão ser necessariamente capazes de atender a estas necessidades.

Procedimentos cirúrgicos em septuagenários e octogenários têm sido cada vez mais frequentes. Caso os dados do Incor estejam disponíveis, poderia ser feito um novo estudo mostrando a evolução no número de cirurgias por faixa etária ao longo do período avaliado.

Artigo enviado em 10/02/09; revisado recebido em 16/04/09; aceito em 06/05/09.

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  • 2
    Ministério da Saúde. Datasus. Dados fornecidos diretamente pelo Datasus sob pedido formal. Brasília; 2009.
  • 3. Lisboa LAF, Moreira LF, Dallan LA, Pomerantzeff P, Costa R, Puig LB, et al. Evolução da cirurgia cardiovascular no Instituto do Coração: análise de 71.305 operações. Arq Bras Cardiol. 2009 [94(2):174-81.
  • 4. Gomes WJ, Saba JC, Buffolo E. 50 anos de circulação extracorpórea no Brasil: Hugo J. Felipozzi, o pioneiro da circulação extracorpórea no Brasil. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2005; 20 (4): 1-6.
  • 5. Brown JM, O'Brien SM, Wu C, Sikora JAH, Griffith BP, Gammie JS. Isolated aortic valve replacement in North America comprising 108,687 patients in 10 years: changes in risks, valve types, and outcomes in the Society of Thoracic Surgeons National Database. J Thorac Cardiovasc Surg. 2009; 137 (1): 82-90.
  • 6. Puskas JD, Kilgo PD, Lattouf OM, Thourani VH, Cooper WA, Thomas A, et al. Off-Pump coronary bypass provides reduced mortality and morbidity and equivalent 10-year survival. Ann Thorac Surg. 2008; 86 (4): 1139-46.
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  • 10. Gomes WJ, Mendonça JT, Braile DM. Resultados em cirurgia cardiovascular: oportunidade para rediscutir o atendimento médico e cardiológico no sistema público de saúde do país. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2007; 22 (4): III-VI.
  • 11. Palma-Ruiz M, García de Dueñas L, Rodríguez-González A, Sarría-Santamera A. Analysis of in-hospital mortality from coronary artery bypass grafting surgery. Rev Esp Cardiol. 2003; 56 (7): 687-94.
  • Correspondência:
    Domingo M. Braile
    Av. J.K., 1505 - Tarraf
    15091-450 - S. J. Rio Preto, SP - Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      Fev 2010
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