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Ponto de vista

PONTO DE VISTA

Adib D. Jatene

Hospital do Coração – ASS – São Paulo, SP

Correspondência Correspondência: Adib D. Jatene Hospital do Coração Rua Desembargador Eliseu Guilherme, 147 04004-030 – São Paulo, SP E-mail: diretoria.clinica@hcor.com.br

Formado em 1953 pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, tive a sorte, a partir de 1958, de trabalhar com o Dr. Dante Pazzanese, criador do Instituto de Cardiologia do Estado, que hoje leva seu nome. O Dr. Dante, um visionário, teve a lucidez de identificar que uma entidade pública de saúde tem muita dificuldade de viver apenas com o que lhe destina o orçamento público. Elaborado no ano anterior, cronicamente insuficiente e submetido a contingenciamento, o Instituto não consegue garantir recursos capazes de torná-lo uma instituição de liderança, trabalhando na fronteira do conhecimento. Por isso, propôs e obteve, do então governador Jânio Quadros, aprovação para criar o Fundo de Pesquisas, composto por captação de recursos obtidos de doações de várias origens e cobrança pelos serviços prestados. O valor dos serviços era publicado no Diário Oficial, tendo sido estabelecidas seis categorias de clientes classificados pelo serviço social: a categoria A, que representava cerca de 60% dos pacientes, não pagava nada; a categoria C pagava o valor integral; e a categoria B foi dividida em quatro subcategorias, pagando, respectivamente, 10%, 20%, 40% e 60% do valor estabelecido pelos serviços prestados. O Fundo foi proposto como conta bancária, administrado diretamente pelos diretores do Instituto, e não constava do orçamento elaborado pela Secretaria da Fazenda. Eram recursos extra-orçamentários mobilizáveis, com agilidade necessária ao acompanhamento dos avanços científicos e tecnológicos.

O sucesso dessa iniciativa incentivou outros institutos oficiais do Estado a cada qual criar seu próprio Fundo de Pesquisas. Esses recursos eram aplicados basicamente em pessoal (na complementação de salários), financiamento de pesquisas, viagens para participação em congressos internacionais, estágios no exterior, enfim, atividades que o orçamento habitualmente não contemplava, embora vitais para o desenvolvimento institucional e, em conseqüência, científico de qualquer país. E mais, sem as restrições burocráticas, o que dava agilidade às ações. Em 1966, o Fundo de Pesquisas atendeu solicitação de estágio de dois meses em Cleveland para o Dr. J. Eduardo M. R. Sousa se familiarizar com a técnica da cinecoronariografia, liberado em uma semana. Seu retorno, com todo o material adquirido em tempo recorde, colocou o Instituto na posição de liderança, sendo o Brasil o segundo país a iniciar a cirurgia de revascularização do miocárdio.

Durante quase 20 anos, esse instrumento (Fundo de Pesquisas) foi um dos responsáveis pelo avanço científico dos Institutos de Pesquisa do Estado de São Paulo, como o Agronômico de Campinas, o Butantã e o Biológico, entre tantos outros. Lamentavelmente, no final da década de 1970, a Secretaria da Fazenda do Estado, no bojo de uma reforma administrativa, decidiu extinguir os Fundos de Pesquisas, substituindo-os em cada instituição pelo Fundo Especial de Despesa, com duas grandes inovações: 1) passava a constar do orçamento do Estado; e 2) proibia a aplicação em pessoal.

Essa modificação representou um retrocesso importante. Durante anos os institutos lutaram pela recriação dos Fundos de Pesquisas em várias audiências públicas na Assembléia Legislativa, das quais tive oportunidade de participar, mas sem sucesso.

Em 1978, quando se iniciava o Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor/HCFMUSP), o Prof. Euryclides de Jesus Zerbini, outro visionário, propôs a criação de uma Fundação de Apoio, que hoje leva seu nome, praticamente recriando o antigo Fundo de Pesquisas. Todo o resultado do atendimento feito pela Instituição passou a ser captado pela Fundação de Apoio, que o reaplicava, fundamentalmente, em pessoal e em pesquisa clínica e pesquisa básica, ajudando, também, na manutenção e no equipamento do InCor. O atendimento, predominantemente (80%) para o Sistema Único de Saúde (SUS), foi também ofertado para as clientelas privada e conveniada. Na década de 1990, quando eu ainda estava ativo na Instituição, um terço dos gastos era oferecido pelo orçamento público e dois terços, pela captação feita pela Fundação de Apoio. Destes, 40% provinham do atendimento da clientela do SUS, que representava 75% a 80%, e os outros 60% eram captados dos 20% a 25% de atendimento da clientela privada. Foi possível fixar pessoal em dedicação exclusiva, eliminando a rotatividade pela correção da remuneração do pessoal técnico pelos valores praticados nesse mercado.

O desempenho do InCor, que, em 30 anos de funcionamento, é considerado um dos mais importantes institutos de cardiologia do mundo, com participação destacada em eventos internacionais, é seguramente decorrente do arranjo institucional, que o transformou em hospital competitivo. Defino essa condição como hospital que é procurado não apenas pelos que não têm alternativa, mas, também, por aqueles que podem escolher e o escolhem não por ser gratuito, mas por ser bom. Os laboratórios de pesquisa do InCor competem em condições de igualdade com os melhores do mundo, como o laboratório de Aterosclerose (pesquisas básicas sobre afecções cardíacas) e os laboratórios de Imunologia e Engenharia Genética, entre outros, considerados os mais avançados do País. Tanto o tratamento clínico, incorporando a mais moderna tecnologia, como as técnicas intervencionistas e cirúrgicas possuem reconhecimento internacional.

Esse arranjo institucional vem sendo copiado por muitas instituições de pesquisa e hospitais universitários, que estão recuperando seu desempenho. É o que acontece, por exemplo, no Instituto Butantã, que, com sua Fundação de Apoio, vem contribuindo para a política de auto-suficiência na produção de imunobiológicos.

Essa estratégia, aliando um órgão público e uma Fundação de Apoio, é fundamental não só para o InCor, considerado hoje um verdadeiro patrimônio nacional, mas para o País. Sem dúvida, é uma engenharia que transfere aos dirigentes da instituição a responsabilidade da conquista de aperfeiçoamento contínuo, em que a retórica reivindicatória cede lugar a propostas de solução para os problemas institucionais, com profundo envolvimento de todas as categorias de funcionários.

Como prova de que o modelo atende a todos os pleitos, ressalte-se que, em seus 30 anos de vida, nunca houve greve no InCor, atestado eloqüente de que, ao lado do grande avanço científico e tecnológico, houve aprimoramento administrativo e de gestão, que merece a reflexão de todos os interessados em recuperar os serviços de saúde do País.

O modelo InCor serviu de inspiração para o restante do complexo, com a criação da Fundação Faculdade de Medicina. A partir de sua implantação, interrompeu-se o ciclo de greves no Hospital das Clínicas, demonstrando que os pleitos que não eram atendidos (por isso as greves) eram legítimos e que, uma vez atendidos pela Fundação, deixaram de ser o gatilho para os movimentos reivindicatórios.

Manter e consolidar esse arranjo é, pois, essencial para uma instituição como o InCor, alçado à posição de patrimônio nacional.

Artigo recebido em 19/01/07; aceito em 23/01/07.

  • Correspondência:
    Adib D. Jatene
    Hospital do Coração
    Rua Desembargador Eliseu Guilherme, 147
    04004-030 – São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Mar 2007
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