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Evolução e prognóstico materno-fetal da cirurgia cardíaca durante a gravidez

Resumos

FUNDAMENTO: A cirurgia cardíaca favorece o prognóstico materno em casos refratários à terapêutica clínica, contudo associa-se a riscos ao concepto quando realizada durante a gravidez. OBJETIVO: Analisar a evolução e o prognóstico materno-fetal de gestantes submetidas à cirurgia cardíaca no ciclo gravídico-puerperal. MÉTODOS: Estudou-se a evolução de 41 gestações de mulheres que tiveram indicação de cirurgia cardíaca no ciclo gravídico puerperal. A cardiotocografia fetal foi mantida durante o procedimento nas pacientes com idade gestacional acima de 20 semanas. RESULTADOS: A média da idade materna foi de 27,8 ± 7,6 anos, houve predomínio da valvopatia reumática (87,8%), e 15 dessas (41,6%) foram submetidas à reoperação, devido à disfunção de prótese valvar. A média do tempo de circulação extracorpórea foi de 87,4 ± 43,6 min, e a hipotermia foi utilizada em 27 casos (67,5%). Treze mães (31,7%) não apresentaram intercorrências e tiveram seus recém-nascidos vivos e saudáveis. A evolução pós-operatória das demais 28 gestações (68,3%) mostrou: 17 complicações maternas (41,5%); três óbitos (7,3%); 12 perdas fetais (29,2%) e quatro casos de malformação neurológica (10%), dois dos quais evoluíram para óbito tardio. Houve uma perda de seguimento após a cirurgia. Nove pacientes (21,9%) foram operadas em caráter de emergência, situação que influenciou (p < 0.001) o prognóstico materno. CONCLUSÃO: A cirurgia cardíaca durante a gravidez permitiu sobrevida materna em 92,7% e nascimento de crianças saudáveis em 56,0% das pacientes que apresentaram complicações cardíacas refratárias à terapêutica clínica. O pior prognóstico materno teve correlação com a cirurgia em caráter de emergência.

Cirurgia torácica; gravidez; evolução clínica; prognóstico; relações materno-fetal


BACKGROUND: Cardiac surgery improves the maternal prognosis in cases refractory to medical therapy. However, it is associated with risks to the fetus when performed during pregnancy. OBJECTIVE: To analyze maternal-fetal outcome and prognosis related to cardiac surgery performed during pregnancy and puerperium. METHODS: The outcome of 41 gestations of women undergoing cardiac surgery during pregnancy and puerperium was studied. Fetal cardiotocography was performed throughout the procedure in patients with gestational age above 20 weeks. RESULTS: Mean maternal age was 27.8 ± 7.6 years; there was a predominance of patients with rheumatic valve disease (87.8%), of whom 15 (41.6%) underwent reoperation due to prosthetic valve dysfunction. Mean extracorporeal circulation time was 87.4± 43.6min and hypothermia was used in 27 (67.5%) cases. Thirteen (31.7%) mothers experienced no events and gave birth to live healthy newborns. Postoperative outcome of the remaining 28 (68.3%) pregnancies showed: 17 (41.5%) maternal complications and three (7.3%) deaths; 12 (29.2%) fetal losses, and four (10%) cases of neurological malformation, two of which progressed to late death. One patient was lost to follow-up after surgery. Nine (21.9%) patients underwent emergency surgery, and this variable was correlated with maternal prognosis (p<0.001) CONCLUSION: Cardiac surgery during pregnancy allowed survival of 92.7% of the mothers, and 56.0% of the patients who presented cardiac complications refractory to medical therapy gave birth to healthy children. Worse maternal prognosis was correlated with emergency surgery.

Thoracic surgery; pregnancy; clinical evaluation; prognosis; maternal-fetal relations


FUNDAMENTO: La cirugía cardiaca favorece el pronóstico materno en casos refractarios a la terapéutica clínica, sin embargo está asociada a riesgos cuando realizada durante el embarazo. OBJETIVO: Analizar la evolución y el pronóstico materno-fetal de gestantes sometidas a la cirugía cardiaca en el ciclo grávido puerperal. MÉTODOS: Se estudió la evolución de 41 gestaciones de mujeres que tuvieron indicación de cirugía cardiaca en el ciclo grávido puerperal. La cardiotocografía fetal se mantuvo durante el procedimiento en las pacientes con edad gestacional superior a 20 semanas. RESULTADOS: El promedio de edad materna fue de 27,8 ± 7,6 años, con predominio de valvulopatía reumática (87,8%), y 15 de ellas (41,6%) se sometieron a reoperación, debido a disfunción de prótesis valvular. El promedio del tiempo de circulación extracorpórea fue de 87,4 ± 43,6 min, y se utilizó la hipotermia en 27 casos (67,5%). Trece madres (31,7%) no presentaron intercurrencias y tuvieron sus recién nacidos vivos y sanos. La evolución postoperatoria de las demás 28 gestaciones (68,3%) reveló: 17 complicaciones maternas (41,5%); tres óbitos (7,3%); 12 pérdidas fetales (29,2%) y 4 casos de malformación neurológica (10%), dos de los cuales evolucionaron para óbito tardío. Hubo una pérdida de seguimiento tras la cirugía. Se operaron a nueve pacientes (21,9%) en carácter de emergencia, situación que influenció (p < 0.001) el pronóstico materno. CONCLUSIÓN: LA CIrugía cardiaca durante el embarazo permitió sobrevida materna en un 92,7% y nacimiento de niños sanos en 56,0% de las pacientes que presentaron complicaciones cardíacas refractarias a la terapéutica clínica. El peor pronóstico materno tuvo correlación con la cirugía en carácter de emergencia.

Cirugía torácica; embarazo; evolución clínica; pronóstico; relaciones materno-fetal


ARTIGO ORIGINAL

CARDIOPATIA E GRAVIDEZ

Evolução e prognóstico materno-fetal da cirurgia cardíaca durante a gravidez

Walkiria Samuel ÁvilaI; Ana Maria Milani GouveiaI; Pablo PomerantzeffI; Maria Rita Lemos BortolottoII; Max GrinbergI; Noedir StolfI; Marcelo ZugaibII

IInstituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP - Brasil

IIDepartamento de Obstetrícia e Ginecologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP - Brasil

CorrespondênciaCorrespondência: Walkiria Samuel Ávila Rua Martiniano de Carvalho 864 cj 1107/1108 - Bela Vista 01321-000- São Paulo, SP, Brasil E-mail: walkiria@incor.usp.br, wsavila@cardiol.br

RESUMO

FUNDAMENTO:

OBJETIVO: Analisar a evolução e o prognóstico materno-fetal de gestantes submetidas à cirurgia cardíaca no ciclo gravídico-puerperal.

MÉTODOS: Estudou-se a evolução de 41 gestações de mulheres que tiveram indicação de cirurgia cardíaca no ciclo gravídico puerperal. A cardiotocografia fetal foi mantida durante o procedimento nas pacientes com idade gestacional acima de 20 semanas.

RESULTADOS: A média da idade materna foi de 27,8 ± 7,6 anos, houve predomínio da valvopatia reumática (87,8%), e 15 dessas (41,6%) foram submetidas à reoperação, devido à disfunção de prótese valvar. A média do tempo de circulação extracorpórea foi de 87,4 ± 43,6 min, e a hipotermia foi utilizada em 27 casos (67,5%). Treze mães (31,7%) não apresentaram intercorrências e tiveram seus recém-nascidos vivos e saudáveis. A evolução pós-operatória das demais 28 gestações (68,3%) mostrou: 17 complicações maternas (41,5%); três óbitos (7,3%); 12 perdas fetais (29,2%) e quatro casos de malformação neurológica (10%), dois dos quais evoluíram para óbito tardio. Houve uma perda de seguimento após a cirurgia. Nove pacientes (21,9%) foram operadas em caráter de emergência, situação que influenciou (p < 0.001) o prognóstico materno.

CONCLUSÃO: A cirurgia cardíaca durante a gravidez permitiu sobrevida materna em 92,7% e nascimento de crianças saudáveis em 56,0% das pacientes que apresentaram complicações cardíacas refratárias à terapêutica clínica. O pior prognóstico materno teve correlação com a cirurgia em caráter de emergência.

Palavras-chave: Cirurgia torácica, gravidez, evolução clínica, prognóstico, relações materno-fetal.

Introdução

Estima-se que a doença cardíaca ocorra entre 0,5 e 1,0% das gestações, contribuindo para elevar a taxa de morbimortalidade materno-fetal1. No Brasil, entre os demais tipos de cardiopatia, a reumática continua a ser prevalente nas mulheres durante a gravidez e associa-se a altas taxas de complicações2-4.

A deterioração funcional consequente à sobrecarga circulatória fisiológica no período gestacional5,6 em pacientes com reserva funcional reduzida é, muitas vezes, refratária à terapêutica clínica.

A cirurgia cardíaca tem proporcionado prognóstico materno benéfico7,8 nesses casos; contudo o procedimento associa-se a riscos obstétricos e fetais elevados, com destaque para o impacto da circulação extracorpórea (CEC) e dos agentes anestésicos. Desse modo, o tratamento cirúrgico de cardiopatia durante o ciclo gravídico-puerperal é realizado em situações restritas.

Apresentamos nossa experiência com a cirurgia cardíaca, realizada depois de ter sido considerada o único método terapêutico passível de reverter o mau prognóstico em dada circunstância clínica específica.

Métodos

No período de 1986 a 2007, 41 pacientes acompanhadas pelo Setor de Cardiopatia e Gravidez da Equipe de Cardiopatias Valvares do Instituto do Coração (InCor) foram operadas durante o ciclo gravídico-puerperal.

Quando do procedimento cirúrgico, a cardiotocografia registrou, de modo contínuo, a dinâmica uterina e os batimentos fetais nas pacientes com idade gestacional acima de 20 semanas. As técnicas cirúrgica e anestésica obedeceram às diretrizes estabelecidas para a cirurgia cardíaca. Cuidados adicionais em relação à cirurgia convencional foram considerados no que diz respeito à posição da paciente, à heparinização, ao conteúdo do priming da CEC, ao grau de hipotermia e à proteção miocárdica9.

Foram estudadas as seguintes variáveis maternas: (a) pré-operatórias, as que incluíram idade, cardiopatia, idade gestacional na ocasião da cirurgia e causa da indicação cirúrgica; (b) intra-operatórias, quando foram considerados o tipo de procedimento, a duração (minutos) e a temperatura da CEC; e (c) pós-operatórias; que corresponderam a complicações cardíacas, hemorragia, infecção e óbito.

Analisaram ainda: ocorrência de perdas fetais, que incluiu aborto espontâneo (até 20 semanas de gestação), natimorto e neomorto (até 28 dias após o nascimento) e prematuridade (nascimento até 37 semanas de gestação); peso ao nascer; incidência de malformação congênita e óbito tardio, considerado após o primeiro ano de vida.

A prevenção do trabalho de parto prematuro com a progesterona natural (óvulos de 50 mg a cada 12h nos períodos intra- e pós-operatório) teve preferência ao uso da indometacina, pelo risco que esse fármaco oferece ao fechamento do canal arterial intra-útero.

O estudo estatístico descritivo dos resultados maternos e dos recém-nascidos foi obtido utilizando média e desvio-padrão após a aplicação do teste de normalidade de Shapiro-Wilk. A análise dos efeitos independentes das características maternas sobre a chance de complicações utilizou o método de Wolf para a obtenção do intervalo de confiança.

Resultados

A idade materna variou entre 15 e 44 anos (média de 27,8 ± 7,6 anos), e, entre as lesões cardíacas de base, houve predomínio da valvopatia reumática, que correspondeu a 36 casos (90,0%). Desses, 17 (42,5%) apresentavam disfunção de prótese valvar (15 biológicas e duas mecânicas) (Tabela 1).

Entre as situações clínicas que indicaram a cirurgia, a insuficiência cardíaca e a congestão pulmonar foram principais causas, correspondendo a 25 casos (62,5%): cinco de choque cardiogênico (12,5%), três dissecções de aorta (7,3%), que ocorreram em coarctação de aorta, síndrome de Marfan e coração estruturalmente normal (Tabela 2).

Trinta e sete das 41 cirurgias realizadas aconteceram com idade gestacional de 4 a 34 semanas (média de 21,3 ± 9,3), e quatro ocorreram no puerpério (média de 10,2 ± 8 dias após o parto). A reoperação foi indicada em 15 casos (37,5%) devido à disfunção de prótese valvar, seguida de 14 casos de implante de prótese valvar (34,1%), sete comissurotomias da mitral (17,07%), três correções de aneurisma de aorta (7,31%), um caso de revascularização miocárdica (2,43%) e um procedimento de Blalock-Taussig (2,43%), a única intervenção da série realizada sem CEC. Nove pacientes (21,9%) foram operadas em caráter de emergência.

O tempo de CEC variou entre 16 e 203 min (média de 87,4 ± 43,6). A hipotermia durante a CEC foi utilizada em 27 casos e variou entre 13,0 e 32,2°C (30,1°C ± 4,3), consideradas leve (11 casos), moderada (11 casos) e profunda (cinco casos). Durante a CEC, houve registro de bradicardia fetal com média de 60 batimentos por minuto (b/min), que reverteu espontaneamente à frequência cardíaca normal, média de 140 b/min após a CEC (Figura 1).


Treze gestações (31,7%) transcorreram e evoluíram sem complicação materno-fetal (figura 2). A evolução das demais 28 (68,3%) mostrou: 17 complicações maternas (41,4%) e três óbitos no pós-operatório (7,31%) (Tabela 3); 12 perdas fetais (29,2%) e quatro casos de malformação neurológica (10%), dois dos quais evoluíram para óbito tardio. Houve uma perda de seguimento obstétrico após a alta hospitalar no pós-operatório da cirurgia cardíaca.


O peso de 27 recém-nascidos vivos (63,4%) foi, em média, 2.118,1 ± 875,1 g; houve 14 partos prematuros (35%), entre os quais ocorreram oito óbitos e quatro complicações neurológicas (10%) - anoxia cerebral associada a quadriparesia, atrofia cortical, hidrocefalia e retardo mental. Essas quatro malformações foram verificadas em dois casos de implante de prótese valvar biológica (um em posição aórtica e outro em mitro-aórtica) e em dois casos de reoperação para substituição de prótese valvar biológica em posições aórtica e mitral, respectivamente.

O caráter emergencial da indicação cirúrgica foi a única variável que teve significância na correlação entre as características maternas e as complicações pós-operatórias (tabela 4).

Discussão

A experiência mundial em cirurgia cardíaca durante a gravidez apresenta resultados controversos10-13. Predominam o caráter retrospectivo e a heterogeneidade dos procedimentos associados às dificuldades de padronização das técnicas cirúrgicas, fatos que dificultam a análise judiciosa das variáveis de prognóstico e seus reflexos na conduta durante a gestação.

O presente estudo incluiu 41 pacientes acompanhadas pela mesma equipe multidisciplinar durante a gravidez e permitiu o cumprimento de uma padronização de condutas clínica, cirúrgica e obstétrica.

O predomínio da valvopatia mitral, 27 casos (65,8%), especialmente das lesões estenóticas (24,3% em valva natural e 26,8% em prótese biológica), é uma das consequências da doença reumática que, ainda não erradicada em nosso país, acomete, preferencialmente, a valva mitral no sexo feminino e apresenta manifestação clínica na idade reprodutiva.

O aumento progressivo do débito cardíaco no início do segundo trimestre da gestação propicia a progressão da classe funcional (CF) de I/II para III/IV, da classificação da New York Heart Association (NYHA), o que é habitual em pacientes portadoras de valvopatias e que exige constante reavaliação clínica e tratamento das eventuais complicações, incluindo a intervenção cirúrgica nos casos refratários.

Arnoni e cols.14 mostraram que a maior causa de indicação cirúrgica na gravidez em 49 casos de valvopatia (84,4%) foi a progressiva deterioração hemodinâmica, o edema agudo dos pulmões e a persistência da CF III/IV, a despeito do tratamento clínico.

Outro aspecto de importância é a idade gestacional em que é realizada a cirurgia cardíaca. Quanto mais precoce é o aparecimento de complicações em pacientes com lesões graves, maior é a tendência para se indicar a cirurgia, mesmo nos casos em que a boa resposta ao tratamento clínico é imediata, porque o potencial de deterioração hemodinâmica com o progredir da gravidez e durante o parto e o puerpério é muito alto, favorecendo a recorrência de complicação e o óbito materno. Essa linha de pensamento justifica a média da idade gestacional de 20 semanas, encontrada em nosso estudo.

A necessidade de reoperação em 17 casos de valvopatia (41,4%) que cursaram com insuficiência cardíaca e choque cardiogênico alerta para a má evolução clínica da disfunção de prótese valvar na gravidez, seja por calcificação na biológica seja por trombose na mecânica.

Esses dados estão de acordo com Salazar e cols.15, os quais mostraram que, entre 15 casos de cirurgia cardíaca no período gravídico, 13 (86,6%) eram portadoras de valvopatia reumática, porém oito (61,5%) apresentavam disfunção de prótese valvar. Deve-se, portanto, considerar que a disfunção de prótese valvar representa risco materno no transcurso da gestação e alto potencial da necessidade de reoperação devido à deterioração hemodinâmica, às vezes irreversível.

No que diz respeito à dissecção de aorta, situação que exigiu cirurgia de emergência em três casos, este é evento menos frequente e de alto risco no período gestacional16. As dificuldades do diagnóstico, a valorização dos sintomas (que se confundem com os da gravidez normal) e a limitação da investigação invasiva (devido ao potencial risco ao concepto) resultam na demora do tratamento e aumentam a taxa de morte pela doença.

A ocorrência da dissecção de aorta em uma mulher com síndrome de Marfan e outra com coarctação de aorta, em nosso estudo, é uma situação já documentada e reconhecida como relacionada à gravidez13. Entretanto surpreende a sua incidência em gestante saudável, como descrito no terceiro caso de nossa série, suscitando a hipótese da forte correlação entre gravidez e dissecção da aorta, decorrente das modificações estruturais vasculares da gestação17.

A indicação de cirurgia na dissecção considerou as chances de sobrevida da mãe e do feto, o tipo de dissecção, o quadro clínico materno e a idade gestacional. Nos dois casos em que a dissecção ocorreu com feto viável (32 e 33 semanas de gestação), a cesariana que precedeu à cirurgia de correção do aneurisma visou à preservação da vida fetal e evitou o risco do trabalho de parto espontâneo no pós-operatório18.

Admite-se que o risco de morte materna pela cirurgia cardíaca não é modificado pela gravidez. Contudo verifica-se que a taxa de 7,5% de óbito materno verificada em nosso estudo, a de 8,6% registrada por Arnoni e cols.14 e a de 13,3% descrita por Salazar e cols.15 são relativamente elevadas quando comparadas àquela do tratamento cirúrgico em valvopatia para essa faixa etária.

Esses percentuais deveram-se, segundo os autores, ao caráter emergencial da indicação cirúrgica que, no presente estudo, foi a única variável a se correlacionar com a complicação e o óbito materno no pós-operatório.

No que diz respeito aos resultados da gravidez, os percentuais de 25% de perdas fetais e 35% de prematuridade registrados em nosso estudo, acima da população de gestantes cardiopatas, estimados em 12% e 15%, respectivamente, são prováveis consequências das variações de fluxo sanguíneo e de saturação arterial de oxigênio decorrentes da anestesia e da CEC.

A hiperventilação durante a anestesia resulta em redução do fluxo uterino em 25% e queda do retorno venoso e do débito cardíaco maternos pelos efeitos mecânicos da pressão positiva19. A hiperventilação materna e a alcalose respiratória também diminuem a tensão arterial de oxigênio fetal e favorecem o desvio da curva de dissociação da hemoglobina materna20.

Admite-se que a CEC proporcione a formação de microêmbolos placentários, por empilhamento de hemácias e de microbolhas que, em conjunto com as variações de pressão arterial e a hipotermia materna, agravam a hipoxia na circulação útero-placentária e desencadeiam a dinâmica uterina e o trabalho de parto21.

Os mesmos efeitos explicam a bradicardia fetal que pode ser atribuída a modificações de fluxo placentário, o qual, durante a CEC, passa de pulsátil para não pulsátil e laminar, além da hemodiluição e da hipotermia22,23.

Os admitidos riscos teratogênicos consequentes à anestesia e à CEC na fase de embriogênese não foram verificados nos três casos de cirurgia eletiva acontecida no primeiro trimestre da gravidez. Contudo houve quatro casos de malformação neurológica (11,4%) ocorridos em fetos de pacientes operadas após 20 semanas de gestação, provavelmente em decorrência da hipoxia intra-útero.

A redução do fluxo sanguíneo nas artérias umbilicais causam hipoxemia e vasoconstrição na circulação fetal, o que, quando persistente e prolongada, esgota o mecanismo compensatório de vasodilatação e o aumento de fluxo sanguíneo diastólico na artéria cerebral média, resultando em isquemia cerebral24,25.

Daí se justifica o emprego da dopplerfluxometria para a monitorização do fluxo das artérias uterinas e das artérias umbilicais como guia para o técnico da perfusão controlar o padrão hemodinâmico durante a CEC26,27.

Conclui-se que a cirurgia cardíaca realizada no ciclo gravídico-puerperal permitiu a sobrevida materna em 92,7% e o nascimento de crianças saudáveis em 56,0% das gestantes que apresentaram complicações cardíacas refratárias a outras terapêuticas. O caráter de emergência na indicação da cirurgia teve correlação significativa com o pior prognóstico materno no pós-operatório.

Agradecimentos

À Dra. Maeve de Barros Correia pela revisão ortográfica.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 01/07/2008; revisado recebido 23/09/08; aceito 23/09/08.

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  • Correspondência:
    Walkiria Samuel Ávila
    Rua Martiniano de Carvalho 864 cj 1107/1108 - Bela Vista
    01321-000- São Paulo, SP, Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Out 2009
    • Data do Fascículo
      Jul 2009

    Histórico

    • Revisado
      23 Set 2008
    • Recebido
      01 Jul 2008
    • Aceito
      23 Set 2008
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