Acessibilidade / Reportar erro

Associação da síndrome metabólica e seus componentes na insuficiência cardíaca encaminhada da atenção primária

Resumos

FUNDAMENTO: A síndrome metabólica (SM) caracteriza-se por um conjunto de fatores de risco que, quando presentes, se associam a elevadas taxas de eventos cardiovasculares, como também a risco de insuficiência cardíaca (IC). Em nosso meio, não está estabelecida a associação da SM nos pacientes portadores de IC crônica estável. OBJETIVO: Determinar, em pacientes encaminhados da Atenção Primária, a prevalência de SM, segundo o sexo e o tipo de IC. MÉTODOS: De janeiro de 2005 a agosto de 2006, 144 pacientes foram incluídos em um estudo transversal. A ecocardiografia, por meio de critérios modificados no estudo EPICA, foi utilizada para definir o tipo de IC, como também sua presença ou ausência. A análise estatística foi processada pelo software SAS® System, versão 6.04, sendo adotado o nível de significância de 5%. RESULTADOS: SM foi observada em 111 pacientes (77%), dos quais 73 (66%) eram do sexo feminino (razão de chance [RC] de 0,195; intervalo de confiança = 0,08-0,46; p < 0,0001). IC foi identificada em 102 pacientes (71%), com o sexo feminino apresentando grande correlação com a presença de SM: 51 pacientes (65%) (RC de 0,116; intervalo de confiança = 0,36-0,37; p < 0,0001). Entre os portadores de IC, 61 pacientes (42%) apresentavam IC com função sistólica preservada e 41 (29%), IC com disfunção sistólica (p = ns). IC com função sistólica preservada foi associada à presença de SM em 53 (87%) dos 61 pacientes (p = 0,022). CONCLUSÃO: A SM está fortemente associada à presença de IC com função sistólica preservada e ao sexo feminino em nossa comunidade.

Síndrome metabólica; insuficiência cardíaca; baixo débito cardíaco; atenção primária à saúde; mulheres


BACKGROUND: Metabolic syndrome (MS) is characterized by a collection of risk factors that are associated with elevated rates of cardiovascular events and the risk of developing heart failure (HF). In our field, the association of MS in stable chronic HF patients has not been established. OBJECTIVE: To determine the prevalence of MS in relation to gender and HF type in patients treated at a Primary Care Facility. METHODS: Between January 2005 and August 2006, 144 patients were included in a cross sectional study. An echocardiogram, using the modified criteria of the EPICA study, was performed to determine whether or not the patient had HF, and of which type. Statistical analysis was conducted using the software SAS™ System, version 6.04, and statistical significance was established as 5%. RESULTS: MS was observed in 111 patients (77%), of which 73 (66%) were females: odds ratio (OR) 0.195 - (confidence interval - CI = 0.08 - 0.46) and p< 0.0001. HF was identified in 102 patients (71%) with a great correlation between females and the presence of MS: 51 patients (65%); OR 0.116 (CI = 0.36- 0.37) and p < 0.0001. Among the HF patients, 61 (42%) presented HF with preserved systolic function and 41 (29%) with systolic dysfunction; p = ns. HF with preserved systolic function was associated with the presence of MS in 53 (87%) of the 61 patients, p = 0.022. CONCLUSION: In our community, MS is closely related to HF with preserved systolic function and to the female gender.

Metabolic syndrome; heart failure; cardiac output, low; primary health care; women


ARTIGO ORIGINAL

Associação da síndrome metabólica e seus componentes na insuficiência cardíaca encaminhada da atenção primária

The association between metabolic syndrome and its components and heart failure in patients referred to a primary care facility

Flávio Augusto Colucci Coelho; Marco Aurélio Espósito Moutinho; Verônica Alcooforado de Miranda; Leandro Reis Tavares; Maurício Rachid; Maria Luiza Garcia Rosa; Evandro Tinoco Mesquita

Hospital Universitário Antônio Pedro (HUAP), Departamento de Pós-Graduação em Ciências Cardiovasculares da Universidade Federal Fluminense (UFF) - Niterói, RJ - Brasil

Correspondência Correspondência: Flávio Augusto Colucci Coelho Rua Marquês de Paraná, 303 - 6º andar 28800-000 - Niterói, RJ - Brasil E-mail: flaviocolucci@yahoo.com.br

RESUMO

FUNDAMENTO: A síndrome metabólica (SM) caracteriza-se por um conjunto de fatores de risco que, quando presentes, se associam a elevadas taxas de eventos cardiovasculares, como também a risco de insuficiência cardíaca (IC). Em nosso meio, não está estabelecida a associação da SM nos pacientes portadores de IC crônica estável.

OBJETIVO: Determinar, em pacientes encaminhados da Atenção Primária, a prevalência de SM, segundo o sexo e o tipo de IC.

MÉTODOS: De janeiro de 2005 a agosto de 2006, 144 pacientes foram incluídos em um estudo transversal. A ecocardiografia, por meio de critérios modificados no estudo EPICA, foi utilizada para definir o tipo de IC, como também sua presença ou ausência. A análise estatística foi processada pelo software SAS® System, versão 6.04, sendo adotado o nível de significância de 5%.

RESULTADOS: SM foi observada em 111 pacientes (77%), dos quais 73 (66%) eram do sexo feminino (razão de chance [RC] de 0,195; intervalo de confiança = 0,08-0,46; p < 0,0001). IC foi identificada em 102 pacientes (71%), com o sexo feminino apresentando grande correlação com a presença de SM: 51 pacientes (65%) (RC de 0,116; intervalo de confiança = 0,36-0,37; p < 0,0001). Entre os portadores de IC, 61 pacientes (42%) apresentavam IC com função sistólica preservada e 41 (29%), IC com disfunção sistólica (p = ns). IC com função sistólica preservada foi associada à presença de SM em 53 (87%) dos 61 pacientes (p = 0,022).

CONCLUSÃO: A SM está fortemente associada à presença de IC com função sistólica preservada e ao sexo feminino em nossa comunidade.

Palavras-chave: Síndrome metabólica, insuficiência cardíaca, baixo débito cardíaco, atenção primária à saúde, mulheres.

SUMMARY

BACKGROUND: Metabolic syndrome (MS) is characterized by a collection of risk factors that are associated with elevated rates of cardiovascular events and the risk of developing heart failure (HF). In our field, the association of MS in stable chronic HF patients has not been established.

OBJECTIVE: To determine the prevalence of MS in relation to gender and HF type in patients treated at a Primary Care Facility.

METHODS: Between January 2005 and August 2006, 144 patients were included in a cross sectional study. An echocardiogram, using the modified criteria of the EPICA study, was performed to determine whether or not the patient had HF, and of which type. Statistical analysis was conducted using the software SAS™ System, version 6.04, and statistical significance was established as 5%.

RESULTS: MS was observed in 111 patients (77%), of which 73 (66%) were females: odds ratio (OR) 0.195 – (confidence interval - CI = 0.08 – 0.46) and p< 0.0001. HF was identified in 102 patients (71%) with a great correlation between females and the presence of MS: 51 patients (65%); OR 0.116 (CI = 0.36– 0.37) and p < 0.0001. Among the HF patients, 61 (42%) presented HF with preserved systolic function and 41 (29%) with systolic dysfunction; p = ns. HF with preserved systolic function was associated with the presence of MS in 53 (87%) of the 61 patients, p = 0.022.

CONCLUSION: In our community, MS is closely related to HF with preserved systolic function and to the female gender.

Key words: Metabolic syndrome; heart failure; cardiac output, low; primary health care; women.

Introdução

A síndrome metabólica (SM) caracteriza-se por uma associação de fatores de risco, tais como aumento da cintura abdominal, hipertensão arterial sistêmica (HAS), hiperglicemia, resistência insulínica e dislipidemia (níveis reduzidos de colesterol de lipoproteína de alta densidade [HDL] e elevação dos triglicérides). A presença agrupada desses fatores está associada a elevadas taxas de eventos cardiovasculares, como morte súbita, infarto agudo do miocárdio e acidente vascular encefálico, assim como a maior risco de desenvolvimento de diabete melito (DM)1-4.

Em diferentes populações adultas observa-se elevada prevalência de SM, variando entre 25% e 35%5,6, sendo mais freqüente entre as mulheres. Diferentes critérios têm sido utilizados para o diagnóstico da SM, entre eles o da Organização Mundial da Saúde (OMS)7, do National Cholesterol Education Program – Panel III (NCEP-ATP III)8 e, recentemente, da Federação Internacional de Diabete (FID)7-9.

Evidências epidemiológicas cada vez mais sólidas apontam para a associação entre SM e presença de alterações cardiovasculares. Recentemente foi identificado maior risco de aparecimento de insuficiência cardíaca (IC), particularmente em homens de meia-idade e idosos1-4.

Em nosso meio não estão estabelecidas a prevalência de SM e seus componentes, em portadores de IC na comunidade, assim como a existência de diferenças entre sua prevalência nos diferentes gêneros, principalmente entre pacientes atendidos na comunidade.

Métodos

De janeiro de 2005 a agosto de 2006, 150 pacientes foram incluídos em um estudo transversal envolvendo pacientes com suspeita clínica de IC atendidos pelo Programa Médico de Família (PMF). Os pacientes foram encaminhados ao ambulatório especializado de IC, onde se buscou a confirmação diagnóstica de IC por meio de critérios clínicos e ecocardiográficos. A amostra populacional de pacientes com IC foi estimada em 100 pacientes, considerando a população atendida pelo PMF, que é de 100 mil pacientes, e a prevalência de IC na população geral, que é de 1% a 2%, conforme dados do estudo de Framingham10.

Foram considerados critérios de inclusão: suspeita de IC, presença de dispnéia, cansaço ou edema de membros inferiores ou, ainda, pacientes assintomáticos em uso de digitálico e/ou inibidores da enzima de conversão da angiotensina e/ou diuréticos. Todos os pacientes deveriam ser maiores de 18 anos e provenientes do PMF.

Foram considerados critérios de exclusão: ausência de dados necessários à análise da presença de SM (laboratoriais) ou de IC (ecocardiográficos), além de outras formas de IC que não fossem IC com função sistólica preservada ou IC por disfunção sistólica. Ecocardiografia transtorácica, tanto uni como bidimensional, de acordo com os critérios modificados no estudo Epidemiologia da Insuficiência Cardíaca e Aprendizagem (EPICA) para paciente com IC na comunidade11, foi utilizada para definir o tipo de IC, como também sua presença ou ausência. Em conformidade com alterações funcionais e estruturais avaliadas pela ecocardiografia, foram identificados os pacientes classificados como portadores de IC.

As alterações estruturais à ecocardiografia avaliadas foram: 1) fração de encurtamento do ventrículo esquerdo (VE) < 28%; 2) importante alteração segmentar associada à dilatação do VE; 3) índice de massa do VE > 134 g/m² nos homens e > 110 g/m² nas mulheres; 4) hipertrofia do septo interventricular e da parede posterior do VE segundo os parâmetros para idade e sexo; 5) aumento do diâmetro do átrio esquerdo (AE) segundo os parâmetros para idade e sexo; 6) lesão valvar de moderada a grave, de origem reumática; 7) derrame pericárdico moderado a grave; e 8) dilatação do ventrículo direito (VD).

As alterações estruturais que definiram o tipo de IC foram: 1) fração de encurtamento < 28% ou na presença de importante alteração segmentar associada à dilatação do VE (classificado como IC por disfunção sistólica); 2) fração de encurtamento > 28% sem apresentar alteração segmentar, porém estando presente aumento do AE ou do índice de massa do VE (diferenciada pelo sexo), ou hipertrofia do septo interventricular ou da parede posterior do VE (classificado como IC com função sistólica preservada).

Na admissão para o estudo, os pacientes foram avaliados clinicamente e submetidos a realização e análise de radiografia de tórax em póstero-anterior (PA) e perfil esquerdo e de eletrocardiografia (ECG) de 12 derivações, tendo sido efetuados exames bioquímicos (glicemia de jejum, triglicérides e HDL), para composição dos critérios que compõem a SM.

Para definição dos componentes da SM pelo critério do NCEP-ATP III, foram utilizados os seguintes valores: 1) cintura abdominal > 102 cm para homens e > 88 cm para mulheres; 2) triglicérides > 150 mg/dl; 3) HDL-colesterol < 40 mg/dl para homens e < 50 mg/dl para mulheres; 4) pressão arterial sistólica (PAS) > 130 mmHg x 85 mmHg; e 5) glicemia > 110 mg/dl. E pelo critério da FID: 1) cintura abdominal > 94 cm para homens e > 80 cm para mulheres; 2) triglicérides > 150 mg/dl, 3) HDL-colesterol < 40 mg/dl para homens e < 50 mg/dl para mulheres; 4) PAS > 130 mmHg x 80 mmHg; e 5) glicemia > 100 mg/dl.

Os pacientes em uso de medicamentos hipoglicemiantes ou anti-hipertensivos foram pontuados como critério positivo. A SM foi confirmada pelo critério do NCEP-ATP III por meio da presença de três dentro dos cinco possíveis componentes7. Já para inclusão por meio dos componentes da FID, foi necessária a presença de alteração da cintura abdominal associada a outras duas alterações8,9. DM foi definido por níveis glicêmicos > 126 mg% e resistência insulínica, por valores glicêmicos entre 100 mg% e 125 mg%.

As variáveis avaliadas nesse modelo foram idade, sexo, pressão arterial, cintura abdominal, glicemia, HDL, triglicérides e índice de massa corpórea (IMC), além dos dados da ecocardiografia, para definição tanto do tipo da IC como de sua presença ou ausência.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense, tendo sido obtido o termo de consentimento livre e esclarecido de todos os participantes.

Análise estatística - Para estimar a associação entre presença de IC e SM, a diferença de médias foi calculada com a utilização do teste t de Student e a diferença de proporções e a razão de chances (RC) de prevalência foram calculadas com a aplicação do teste de qui-quadrado (c2). O critério de determinação de significância adotado foi o nível de 5%. A análise estatística foi processada pelo software SAS® System, versão 6.04.

Resultados

A tabela 1 apresenta as características clínicas e metabólicas dos pacientes incluídos no estudo e que foram encaminhados com suspeita de IC da Atenção Primária. Da amostra de 150 pacientes, seis foram excluídos por serem portadores de doença valvar moderada a grave. O estudo envolveu 144 pacientes, dos quais 82 (57%) eram do sexo feminino. Nesse grupo, não foi observada diferença estatística referente à média de idade e aos sexos. A SM pelo critério diagnóstico FID foi mais freqüente, sendo observada em 103 pacientes (72%), dos quais 69 (67%) eram do sexo feminino (p < 0,0001). A SM pelo critério do NCEP-ATP III foi observada em 65 pacientes (70%) do sexo feminino (p < 0,0001).

IC foi confirmada, pelos critérios ecocardiográficos, em 102 pacientes (71%), predominando a IC com função sistólica preservada em 61 pacientes (42%; p = ns).

Não ocorreram diferenças significativas entre os componentes da SM e o sexo quando utilizada a média das medidas que determinam a presença de SM. Exceção feita ao IMC, que obteve maior valor no grupo feminino (p = 0,032) (tab. 1).

Analisando os pacientes no que se refere à presença ou à ausência de IC, não foi obtida significância estatística relacionada a idade, sexo e freqüência dos componentes da SM. Somente foi relacionada maior freqüência entre os portadores de IC apresentando síndrome de resistência insulínica (p = 0,07) e DM (p = 0,09) (tab. 2).

Na caracterização da SM em relação ao tipo de IC, foi observada maior freqüência relacionada à presença de IC com função sistólica preservada (RC de 3,82; intervalo de confiança = 1,4-10; p = 0,005). Nesse aspecto, PAS, pressão arterial diastólica (PAD), cintura abdominal (critério FID e NCEP-ATP III), triglicérides e IMC foram os componentes mais freqüentes para a presença de IC com função sistólica preservada.

A média de componentes que determinam a SM foi utilizada para caracterizar a presença de SM. Em relação ao tipo de IC, a maior associação de componentes ocorreu no grupo da IC com função sistólica preservada, com presença de 3,6 ± 1,0 (critério FID) (p = 0,009) e de 3,2 ± 1,1 (critério NCEP-ATP III) (p = 0,017) (tab. 3).

Quando avaliada a prevalência da SM, por ambos os critérios (NCEP-ATP III e FID), a presença de SM associada à IC ocorreu em 79 pacientes (78%). Para ambos os grupos existiu correlação significativa entre o tipo de IC e os critérios FID e NCEP-ATP III, sendo mais prevalente a presença de IC com função sistólica preservada tanto pelo critério NCEP-ATP III (p = 0,020) como pelo critério FID (p = 0,010) (tab. 3).

A prevalência de SM foi de 49 pacientes (80%) para IC com função sistólica preservada e de 22 pacientes (54%) para IC por disfunção sistólica, quando utilizado o critério FID. Pelo critério NCEP-ATP III, a prevalência foi de 47 pacientes (77%) para IC com função sistólica preservada e de 21 pacientes (51%) para IC por disfunção sistólica (gráficos 1, 2 e 3).




A avaliação da associação entre IC e SM diferenciada pelo sexo indicou que uma mulher com IC tem chance oito vezes maior de apresentar SM comparativamente a um homem, considerando o critério do NCEP-ATP III e/ou o critério da FID (RC de 0,116; intervalo de confiança = 0,36-0,37; p < 0,0001) (tab. 4).

Discussão

Este estudo, primeiro a avaliar a presença de SM na IC crônica estável encaminhada da Atenção Primária em nosso país, identificou elevada prevalência de SM e IC nos pacientes encaminhados da Atenção Primária. Os critérios do NCEP-ATP III e as novas determinações da FID foram utilizados para identificar a presença de SM nesse cenário. Foi observada maior freqüência de SM no sexo feminino em relação ao sexo masculino (70% e 67%, respectivamente) por meio dos critérios do NCEP-ATP III e da FID. A IC com função sistólica preservada foi o tipo de IC que mais se associou à SM, sendo também a forma mais prevalente entre as mulheres.

A grande associação relacionada à presença de SM com o sexo feminino pode, indiretamente, como demonstrado em estudos anteriores12,13, estar correlacionada às alterações apresentadas, tais como elevação dos triglicérides (53%), adiposidade abdominal, HAS (94%) e elevação do IMC (46%), associadas a características próprias do sexo feminino, como as alterações hormonais. Assim, esses fatores podem ser as alterações determinantes desta casuística para justificar a presença de IC com função sistólica preservada no sexo feminino, determinando, dessa forma, as possíveis alterações estruturais apresentadas à ecocardiografia como o elo na correlação encontrada neste estudo entre presença de IC com função sistólica preservada e sexo feminino.

Recentemente, a SM foi identificada como fator de risco independente para o surgimento de IC1-4,14. Os possíveis mecanismos associados à SM que ocasionam a IC ainda são especulativos. No entanto, evidências sugerem que a agressão da integridade celular cardíaca a partir da SM pode favorecer o desenvolvimento de IC, como, por exemplo, o efeito estimulador da insulina no miocárdio de cobaias (camundongos), propiciando aumento da massa cardíaca e conseqüente diminuição do débito cardíaco15, hiperestimulação do sistema nervoso simpático, determinado pela hiperinsulinemia, assim como sua capacidade de promover ativação de fibroblastos em pacientes hipertensos, determinando hipertrofia do VE, aumento da produção de colágeno e fibrose16. Esse conjunto de ações determina a progressão da doença e maior mortalidade.

A IC conceitua-se como uma epidemia cardiovascular emergente, cujo aumento se encontra diretamente relacionado ao crescimento populacional, como também ao alarmante crescimento de condições predisponentes a sua presença, destacando-se os componentes da SM (DM, HAS, dislipidemia e obesidade)17. Assim, é de extrema importância a identificação de possíveis fatores de risco modificáveis para o surgimento da IC, permitindo adequada intervenção.

A obesidade visceral, outro fator correlacionado à SM, desenvolve seu papel de agressão ao miocárdio por meio da produção de substâncias com ações cardiovasculares e sistêmicas, como, por exemplo, leptina, citoquinas inflamatórias (interleucinas [IL] e fator de necrose tumoral [TNF]), inibidor do ativador de plasminogênio (PAI-1) e ácidos graxos livres, além de reduzir a adiponectina18. Dessa forma, a perda da ação protetora vascular, gerada pela diminuição dos níveis de adiponectina19,20, interligada a uma ação inflamatória e protrombótica, determinará o substrato que será deletério ao sistema cardiovascular.

Conceitos atuais determinam que a fisiopatologia da IC se diferencia em relação ao sexo e ao tipo de IC12,13. Nesses estudos, verifica-se o predomínio de IC com função sistólica preservada associada ao sexo feminino, além de idades avançadas e menor freqüência de cardiopatia isquêmica21. Tal fato tem correlação em registros mundiais, como demonstrado por Rodríguez-Artalejo e cols.22, em que o número de óbitos referentes ao sexo feminino aumentou no período de 1980 a 2000. Esse fato é muito importante e demonstra a não-conformidade em relação ao tratamento da IC no sexo feminino.

Segundo os dados do estudo EPICA11, que avaliou pacientes portadores de IC na comunidade, a IC, no sexo feminino, ocorre em idade mais avançada, predominando a IC com função sistólica preservada.

Kenchaiah e cols.23 demonstraram que o risco de IC, quando relacionado ao aumento de uma unidade no IMC, é de 5% para os homens e de 7% para as mulheres, e que ao se comparar a incidência de IC entre obesos e não-obesos a IC apresenta o dobro de risco, sendo esse risco maior para o sexo feminino em comparação com o sexo masculino (2,12 e 1,90, respectivamente). Outros trabalhos24 sugerem que os hormônios femininos afetam a função cardíaca por meio de ação vasodilatadora exercida pelo estrogênio, que, em conjunto com a HAS, poderia reduzir a ação da renina e, conseqüentemente, a fibrose miocárdica.

Um subestudo de Framingham25, realizado entre 1950 e 1999, determinou que, em uma população constituída de brancos, a prevalência de IC é maior em homens, o que poderia ser explicado pela maior incidência de aterosclerose no grupo masculino em relação ao feminino. Barker e cols.26 demonstraram que o aumento da epidemia de IC ocorria em uma população masculina idosa (> 65 anos), em que o aumento de sua prevalência estava diretamente associado ao aumento de sua incidência, estando, portanto, diretamente relacionado a sua maior sobrevida. Outros dados relevantes foram demonstrados por Levy e cols.27, em cujo estudo a associação de IC com a hipertensão foi mais freqüente no sexo feminino, além de a HAS ter determinado risco para o desenvolvimento de IC duas vezes maior no grupo masculino e três vezes maior no feminino.

Neste estudo, foi verificada expressiva subutilização de hipoglicemiante: em uma população de 78 pacientes (54%) portadores de glicemia > 100 mg/dl, somente 37 pacientes (47%) usavam algum tipo de hipoglicemiante oral. Outra correlação importante foi a forte tendência à presença de IC em portadores de DM e síndrome de resistência insulínica, com valores de p, respectivamente, de 0,07 e 0,09 e RC de 2,22 para o grupo de portadores de resistência insulínica e de 2,77 para o grupo de portadores de DM (tab. 3).

O US Health Maintenance Organization Study demonstrou que o aumento de 1% do nível de hemoglobina glicosilada estava correlacionado a 15% de aumento do risco para o desenvolvimento de IC, demonstrando a importante relação disglicemia e IC. Outra correlação importante é o risco duas vezes maior de desenvolvimento de doença cardiovascular aterosclerótica e cinco vezes maior de desenvolvimento de DM em pacientes portadores de SM28. Também é demonstrado que a espessura da parede do VE assim como sua massa se encontram diretamente alteradas em relação à intolerância a glicose, sendo esse dado maior no sexo feminino29.

Um pequeno estudo observacional e prospectivo30 demonstrou que pacientes tratados com glitazonas têm aumento da sobrevida com menor risco de IC, ao contrário de outro estudo31 em que as glitazonas pioraram a sobrevida e aumentaram a prevalência de IC. Tais divergências, muito provavelmente, ocorreram por causa das diferentes populações analisadas, em que o primeiro grupo poderia ser de uma população portadora de cardiopatia mais bem controlada. O estudo Prospective Pioglitazone Clinical Trial In Macrovascular Events (PROACTIVE) demonstrou maior número de internações, associado a não aumento da mortalidade32.

A subutilização de medicações relacionadas ao tratamento da SM e da IC também foi verificada nos portadores de dislipidemia. Verificou-se o uso de hipolipemiante oral em apenas 18 (12,5%) pacientes dos 111 (77,1%) portadores de SM presentes no estudo. Para os portadores de IC crônica, os grandes estudos que envolvem o uso das estatinas têm sistematicamente excluído pacientes portadores de IC. Dessa forma, ainda permanece como alvo de discussão o emprego das estatinas em pacientes portadores de IC crônica33.

Estudos prospectivos, como o de Node e cols.34, demonstraram melhora da capacidade funcional em pacientes com IC que receberam estatinas comparativamente aos que receberam placebo, em que a redução dos níveis de TNF-a, IL-6 e peptídeo natriurético cerebral (BNP) foi significativamente maior no grupo sinvastatina. Outro estudo, caracterizado como prospectivo, duplo-cego e randomizado, utilizou a cerivastatina em pacientes portadores de cardiomiopatia dilatada de causa não-isquêmica, determinando melhora da qualidade de vida, da capacidade física e da função endotelial35. Recentemente, o estudo Treating to New Targets (TNT), que incluiu 10.001 portadores de doença arterial coronariana (DAC) e fração de ejeção > 30%, avaliou a incidência de hospitalização como evento primário por IC. O estudo concluiu que pacientes que fizeram uso de 80 mg de atorvastatina apresentaram redução de 26% na taxa de hospitalização por IC36. Segundo os resultados desse estudo, a incidência de novos casos de IC poderia ser reduzida com o uso das estatinas. A resposta para essas perguntas muito provavelmente surgirá quando dois grandes estudos controlados com placebo, atualmente em andamento, estiverem concluídos: The Controlled Rosuvastatin Multinational Trial (CORONA), que envolveu portadores de IC com disfunção sistólica crônica, e o estudo do Gruppo Italiano per lo Studio della Sopravvivenza nell'Infarto Miocardico (GISSI), envolvendo pacientes isquêmicos e não-isquêmicos33.

Conclusão

A SM apresenta alta freqüência em nossa comunidade, estando associada, de forma significativa, à presença de IC com função sistólica preservada e ao sexo feminino.

Artigo recebido em 07/10/06; revisado recebido em 23/01/07; aceito em 01/03/07.

  • 1. Lakka HM, Laaksonnen DE, Lakka TA, Niskanen LK, Kumpusalo E, Tuomilento J, et al. The metabolic syndrome and total and cardiovascular disease mortality in middle-aged men. JAMA. 2002; 288 (21): 2709-16.
  • 2. Poirier P, Eckel RH. Obesity and cardiovascular disease. Curr Atheroscler Rep. 2002; 4: 448-53.
  • 3. Wilson PW, D'Agostino RB, Sullivan L, Parise H, Kannel WB. Overweight and obesity as determinants of cardiovascular risk: the Framingham experience. Arch Intern Med. 2002; 162: 1867-72.
  • 4. Ingelsson E, Ärnlöv J, Lind L, Sundström J. Metabolic syndrome and risk for heart failure in middle-aged men. Heart. 2006; 92: 1409-13.
  • 5. King H, Aubert RE, Herman WH. Global burden of diabetes, 1995-2025: prevalence, numerical estimates, and projections. Diabetes Care. 1998; 21: 1414-31.
  • 6. Ford ES, Giles WH, Dietz WH. Prevalence of the metabolic syndrome among US adults: findings from the Third National Health and Nutrition Examination Survey. JAMA. 2002; 287: 356-9.
  • 7. Alberti KG, Zimmet PZ. Definition, diagnosis, and classification of diabetes mellitus and its complications. Part 1: diagnosis and classification of diabetes mellitus provisional report of a WHO consultation. Diabet Med. 1998; 15: 539-53.
  • 8. National Cholesterol Education Program: Executive Summary of the Third Report of the National Cholesterol Education Program (NCEP) Expert Panel on Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Cholesterol in Adults (Adult Treatment Panel III). JAMA. 2001; 285: 2486-97.
  • 9. I Diretriz Brasileira de Diagnóstico e Tratamento da Síndrome Metabólica. Arq Bras Cardiol. 2005; 84 (supl 1): 3-28.
  • 10. Ho KK, Pinsky JL, Kannel WB, Levy D. The epidemiology of heart failure: the Framingham study. J Am Coll Cardiol. 1993; 22: 6A-13A.
  • 11. Ceia F, Fonseca C, Mota T, Morais H, Matias F, de Sousa A, et al., on behalf of the EPICA Investigators. Prevalence of chronic heart failure in Southwestern Europe: the EPICA study. Eur J Heart Fail. 2002; 4: 531-9.
  • 12. Leiro MGC, Martín MJP. Insuficiencia cardiaca. ¿Son diferentes las mujeres? Rev Esp Cardiol. 2006; 59: 725-35.
  • 13. Ghali JK, Krause-Steinrauf HJ, Adams KF, Khan SS, Rosenberg YD, Yancy CW, et al. Gender differences in advanced heart failure: insights from the BEST study. J Am Coll Cardiol. 2003; 42 (12): 2128-34.
  • 14. Butler J, Rodondi N, Zhu Y, Figaro K, Fazio S, Vaughan DE, et al., Health ABC Study. Metabolic syndrome and the risk of cardiovascular disease in older adults. J Am Coll Cardiol. 2006; 47 (8): 1595-602.
  • 15. Holmang A, Yoshida N, Jennische E, Waldenstrom A, Bjorntorp P. The effects of hyperinsulinaemia on myocardial mass, blood pressure regulation and central haemodynamics in rats. Eur J Clin Invest. 1996; 26: 973-8.
  • 16. Anderson EA, Hoffman RP, Balon TW, Sinkey CA, Mark AL. Hyperinsulinaemia produces both sympathetic neural activation and vasodilation in normal humans. J Clin Invest. 1991; 87 (6): 2246-52.
  • 17. Wong CY, O'Moore-Sullivan T, Fang ZY, Haluska B, Leano R, Marwick TH. Myocardial and vascular dysfunction and exercise capacity in the metabolic syndrome. Am J Cardiol. 2005; 96 (12): 1686-91.
  • 18. Berg AH, Scherer PE. Adipose tissue, inflammation, and cardiovascular disease. Circ Res. 2005;96:939-49.
  • 19. Kistorp C, Faber J, Galatius S, Gustafsson F, Frystyk J, Flyvbjerg A, et al. Plasma adiponectin, body mass index, and mortality in patients with chronic heart failure. Circulation. 2005; 112: 1756-62.
  • 20. Ingelsson E, Risérus NEF, Berne C, Frystyk JM, Flyberg A, Alexander T, et al. Adiponectin and risk of congestive heart failure. JAMA. 2006; 295 (15): 1772-4.
  • 21. Gustafsson F, Torp-Pedersen C, Burchardt H, Buch P, Seibaek M, Kjoller E, et al. Female sex is associated with a better long-term survival in patients hospitalized with congestive heart failure. Eur Heart J. 2004; 25: 129-35.
  • 22. Rodríguez-Artalejo F, Banegas Banegas J, Guallar-Castillón P. Epidemiología de la insuficiencia cardiaca. Rev Esp Cardiol. 2004; 57: 163-70.
  • 23. Kenchaiah S, Evans J, Levy D, Wilson P, Benjamin E, Larson M, et al. Obesity and the risk of heart failure. N Engl J Med. 2002; 347: 305-13.
  • 24. Fischer M, Baessler A, Schunkert H. Renin angiotensin system and gender differences in the cardiovascular system. Cardiovasc Res. 2002; 53: 672-7.
  • 25. Levy D, Kenchaiah S, Larson M, Benjamin E, Kupka M, Ho K, et al. Long-term trends in the incidence of and survival with heart failure. N Engl J Med. 2002; 347: 1397-402.
  • 26. Barker W, Mullooly J, Getchell W. Changing incidence and survival for heart failure in a well-defined older population, 1970-1974 and 1990-1994. Circulation. 2006; 113: 799-805.
  • 27. Levy D, Larson M, Vasan R, Kannel W, Ho K. The progression from hypertension to congestive heart failure. JAMA. 1996; 275: 1557-62.
  • 28. Grundy SM. Drug therapy of the metabolic syndrome: minimizing the emerging crisis in polypharmacy. Nat Rev Drug Discov. 2006; 5 (4): 295-309.
  • 29. Rutter M, Parise H, Benjamin E, Levy D, Larson M, Meigs J, et al. Impact of glucose intolerance and insulin resistance on cardiac structure and function: sex-related differences in the Framingham Heart Study. Circulation. 2003; 107: 448-54.
  • 30. Masoudi FA, Inzucchi SE, Wang Y, Havranek EP, Foody JAM, Krumholz HM. Thiazolidinediones, metformin, and outcomes in older patients with diabetes and heart failure: an observational study. Circulation. 2005; 111 (5): 583-90.
  • 31. Delea TE, Edelsberg JS, Hagiwara M, Oster G, Phillips LS. Use of thiazolidinediones and risk of heart failure in people with type 2 diabetes: a retrospective cohort study. Diabetes Care. 2003; 26 (11): 2983-9.
  • 32. Cleland JGF, Freemantle N, Coletta AP, Clark AL. Clinical trials update from the American Heart Association: REPAIR-AMI, ASTAMI, JELIS, MEGA, REVIVE-II, SURVIVE, and PROACTIVE. Eur J Heart Fail. 2006; 8 (1): 105-10.
  • 33. Van der Harst P, Voors AA, Van Gilst WH, Böhm M, Van Veldhuisen DJ. Statins in the treatment of chronic heart failure: biological and clinical considerations. Cardiovasc Res. 2006; 71 (3): 443-54.
  • 34. Node K, Fujita M, Kitakaze M, Hori M, Liao JK. Short-term statin therapy improves cardiac function and symptoms in patients with idiopathic dilated cardiomyopathy. Circulation. 2003; 108: 839-43.
  • 35. Laufs U, Wassmann S, Schackmann S, Heeschen C, Bohm M, Nickenig G. Beneficial effects of statins in patients with non-ischemic heart failure. Z Kardiol. 2004; 93: 103-8.
  • 36. LaRosa JC, Grundy SM, Waters DD, Shear C, Barter P, Fruchart JC, et al. Intensive lipid lowering with atorvastatin in patients with stable coronary disease. N Engl J Med. 2005; 352: 1425-35.
  • Correspondência:

    Flávio Augusto Colucci Coelho
    Rua Marquês de Paraná, 303 - 6º andar
    28800-000 - Niterói, RJ - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Ago 2007
    • Data do Fascículo
      Jul 2007

    Histórico

    • Recebido
      07 Out 2006
    • Aceito
      01 Mar 2007
    Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista@cardiol.br