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Os dois Brasis e o tratamento do infarto agudo do miocárdio

Infarto do miocárdio; letalidade; desigualdades em saúde; política de saúde

EDITORIAL

Os dois Brasis e o tratamento do infarto agudo do miocárdio

Antonio Luiz Pinho Ribeiro

Hospital das Clínicas e Faculdade de Medicina da UFMG – Departamento de Atenção Especializada, SAS/Ministério da Saúde

Correspondência Correspondência: Antonio Luiz Pinho Ribeiro Rua Campanha, 98/101 30310-770 - Belo Horizonte, MG - Brasil E-mail: tom@hc.ufmg.br

Palavras-chave: Infarto do miocárdio, letalidade, desigualdades em saúde, política de saúde.

O estabelecimento de tratamento eficaz para o infarto agudo do miocárdio (IAM) foi uma das conquistas médicas mais importantes da segunda metade do século XX1. A mortalidade hospitalar caiu de alarmantes 30% a 40% nas décadas de 1950 e 19602 para menos de 5% em 20063, em decorrência da introdução de várias estratégias terapêuticas, entre as quais se destacam a instalação das unidades de tratamento intensivo (UTI) cardiovascular, as unidades coronarianas, e a introdução da terapia de reperfusão (química ou percutânea)1. O artigo publicado neste volume dos Arquivos demonstra, porém, que os benefícios do tratamento moderno do IAM não estão acessíveis a todos os brasileiros4.

Nesse estudo de desenho singelo e condução competente, os autores observaram uma letalidade do infarto do miocárdio de 19,5% em pacientes com IAM, internados em um hospital público de Feira de Santana, quatro vezes maior do que a encontrada naqueles internados nos três hospitais privados da mesma cidade, na Bahia (4,8%, p=0,001)4. Entre aqueles pacientes atendidos no hospital público, predominavam os pobres e os analfabetos, que demoraram mais tempo para chegar ao hospital e para serem medicados, evoluindo com maior gravidade, manifesta pela frequência elevada de pacientes com Killip classe II ou superior. O tratamento também foi radicalmente distinto: enquanto 94% daqueles indivíduos atendidos na rede privada receberam tratamento na UTI, com uso de trombolítico em 79% dos casos, apenas 8% dos pacientes do hospital público foram admitidos na UTI e 21% foram submetidos à terapia de reperfusão4. Os betabloqueadores, preditores independentes de prognóstico nesta amostra, também foram mais frequentemente usados nos hospitais privados. Em outros termos, os pacientes atendidos no hospital público, além de desfavorecidos do ponto de vista sócio-econômico e clínico, não receberam o tratamento formalmente preconizado para o IAM, o que parece ter sido essencial para o elevado némero de óbitos.

Tais resultados não chegam a ser completamente novos, já que estudos prévios sugeriram que pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) efetivamente não têm acesso à UTI para tratamento do IAM, apresentando mortalidade aumentada quando comparados aos da rede suplementar. Assim, Evangelista e cols.5, estudando os pacientes do SUS com diagnóstico de IAM na cidade de Belo Horizonte em 2002-2003, encontraram que apenas 33% dos indivíduos haviam sido admitidos em UTI durante sua internação; adicionalmente, ter sido internado em um hospital público (em oposição a hospitais conveniados da rede privada) foi fator independente de prognóstico adverso5.

O que mais chama a atenção nos resultados de Ferreira e cols.4 é a magnitude da diferença de letalidade entre os hospitais privados e o público, associada diretamente à diferenças no uso de medidas sabidamente eficazes no tratamento do infarto. A descrição dos óbitos documentados na rede pública revela que muitos poderiam ter sido evitados pela monitorização contínua em UTI: cinco dos 17 casos fatais no hospital público ocorreram por morte súbita e arritmia ventricular. Se apenas dois pacientes no grupo tratado nos hospitais privados (3%) faleceram por falência de bomba, 12 dos 87 pacientes falecidos no hospital público (14%) apresentaram esta complicação, cuja frequência se reduz com a terapia de reperfusão. Como ressaltam os autores, é o desempenho institucional o principal responsável pela maior gravidade e letalidade no hospital público, já que apenas 38% dos pacientes elegíveis com janela de tempo satisfatória foram tratados com trombolíticos, ubiquamente disponíveis e cobertos pelo financiamento do SUS.

Essa brutal desigualdade no direito ao atendimento de qualidade evidencia a continuidade de dois Brasis distintos, um pobre e atrasado, outro abastado e desenvolvido, como escreveu o sociólogo francês Jacques Lambert há mais de meio século6. Enquanto os resultados do tratamento do infarto nos hospitais privados são comparáveis aos observados no registro internacional GRACE3(Global Registry of Acute Coronary Events), a letalidade do infarto do miocárdico no hospital público é semelhante ao obtido antes da introdução da UTI e da trombólise2.

A diferença entre a letalidade do IAM tratado nos hospitais públicos e privados é particularmente larga em Feira de Santana, excedendo em muito os dados do Brasil como um todo. Assim, dos 56.275 pacientes internados com IAM pelo SUS em 2007, 45% se internaram na rede pública, com letalidade de 15,6%, enquanto 55% se internaram na rede privada, com letalidade de 14,5% (p=0,0002)7. Nos 7.550 pacientes que receberam o tratamento por angioplastia primária pelo SUS em 2007, a letalidade é bem menor: 7,2% na rede privada contra 7,8% na pública (p=0,37). Ou seja, no Brasil como um todo, para a rede pública ou privada credenciada pelo SUS, a diferença de letalidade entre o hospital público e o privado é muito menor que a observada em Feira de Santana. É necessário verificar quais fatores locais e regionais explicam tal disparidade em Feira de Santana, que, embora seja a cidade pólo de uma macro-região de saúde com mais que dois milhões de habitantes, inexplicavelmente não dispõe de Unidade de Assistência Cardiovascular de Alta Complexidade credenciada pelo SUS. Portanto, as recomendações dos autores são pertinentes: primeiro que seja organizada adequadamente a rede assistencial regional em todos os níveis de atenção e, segundo, que os gestores monitorem sistematicamente os resultados do tratamento hospitalar das doenças cardiovasculares.

A publicação desses resultados coloca na pauta do dia o tratamento do IAM na rede pública, forte candidato à prioridade nacional de saúde. É grande o número de mortes que poderiam ser evitadas com procedimentos e medicamentos já disponíveis no Sistema Único de Saúde. Experiências internacionais de organização do cuidado no infarto podem ser adaptadas à nossa realidade, permitindo o direcionamento dos pacientes para os centros capazes de realizar a reperfusão com rapidez e segurança8. Para dar suporte a essa estratégia, há uma estrutura de cuidado pré-hospitalar (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência - SAMU) e outra hospitalar (UTIs, Unidades de Atenção Cardiovascular) já organizadas em quase todo país, apesar das necessidades de melhorias e de investimentos. E quem sabe se, com a mobilização das sociedades médico-científicas e a ação dos gestores de saúde nos diferentes níveis de governo, não poderíamos diminuir a enorme desigualdade no tratamento dos pacientes infartados em nosso meio, contribuindo, assim, para construir um Brasil mais justo e igualitário.

Agradecimentos

O autor agradece à Profa. Regina Horta Duarte, à Profa. Graziela Chequer e ao Dr. José Luiz Nogueira pela leitura crítica deste texto e pelas sugestões incorporadas em sua versão final. O autor é bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e participante do programa pesquisador mineiro da FAPEMIG (Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Minas Gerais).

  • 1. Sarmento-Leite R, Krepsky AM, Gottschall CA. Acute myocardial infarction: one century of history. Arq Bras Cardiol. 2001; 77(6): 593-610.
  • 2. Norris RM, Bensley KE, Caughey DE, Scott PJ. Hospital mortality in acute myocardial infarction. BMJ. 1968; 3 (5611): 143-6.
  • 3. Fox KAA, Steg PG, Eagle KA, Goodman SG, Anderson FA Jr, Granger CB, et al. Decline in rates of death and heart failure in acute coronary syndromes, 1999-2006. JAMA. 2007; 297 (17): 1892-900.
  • 4. Ferreira GMT, Correia LC, Reis H, Ferreira Fş CB, Freitas F, Ferreira GM, et al. Letalidade e morbidade por infarto agudo do miocárdio em Hospital Público em Feira de Santana - Bahia. Arq Bras Cardiol. 2009 (in press).
  • 5. Evangelista PA, Barreto SM, Guerra HL. Hospital admission and hospital death associated to ischemic heart diseases at the National Health System (SUS). Arq Bras Cardiol. 2008; 90 (2): 119-26.
  • 6. Lambert J. Os dois Brasis. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.
  • 7. Ministério da Saúde. Datasus: Informações de saúde. [citado em 2008 julho 8]. Disponível em: http://www.datasus.gov.br
  • 8. Jacobs AK, Antman EM, Ellrodt G, Faxon DP, Gregory T, Mensah GA, et al. Recommendation to develop strategies to increase the number of ST-segment-elevation myocardial infarction patients with timely access to primary percutaneous coronary intervention. Circulation. 2006; 113 (17): 2152-63.
  • Correspondência:
    Antonio Luiz Pinho Ribeiro
    Rua Campanha, 98/101
    30310-770 - Belo Horizonte, MG - Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Out 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 2009
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