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Operação de Fontan: reflexões da evolução e perspectivas atuais

PONTO DE VISTA

Operação de Fontan: reflexões da evolução e perspectivas atuais

Edmar Atik

Instituto do Coração do Hospital das Clínicas – FMUSP, São Paulo, SP

Correspondência Correspondência: Edmar Atik InCor Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 05403-000 – São Paulo, SP E-mail: conatik@incor.usp.br

Palavras-chave: Fontan, cardiopatias congênitas, cirurgia.

Tendo a operação de Fontan1 se tornado a mais realizada na Cardiologia Pediátrica, visando à correção funcional de muitas cardiopatias congênitas com fisiologia univentricular, passou ela a merecer considerações acerca de táticas mais adequadas a fim de minimizar as complicações que a longo prazo continuam desafiando o seu manejo.

Embora tenham estas diminuído, principalmente desde 1988, com a introdução da técnica cavopulmonar total2, ainda se percebe o aparecimento de elementos de morbidade, cujos índices preocupam e afetam a evolução do referido método.

Pela dinâmica imposta à nova situação anatômica, através da conexão cavopulmonar, a qual elimina a função pulsátil do ventrículo direito e institui o fluxo venoso e lento pelas veias cavas à árvore arterial pulmonar, há o favorecimento, daí, das complicações que surgem em decorrência de aspectos congestivos, elétricos e tromboembólicos.

Os congestivos se caracterizam pela pressão venosa aumentada, hepatomegalia, enteropatia perdedora de proteínas por linfangiectasias, edema de membros inferiores e ascite.

Os elétricos se referem tanto à diminuição do automatismo sinusal quanto a arritmias supraventriculares como extra-sístoles, fibrilação e taquicardias paroxísticas.

Os tromboembólicos, que se iniciam no sistema venoso e nas junções venoarteriais e conexões por tubos, guardam relação também ao aparecimento de várias alterações da coagulação, motivadas por fatores oriundos do fígado congesto.

Fatores patogênicos destes elementos adversos guardam relação com aspectos anátomo-funcionais pré-operatórios e daí a exigência da análise mais acurada dos mesmos, por ocasião da técnica operatória.

Nesse contexto, tornam-se oportunas a lembrança e a menção dos fatores considerados como ideais para a indicação operatória, os quais constituem-se principalmente na preservação da função ventricular, próxima da normalidade, na árvore arterial pulmonar adequada e com pressões médias abaixo de 15 mmHg e resistência pulmonar inferior a 2U Wood e ainda na presença de ritmo sinusal, responsivo aos estímulos3. Acresce-se a ausência de regurgitação das valvas atrioventriculares e aórtica, de fístulas e de vasos anastomóticos sistêmico-pulmonares, além da hipertrofia miocárdica.

Esses fatores deletérios são os reais responsáveis pela mortalidade que ocorre com o passar do tempo e que varia conforme a experiência de cada centro médico, oscilando entre 15 a 30% após 15 anos da operação3. A morte advém daí, principalmente relacionada à insuficiência cardíaca, às arritmias, ao tromboembolismo e à síndrome perdedora de proteínas.

Dentre as complicações, as que mais chamam a atenção pela prevalência e repercussão são a insuficiência cardíaca e as arritmias, principalmente em técnicas atriopulmonares4-6, mas também em cavopulmonares7, quando realizadas na idade adulta. Essas complicações são menos encontradas nas correções cavopulmonares com tubos extracardíacos8 do que em túnel lateral intra-atrial7,9. As outras complicações como tromboembolismo e enteropatia perdedora de proteínas também guardam relação direta com a técnica atriopulmonar4-6,10 e quando os pacientes são operados na idade adulta6. Estas últimas complicações foram menos encontradas na técnica cavopulmonar8,9,11,12 principalmente com o emprego do tubo extracardíaco8 (tab. 1).

Apesar desses achados, no entanto, nota-se por outras avaliações que a evolução dos pacientes operados na fase adulta seja semelhante à dos operados no período infantil, quanto ao tempo de aparecimento das complicações e à curva actuarial de sobrevida pós-operatória10.

Assim, segundo Burkhart e cols.10 , de 132 adultos operados entre 18 e 53 anos com mortalidade imediata de 11 (8,3%) pacientes e sobrevida de 68% após 15 anos, as complicações a longo prazo, com média de evolução pós-operatória de 9,1 anos, foram representadas por enteropatia perdedora de proteínas em 8 (7,4%), derrame pleural em 7 (6,5%), acidente vascular cerebral em 4 (3,7%), bloqueio atrioventricular total em 16 (15%) e insuficiência cardíaca em 6 (5,2%) além da trombose de veia cava inferior em 1 paciente. A título de comparação, na infância, segundo Lee e cols.13, dentre 405 casos analisados após 10 anos de evolução pós-operatória, a ocorrência de tromboembolismo foi de 1,2%, de arritmias em 17% e de insuficiência cardíaca em 2,4% dos casos.

Dada a similaridade evolutiva desses grupos etários, cresce o questionamento quanto à época ideal da operação, se mais precoce ou se no seu tempo natural adequado.

Aliás, neste contexto, a fim de reforçar ainda mais a polêmica da época mais adequada da operação, Lee e cols.13 nos relatam que a sobrevida dos 405 pacientes operados entre 1988 e 2000, com idade média de 28 meses, foi consideravelmente menor (60%) que a de 94% relatada por Nakano e cols.14 em 167 pacientes operados entre 1991 e 1999, com idade média de 6,2 anos, tendo transcorrido respectivamente, nos dois trabalhos, 10 e 8 anos após a intervenção.

Daí ser questionável a padronização, caracterizando a necessidade da operação mais precoce, interrompendo assim, por vezes, a evolução natural de pacientes cuja saturação de oxigênio mantém-se elevada e adequada por longo tempo, até a necessária intervenção, pelo aparecimento da hipóxia.

Em nosso meio, no Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a padronização de indicação precoce não tem sido realizada na maioria das situações e em 41 pacientes submetidos à operação cavopulmonar com fenestração atrial, em idade média de 7,6±4,6 anos e em outros 21 pacientes, sem fenestração atrial, com média de idade de 7,3±3,4 anos, a evolução mostrou-se adequada (57 dos 62 pacientes em classe funcional I) em período médio evolutivo de 3,1±2,4 e de 5,1±3,3 anos, respectivamente, nos dois grupos15.

Vale ressaltar que Binotto e cols.16 encontraram fibrose intersticial, principalmente na camada subendocárdica, em estudos de necropsia, em sítios de entrada, na ponta e via de saída do ventrículo esquerdo na atresia tricúspide e em extensão da fibrose proporcional à idade do paciente. Esse achado representa sobrecarga de volume crônica em presença de isquemia e de ocorrência precoce na vida, já que a idade deste grupo estudado correspondeu a 9,6±13,9 meses, com média de 2,5 meses.

Apesar da demonstração da fibrose crescente com a idade de cardiopatias tipo atresia tricúspide, fica ainda a ser verificado se o mesmo ocorreria se o paciente evoluísse de maneira equilibrada, com fluxos pulmonar e sistêmico balanceados, até a verificação da necessidade real da realização da operação, em face da progressão natural da hipóxia.

A favor dessa proposição está a boa evolução demonstrada por pacientes operados mesmo na idade adulta10.

Muito ainda necessita ser comprovado a respeito, mas é preciso sempre ter em mente que a operação de Fontan constitui-se em intervenção paliativa e apresenta uma série de inconvenientes que colocam em risco a evolução desses pacientes como as complicações já citadas, assim como a demonstração da elevação da a-1-antitripsina, mesmo sem hipoproteinemia17, as alterações de coagulação subclínicas18 e a própria elevação da pressão venosa sistêmica.

A preservação de todos os fatores adequados para o sucesso da operação em indicações precoces ou mais tardias não implica um funcionamento normal cardíaco perene, dado à modificação anátomo-funcional imposta pela técnica cavopulmonar total, a qual predispõe por si só o aparecimento incondicional dos aspectos relacionados às complicações mencionadas.

Continuamos, no entanto, otimistas com esta técnica, visto que a mudança substancial provocada com a restituição da saturação normal de oxigênio arterial é nitidamente superior em relação à de outras técnicas paliativas que, ao contrário, provocam sobrecarga cardíaca como a clássica anastomose sistêmico-pulmonar (operação de Blalock-Taussig). Além disso, a operação cavopulmonar constitui-se, em tese, em técnica que elimina a sobrecarga do coração, devido ao posicionamento em série das veias cavas com a árvore arterial pulmonar.

Por tudo isso, hoje, parece evidente que a operação de Fontan pode trazer evolução mais favorável ainda, desde que os fatores adquiridos sejam minimizados através de correções mais precoces, a partir de dois anos de idade, e a técnica preferida seja a da utilização de tubo extracardíaco, a fim de se obter diminuição de arritmias, de fenômenos congestivos e de enteropatia perdedora de proteínas, devido à eliminação de linhas de sutura intra-atrial, de dano ao nó sinusal e diminuição dos fatores de pressão e de volume aumentados no átrio, favorecidos estes últimos elementos pelo túnel lateral intra-atrial.

Aproveito para mencionar, ainda como perspectivas, outras vantagens da operação cavopulmonar com tubo extracardíaco sobre o túnel lateral intra-atrial, que necessitam ser salientadas. Dentre as principais, cita-se a aplicabilidade da técnica a pacientes com heterotaxia e com alterações do retorno venoso sistêmico e pulmonar e ainda com uma valva atrioventricular, a raridade da ocorrência de arritmias supraventriculares, com possibilidade de se completar a conexão cavopulmonar, sem a necessidade de parada cardíaca cardioplégica, além de vantagens hemodinâmicas que não predispõem à congestão venosa sistêmica8.

A fenestração atrial não é mandatória, desde que os fatores de indicação da técnica estejam preservados e não se afastem correções mais tardias, principalmente na idade adulta, desde que nestes haja a preservação dos elementos de boa indicação. Amplia-se ainda o conceito de que a fenestração não seja procedimento primordial, desde que o abaixamento da pressão pulmonar possa ser conseguido através de outros métodos terapêuticos no pós-operatório imediato dada a disponibilidade do uso de óxido nítrico inalado e de outras drogas vasodilatadoras, além de medidas anticongestivas precoces que diminuem o edema em geral.

Ademais, parece consenso a necessária anticoagulação perene a fim de minimizar a ocorrência de tromboembolismo.

Em período imediato à operação, a fim de diminuir riscos e a intensidade do derrame pleural, assim como o tempo de internação hospitalar, Cava e cols.19 sugerem o uso endovenoso de furosemida na dose de 1 mg/kg de 8/8 h no 1º dia e, a partir de 2 ou 3 dias, o uso associado de hidroclorotiazida e espironolactona na dose de 1 mg/kg a cada 12 h, além de captopril 1mg/kg/dia e restrição hídrica rigorosa.

Pode-se resumir esta apresentação salientando-se os bons resultados da operação cavopulmonar total sem fenestração, atribuídos a efeitos benéficos do tubo extracardíaco e à boa seleção dos pacientes.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes.

Referências

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Recebido em 12/09/05

Aceito em 30/09/05

  • Correspondência:

    Edmar Atik
    InCor
    Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44
    05403-000 – São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Nov 2006
    • Data do Fascículo
      Out 2006
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