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Aneurisma micótico abdominal e embolia cerebral associados à endocardite infecciosa em paciente com doença valvar reumática crônica

Resumos

Relatamos o caso de uma menina com doença valvar crônica devido à febre reumática que apresentou endocardite infecciosa e duas complicações: acidente vascular cerebral devido à embolia e aneurisma micótico da artéria mesentérica superior.

Endocardite; cardiopatia reumática; aneurisma infectado; embolia intracraniana


We report the case of a girl with chronic rheumatic valvar heart disease who developed infeccious endocarditis and two complications, ischemic stroke due to cerebral embolic event and mycotic aneurysm of the superior mesenteric artery.

Endocarditis; rheumatic heart disease; aneurysm, infected; intracranial embolism


RELATO DE CASO

Aneurisma micótico abdominal e embolia cerebral associados à endocardite infecciosa em paciente com doença valvar reumática crônica

Bernadete Lourdes Liphaus; Cláudia Goldenstein-Schainberg; Letícia Monteiro Kitamura; Clóvis Artur Almeida Silva

Universidade de São Paulo – USP - São Paulo, SP

Correspondência Correspondência: Bernadete Lourdes Liphaus Rua Alves Guimarães, 642/60 05410-001 – São Paulo, SP E-mail: bernadll@icr.hcnet.usp.br

RESUMO

Relatamos o caso de uma menina com doença valvar crônica devido à febre reumática que apresentou endocardite infecciosa e duas complicações: acidente vascular cerebral devido à embolia e aneurisma micótico da artéria mesentérica superior.

Palavras-chave: Endocardite, cardiopatia reumática, aneurisma infectado, embolia intracraniana.

A endocardite infecciosa (EI) é rara em crianças, mas sua incidência tem aumentado devido às condições predisponentes como: doenças cardíacas congênitas, correções cirúrgicas cardíacas, doença valvar reumática e uso de cateteres1. As complicações da EI têm sido associadas à alta morbidade e mortalidade e apresentam amplo espectro de manifestações clínicas, incluindo: insuficiência cardíaca aguda congestiva, embolias, infecção do anel valvar, arritmia, disfunção de prótese valvar e aneurisma micótico1,2.

A prevalência da febre reumática tem diminuído nos países desenvolvidos3. Por outro lado, dois trabalhos recentes revisam estudos brasileiros sobre febre reumática e apresentam sua experiência, confirmando a alta prevalência dessa doença4,5. De acordo com o Ministério da Saúde brasileiro, a prevalência da febre reumática é de 3% a 5% em crianças e adolescentes6. Alta freqüência de cardite e lesão valvar também tem sido observada5. Conseqüentemente, a febre reumática e suas complicações como doença valvar cardíaca e EI são um desafio.

Relato do Caso

Em 11 de fevereiro de 2003, uma menina de 10 anos com doença cardíaca reumática crônica foi admitida com história de, há um dia, apresentar alteração de marcha e afasia associados à febre com duração de uma semana. A paciente foi encaminhada ao nosso centro com sete anos de idade com história de sopro cardíaco sistólico na região mitral, com irradiação axilar, auscultada pelo pediatra. Não apresentava sinais de artrite, lesões de pele ou coréia. O ecocardiograma mostrou leve regurgitação mitral, com diminuição da mobilidade do folheto posterior. O diagnóstico de doença cardíaca reumática foi estabelecido com base nos critérios modificados de Jones7. Embora a profilaxia com penicilina benzatina tenha sido prescrita, seu uso era irregular. Na admissão ao hospital, o exame físico revelou hemiparesia do lado direito e afasia de expressão; a temperatura axilar era de 38,0ºC e a ausculta cardíaca não revelou mudanças no sopro cardíaco sistólico previamente observado. Os resultados laboratoriais foram os seguintes: leucócitos 1,2x103/µl; hemoglobina 10,8 mg/dl; hematócrito 29,6%; contagem de plaquetas 347x103/µl; velocidade de hemossedimentação 60 mm/h; proteína C reativa 39,9 mg/l; antiestreptolisina O (ASLO) 184 IU/ml; dímero D 800 ng/ml, TP 81,7%; TTPA 41,0 segundos (controle 27,2 segundos); relação do TTPA 1,5; anticorpos anticardiolipina e anticoagulante lúpico negativos. O diagnóstico de infarto cerebral foi sugerido e confirmado pela tomografia computadorizada (TC) do sistema nervoso central (SNC) que mostrou uma área hipodensa na região irrigada pela artéria cerebral média esquerda. A angioressonância também mostrou lesões sugestivas de infartos subagudos na mesma área com redução do fluxo. O ecocardiograma transtorácico evidenciou insuficiência moderada da valva mitral e massa ecogênica de 13 mm no átrio esquerdo, compatível com trombo estéril ou vegetação infectada. A hemocultura confirmou a presença de Estreptococos do grupo viridans sensível à penicilina e o diagnóstico de EI foi estabelecido1,2,8. Iniciada Penicilina G cristalina endovenosa, notou-se melhora da hemiparesia do lado direito e da afasia. Novas hemoculturas foram negativas.

Após dez dias de tratamento, a paciente desenvolveu dor abdominal persistente associada à vômitos. Apresentava abdome flácido e não distendido, mas com dor epigástrica. A endoscopia gastroduodenal revelou compressão extrínseca da parede posterior do corpo gástrico. O diagnóstico de pseudocisto pancreático foi sugerido, mas os exames laboratoriais, incluindo aspartato-aminotransferase, alanino-aminotransferase e amilase foram normais. A TC de abdome mostrou imagem hipodensa na artéria mesentérica superior sugestiva de aneurisma e a ultra-sonografia abdominal com doppler colorido confirmou a presença de fluxo turbulento dentro da artéria (Fig. 1). O diagnóstico de aneurisma micótico secundário a EI foi sugerido e foi realizada intervenção cirúrgica de urgência. A análise anâtomo-patológica demonstrou inflamação vascular aguda com presença de bactérias Gram positivas e lesão da parede arterial, confirmando o diagnóstico de pseudoaneurisma. Penicilina G cristalina endovenosa associada à Ampicilina e Ceftriaxone foram mantidos até completar seis semanas de tratamento. Os sintomas melhoraram e a paciente recebeu alta quinze dias após a cirurgia, sem seqüelas isquêmicas ou neurológicas e o ecocardiograma de controle mostrava insuficiência moderada da valva mitral, sem massa no interior do átrio esquerdo.


Discussão

Déficit neurológico focal é raro em crianças e normalmente é resultado de infarto cerebral, que ocorre com mais freqüência devido à embolização de vegetação endocárdica9. Várias séries apresentam taxas de incidência de 20% a 40% e taxas de mortalidade que chegam a 58%, para complicações neurológicas em pacientes com EI, e essas complicações são mais comuns quando ambas as valvas, aórtica e mitral, estão envolvidas2,9. O diagnóstico precoce e o início imediato da terapia antimicrobiana são fundamentais para a prevenção de complicações neurológicas associadas à EI1,2,9. No entanto, Heiro e cols.9, estudando 218 casos de EI, demonstraram que na maioria deles (76%) manifestação neurológica estava presente antes do início do tratamento antimicrobiano, sendo o primeiro sinal de EI em 47% dos casos; e que 9 de 13 infartos cerebrais embólicos estavam localizados na região irrigada pela artéria cerebral média esquerda, como observado no caso descrito acima.

Nossa paciente apresentava doença cardíaca reumática crônica, que é um fator predisponente bem conhecido para EI. Pacientes com prolapso e/ou regurgitação da valva mitral, como ocorre em indivíduos com doença cardíaca congênita, com cirurgia cardíaca corretiva e com doença valvar cardíaca reumática são classificados pela Associação Americana de Cardilogia com risco moderado de desenvolver endocardite1,2. A EI é menos freqüente em crianças e é responsável por aproximadamente uma em cada 280 admissões pediátricas por ano em países desenvolvidos, onde a prevalência de febre reumática é baixa1,3.

De acordo com o Ministério da Saúde6 brasileiro e relatos recentes4,5, a febre reumática e a doença cardíaca reumática ainda constituem um problema de saúde pública. A febre reumática é a causa adquirida mais comum de doença cardíaca valvar e, conseqüentemente, de suas complicações, como a EI1,2,4,5,6. Outros fatores que adicionalmente podem predispor as crianças as complicações da EI são: o tipo de microorganismo, a localização e tamanho da vegetação e a severidade da doença cardíaca1. Em adultos, as lesões mitrais têm sido associadas a taxas de embolização mais altas do que as vegetações na valva aórtica (25% contra 10%, respectivamente); as taxas mais altas de embolização (37%) ocorrem quando as vegetações estão localizadas no folheto anterior da valva mitral e não no posterior; e os pacientes com grandes vegetações ao ecocardiograma (> 10 mm) apresentam incidência significativamente maior de embolias do que aqueles com vegetações menores (< 10 mm)1,2. Os organismos comumente relacionados à EI em crianças são o Estreptococos do grupo viridans, cocos gram positivos, Estafilococos e o enterococos1. Em contraste com o que foi observado neste caso, o Estafilococos aureaus é o microorganismo mais frequentemente associado às complicações neurológicas na EI, enquanto o aneurisma micótico normalmente ocorre secundariamente à infecção causada pelo Estreptococos não hemolítico2,9,10.

A recomendação para o tratamento da endocardite na faixa etária pediátrica é antibióticoterapia prolongada e, normalmente, o tratamento por quatro semanas com Penicilina G cristalina endovenosa ou Ampicilina proporciona alta taxa de cura1. A maiora dos estudos relata baixa freqüência de complicações relacionadas à EI após a introdução da antibióticoterapia adequada1,2,9. No entanto, embora nossa paciente estivesse sendo submetida ao tratamento adequado, ela desenvolveu dor abdominal e surpreendentemente a TC abdominal revelou aneurisma na artéria mesentérica superior.

A artéria mesentérica superior é o terceiro local (5,5%) de maior incidência de aneurismas viscerais. O aneurisma da artéria mesentérica superior (AAMS) é o mais relacionado à etiologia infecciosa10. Embora incomuns, os AAMSs devem ser prontamente tratados devido a sua alta taxa de mortalidade e complicações, como sua expansão e eventual ruptura, trombose e embolização distal, resultando em isquemia intestinal. Diferentemente de todos os outros aneurismas viscerais, de 70% a 90% dos AAMSs são sintomáticos e a maioria dos pacientes referem dor abdominal progressiva e significativa, como observado no caso descrito. Os sinais e sintomas dos AAMSs podem ser confundidos com condições muito mais corriqueiras, como pancreatite, perfuração intestinal, doença ulcerosa e apendicite10. A ultra-sonografia com doppler é uma ferramenta valiosa, rápida e confiável para o diagnóstico apropriado, mas como ocorreu com nossa paciente, TC abdominal e/ou angiografia podem ser necessárias para confirmar adequadamente o diagnóstico10. Os aneurismas micóticos são complicações incomuns em crianças com EI e podem desenvolver-se em qualquer artéria sistêmica, mas a aorta e a AAMSs são os locais mais comuns2,10.

Na verdade, as opiniões diferem quanto ao fato de a cirurgia precoce poder prevenir o desenvolvimento de novas embolias em pacientes com vegetações cardíacas, mas a maioria dos especialistas concordam que um episódio de embolização não é um indicador de substituição de valva, considerando que é pouco freqüente embolia recorrente durante uma infecção controlada1,2,9. No entanto, no caso aqui relatado, apesar da melhora dos sintomas neurológicos e hemoculturas estéreis, ocorreu uma segunda complicação da EI, um aneurisma micótico.

Finalmente, o objetivo deste relato foi alertar os pediatras e clínicos sobre a necessidade de um alto grau de suspeita para diagnosticar a EI em pacientes com doença valvar cardíaca reumática. O início precoce da terapia antimicrobiana adequada é imprescindível para evitar complicações associadas a altos índices de morbidade e mortalidade. Além disso, inúmeras e variadas manifestações cerebrais e abdominais podem constituir os primeiros sinais e sintomas da EI, e todo médico deve estar atento para a possibilidade de uma segunda complicação mesmo que a terapia antimicrobiana adequada tenha sido prontamente iniciada.

Artigo recebido em 09/02/06; revisado recebido em 17/05/06; aceito em 01/06/06.

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  • Correspondência:

    Bernadete Lourdes Liphaus
    Rua Alves Guimarães, 642/60
    05410-001 – São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Mar 2007
    • Data do Fascículo
      Jan 2007

    Histórico

    • Revisado
      17 Maio 2006
    • Recebido
      09 Fev 2006
    • Aceito
      01 Jun 2006
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