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Fluxo no ducto venoso e hipertrofia miocárdica em fetos de mães diabéticas

Resumos

OBJETIVO: Testar a hipótese de que o índice de pulsatilidade do ducto venoso (IPDV) é maior nos fetos de mães diabéticas (FMD) com hipertrofia miocárdica (HM) do que em FMD sem HM e em fetos controles de mães não diabéticas (FMND) comparando os resultados com os picos de velocidade dos fluxos diastólicos nas valvas mitral e tricúspide. MÉTODOS: Estudo transversal incluindo fetos com idade gestacional entre 20 semanas até o termo, divididos em 3 grupos: 56 FMD com HM (grupo I), 36 FMD sem HM (grupo II) e 53 FMND (grupo III, controle). O Doppler-ecocardiograma avaliou o IPDV através da razão (velocidade sistólica - velocidade pré-sistólica)/velocidade média. As ondas E e A dos fluxos mitral e tricúspide foram também avaliadas. RESULTADOS: A média do IPDV no grupo I foi de 1,13 ± 0,64, no grupo II, de 0,84 ± 0,38 e no grupo III de 0,61±0,17. Aplicando-se a ANOVA e o teste de Tukey, houve diferença estatisticamente significativa entre os 3 grupos (p= 0,015 entre os grupos I e II, p < 0,001 entre os grupos I e III e p = 0,017 entre os grupos II e III). A média da onda E mitral foi significativamente maior no grupo I (0,39 ± 0,12 m/s) do que nos grupos II (0,32 ± 0,08 m/s) (p=0,024) e III (0,32 ± 0,08 m/s) (p=0,023). A média da onda E tricúspide foi também maior no grupo I (0,43 ± 0,1 m/s) do que no grupo III (0,35 ± 0,10 m/s) (p= 0,031). CONCLUSÃO: O IPDV é significativamente maior em FMD com HM do que em FMD sem HM e do que em FMND. Como o IPDV pode representar modificações na complacência ventricular, este índice pode ser um parâmetro mais sensível para a avaliação da função diastólica fetal.

diabetes materno; hipertrofia miocárdica fetal; ducto venoso; função diastólica


OBJECTIVE: To test the hypothesis that the pulsatility index of ductus venosus (PIDV) is greater in the fetuses of diabetic mothers (FDM) with myocardial hypertrophy (MH) than in the FDM with no MH and in the control fetuses of nondiabetic mothers (FNDM). Comparing the results with mitral and tricuspid diastolic peak flows. METHODS: The cross-sectional study included fetuses with gestational ages ranging from 20 weeks to term, divided into the following 3 groups: 56 FDM with MH (group I), 36 FDM with no MH (group II), and 53 FNDM (group III, control). The Doppler echocardiogram assessed the PIDV through the ratio (systolic velocity - presystolic velocity)/mean velocity. The mitral and tricuspid E and A waves were also assessed. RESULTS: The mean PIDV in groups I, II, and III were 1.13 ± 0.64, 0.84 ± 0.38, and 0.61±0.17, respectively. Using ANOVA and the Tukey test, a statistically significant difference was found in the 3 groups (P = 0.015 between groups I and II; P < 0.001 between groups I and III; and P = 0.017 between groups II and III). The mean mitral E wave was significantly greater in group I (0.39 ± 0.12 m/s) than in groups II (0.32 ± 0.08 m/s) (P = 0.024) and III (0.32 ± 0.08 m/s) (P = 0.023). The mean tricuspid E wave was also greater in group I (0.43 ± 0.1 m/s) than in group III (0.35 ± 0.10 m/s) (P = 0.031). CONCLUSION: The PIDV is significantly greater in FDM with MH than in FDM with no MH and in FNDM. Because the PIDV may represent modifications in ventricular compliance, this index may be a more sensitive parameter for assessing fetal diastolic function.

maternal diabetes; fetal myocardial hypertrophy; ductus venosus; diastolic function


ARTIGO ORIGINAL

Fluxo no ducto venoso e hipertrofia miocárdica em fetos de mães diabéticas

Paulo Zielinsky; Silvana Marcantonio; Luiz Henrique Nicoloso; Stelamaris Luchese; Domingos Hatem; Marlui Scheid; João Luiz Mânica; Eduardo Ioschpe Gus; Fabíola Satler; Antônio L. Piccoli Jr.

Unidade de Cardiologia Fetal do Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul - Fundação Universitária de Cardiologia - Programa de Pós-Graduação em Pediatria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Porto Alegre, RS

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Dr. Paulo Zielinsky Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul - Unidade de Pesquisa Av. Princesa Isabel, 395 - Santana Cep 90620 001 Porto Alegre - RS E-mail: zielinsky@cardiol.br / pesquisa@cardnet.tche.br

RESUMO

OBJETIVO: Testar a hipótese de que o índice de pulsatilidade do ducto venoso (IPDV) é maior nos fetos de mães diabéticas (FMD) com hipertrofia miocárdica (HM) do que em FMD sem HM e em fetos controles de mães não diabéticas (FMND) comparando os resultados com os picos de velocidade dos fluxos diastólicos nas valvas mitral e tricúspide.

MÉTODOS: Estudo transversal incluindo fetos com idade gestacional entre 20 semanas até o termo, divididos em 3 grupos: 56 FMD com HM (grupo I), 36 FMD sem HM (grupo II) e 53 FMND (grupo III, controle). O Doppler-ecocardiograma avaliou o IPDV através da razão (velocidade sistólica – velocidade pré-sistólica)/velocidade média. As ondas E e A dos fluxos mitral e tricúspide foram também avaliadas.

RESULTADOS: A média do IPDV no grupo I foi de 1,13 ± 0,64, no grupo II, de 0,84 ± 0,38 e no grupo III de 0,61±0,17. Aplicando-se a ANOVA e o teste de Tukey, houve diferença estatisticamente significativa entre os 3 grupos (p= 0,015 entre os grupos I e II, p < 0,001 entre os grupos I e III e p = 0,017 entre os grupos II e III). A média da onda E mitral foi significativamente maior no grupo I (0,39 ± 0,12 m/s) do que nos grupos II (0,32 ± 0,08 m/s) (p=0,024) e III (0,32 ± 0,08 m/s) (p=0,023). A média da onda E tricúspide foi também maior no grupo I (0,43 ± 0,1 m/s) do que no grupo III (0,35 ± 0,10 m/s) (p= 0,031).

CONCLUSÃO: O IPDV é significativamente maior em FMD com HM do que em FMD sem HM e do que em FMND. Como o IPDV pode representar modificações na complacência ventricular, este índice pode ser um parâmetro mais sensível para a avaliação da função diastólica fetal.

Palavras chaves: diabetes materno; hipertrofia miocárdica fetal; ducto venoso; função diastólica

Nos últimos anos, tem-se observado uma melhora do manejo de gestantes diabéticas, com redução da morbidade e da mortalidade materno-fetais 1,2. Ainda assim, atualmente, até 25% dos recém nascidos de mães diabéticas apresentam complicações neonatais 2.

Sabe-se que as alterações decorrentes do diabetes materno são devidas à hiperinsulinemia fetal associada ao aumento do número de receptores de insulina no coração, levando à hiperplasia e à hipertrofia das células miocárdicas, pelo aumento da síntese de proteínas e gorduras 3-6.

A hipertrofia miocárdica fetal é a anormalidade mais frequentemente evidenciada no diabetes mellitus materno, podendo ser encontrada em até 35% desses bebês 7-10 (fig.1).


O septo interventricular parece ser particularmente rico em receptores para insulina 11, o que justificaria a hipertrofia mais acentuada nessa estrutura.

Alterações do enchimento ventricular esquerdo, dependentes ou não da hipertrofia miocárdica, têm sido descritas entre 20 e 36 semanas de gestação 12. Os estudos destinados à avaliação da função diastólica fetal têm utilizado a análise da relação E/A dos fluxos mitral e tricúspide 12,13.

O fluxo no ducto venoso tem papel fundamental na hemodinâmica fetal e sua análise tem sido objeto de estudo em diversas situações patológicas 14-19.

Como o fluxo de sangue altamente saturado dirigido ao forame oval depende diretamente da velocidade do fluxo no ducto venoso20, torna-se racional o estudo dessa velocidade nas diferentes fases do ciclo cardíaco em fetos de mães diabéticas com e sem hipertrofia miocárdica, comparando-se com fetos controles de mães sem diabetes.

O índice de pulsatilidade do fluxo no ducto venoso, por refletir a sua impedância, pode ser um parâmetro útil para avaliar o papel da hipertrofia miocárdica e do diabetes materno na função diastólica ventricular fetal (fig. 2). Assim, a hipótese conceitual deste trabalho é de que fetos com hipertrofia miocárdica apresentem uma maior impedância ao fluxo pelo ducto venoso (com um maior índice de pulsatilidade) do que fetos sem hipertrofia miocárdica e do que fetos normais.


Métodos

Trata-se de um estudo transversal, de caráter observacional, envolvendo 56 fetos de mães diabéticas e 53 fetos normais, de mães sem diabetes, com idades gestacionais entre 20 semanas até o termo, examinadas no período de outubro de 2001 a dezembro de 2002.

A amostra foi dividida em 3 grupos: grupo I – 20 fetos de mães diabéticas com hipertrofia septal (FMD com HM); grupo II – 36 fetos de mães diabéticas sem hipertrofia septal (FMD sem HM); grupo III – 53 fetos controles, de mães sem diabetes.

Na avaliação ultra-sonográfica prévia à avaliação cardiológica, foi analisada a anatomia fetal para afastar malformações e a biometria fetal para definir a idade gestacional 21.

Os exames ecocardiográficos fetais foram realizados de maneira seqüencial e segmentar 22. As estruturas cardíacas e vasculares foram estudadas em cortes de quatro câmaras, longitudinais, transversais e sagitais.

No ecocardiograma fetal com Doppler e mapeamento a cores foi dada especial atenção às características do fluxo no ducto venoso, assim como à presença de hipertrofia miocárdica e aos fluxos das valvas mitral e tricúspide.

A hipertrofia miocárdica foi caracterizada pela medida da espessura do septo interventricular no final da diástole superior a 2 desvios padrão em relação à idade gestacional, conforme técnica já descrita anteriormente, utilizando-se como referência o nomograma proposto por Allan 23. O cursor foi dirigido de forma perpendicular ao septo interventricular em posição distal aos folhetos das valvas atrioventriculares, com imagem bidimensional em corte de quatro câmaras.

O ducto venoso foi identificado efetuando-se um corte transversal do abdome fetal, na altura da inserção do cordão umbilical. Utilizou-se o índice de pulsatilidade para veias na análise do ducto venoso, sendo o seu resultado anormal quando valores superiores ao percentil 95 da curva de normalidade para a idade gestacional correspondente, baseado em normograma local24,25. Especial atenção foi prestada nos casos em que o ducto venoso apresentava-se muito alterado, com fluxo reverso durante a contração atrial, pois a colocação da amostra-volume na veia umbilical intra-abdominal poderia simular um ducto venoso anormal. O índice de pulsatilidade venosa (IPV), calculado eletronicamente pelo equipamento após traçado manual das velocidades da curva do ducto venoso, foi obtido pela razão (velocidade sistólica máxima menos a velocidade pré-sistólica), dividido pela velocidade média entre as velocidades sistólica, diastólica e pré-sistólica (fig.2).

Para fins de cotejamento com a avaliação do fluxo no ducto venoso foi, também, realizada a análise dos fluxos atrioventriculares utilizando o Doppler pulsátil. As curvas correspondentes ao fluxo através das valvas atrioventriculares foram obtidas a partir de um corte de quatro câmaras. A amostra de volume foi colocada em posição imediatamente distal aos folhetos valvares, no interior dos ventrículos. Para se obter as velocidades máximas, somente foram incluídos no estudo os fetos nos quais foi possível alinhar o feixe de ultra-som e a direção do fluxo sanguíneo de forma paralela ou formando um ângulo menor que 20°. As variáveis medidas foram o pico da onda A e o pico da onda E em m/s, correspondentes ao fluxo mitral e tricúspide. A relação E/A foi calculada para cada batimento.

Foi utilizado, para a realização dos exames um equipamento ecocardiográfico com capacidade para imagens bidimensionais, módulo M, Doppler pulsátil e contínuo e mapeamento em cores, equipado com transdutores phased array e convexos, de 2.0 a 7.0 MHZ.

Os estudos foram gravados para documentação e revisão. Todas as gestantes assinaram um termo de consentimento informado. A pesquisa foi avaliada e aprovada pelo Comitê Ética em Pesquisa Médica do Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul / Fundação Universitária de Cardiologia.

Os dados quantitativos foram descritos através de média e desvio padrão. A análise da variância (ANOVA) foi utilizada para a comparação dos índices de pulsatilidade e dos fluxos mitral e tricúspide nos 3 grupos. Foi empregado o teste de Tukey para a análise de comparações múltiplas. O septo interventricular foi analisado através do teste t de Student para a comparação entre os grupos I e II. A idade gestacional foi controlada através da análise de covariância. O nível discriminativo de significância estatística convencionado foi de 0,05. Os dados foram analisados com o auxílio do pacote estatístico SPSS versão 11.0.

Resultados

Dos 118 fetos estudados, foram excluídos nove (três por janela acústica inadequada, dois por hipertensão materna, um por onfalocele e dois por cardiopatia estrutural fetal), restando 109 gestantes entre 20 semanas de gestação até o termo, das quais 56 eram diabéticas e 53 não diabéticas. Das diabéticas, 8 (7,3%) tinham diagnóstico de diabetes mellitus prévio e 48 (44%) de diabetes mellitus gestacional.

As pacientes foram divididas em três grupos: grupo I, de fetos de mães diabéticas com hipertrofia septal (n = 20; 18,3 %); grupo II, de fetos de mães diabéticas sem hipertrofia septal (n=36; 33,%) e grupo III, de fetos normais de mães não diabéticas (n = 53; 48,6%). A idade materna, a paridade e a idade gestacional estão descritas na tabela I. Não houve diferença dos níveis glicêmicos entre os grupos I e II.

As médias e medianas das glicemias e das espessuras septais estão descritas na tabela II. Aplicando-se o teste t de Student, o septo interventricular foi significativamente maior no grupo I do que no grupo II (p<0,001).

O índice de pulsatilidade do ducto venoso no grupo de fetos de mães diabéticas com hipertrofia septal (grupo I) variou de 0,29 a 2,56, com média de 1,13 ± 0,64 e mediana de 1,01. No grupo II, o índice de pulsatilidade do ducto venoso foi de 0,25 a 1,82, com média de 0,83 ± 0,38 e mediana de 0,73. No grupo controle, o índice de pulsatilidade variou de 0,35 a 0,9, com média de 0,61 ± 0,17 e mediana de 0,6 (fig. 3 e 4).



Aplicando-se a ANOVA e o teste de Tukey, confirmou-se que a média e a mediana do índice de pulsatilidade do grupo I foram significativamente maiores que as do grupo II (p = 0,015) e do que as do grupo III (p < 0,001). Comparando-se o índice de pulsatilidade do ducto venoso do grupo II com o do grupo III, também foi demonstrada uma diferença estatisticamente significativa (p = 0,017). A diferença significativa entre os grupos manteve-se mesmo ao ser controlada a idade gestacional, através do teste de covariância.

A tabela III apresenta os valores das ondas E e A dos fluxos mitral e tricúspide.

O pico da onda E do fluxo mitral foi significativamente maior (p = 0,024) no grupo I do que no grupo II e no grupo III (p=0,023) (fig. 5).


O pico da onda E do fluxo tricúspide foi significativamente maior no grupo I do que no grupo III (p = 0,031) (fig. 6), não havendo diferença entre os grupos I e II (p= 0,68).


Discussão

Os filhos de mães diabéticas apresentam risco estabelecido de desenvolver hipertrofia miocárdica, mesmo com controle metabólico materno adequado 26,27. A manifestação da hipertrofia miocárdica no recém-nascido varia desde a ausência de sintomas até um quadro de insuficiência cardíaca grave, por disfunção diastólica 28. A gravidade da situação estaria relacionada ao controle do diabetes 29. As alterações microscópicas do miocárdio hipertrófico dos filhos de mães diabéticas incluem, além de hiperplasia e hipertrofia, uma desorganização do padrão normal das miofibrilas, semelhante àquele encontrado na miocardiopatia do adulto 30.

A diástole compreende o período de tempo entre o fechamento das valvas semilunares e o fechamento das valvas atrioventriculares. Divide-se em quatro fases: relaxamento isovolumétrico, fase de enchimento rápido (relacionada ao relaxamento ventricular), fase de enchimento lento e contração atrial (relacionada à complacência).

A ecocardiografia com Doppler é um método adequado para estudar de forma não invasiva a função diastólica, através das curvas que relacionam tempo e velocidade de enchimento ventricular 31,32. A medida das velocidades dos fluxos mitral e tricúspide permite avaliar o volume do fluxo de entrada ventricular durante a diástole, o qual, por sua vez, é dependente do gradiente de pressão atrioventricular. Embora essa medida não permita uma determinação direta da função diastólica, permite inferir informações sobre o relaxamento e a complacência ventricular 33.

Estudos que validaram a utilização da Doppler - ecocardiografia para a avaliação da função diastólica empregaram, fundamentalmente, o registro do Doppler da valva mitral 34. Durante a vida intra-uterina, as circulações sistêmica e pulmonar funcionam em paralelo. Até o momento atual, avaliar a função diastólica do coração do feto tem implicado em estudo dos fluxos mitral e tricúspide.

A partir da 10a semana, já é possível identificar a onda E e a onda A 34. O perfil de enchimento diastólico através das valvas atrioventriculares evidencia uma velocidade diastólica mais elevada na fase de contração atrial (onda A) do que no início da diástole (onda E) 35,36. A relação E/A mantém-se < 1 durante toda a vida fetal.

Segundo Tsyvian e cols.,12 além da hipertrofia miocárdica nos fetos de mães diabéticas, há alteração do enchimento ventricular esquerdo, entre 20 e 36 semanas de gestação. O enchimento ventricular esquerdo é dependente da diástole miocárdica e é modificado por diversos fatores, verificando-se influência da deterioração da força ativa da pós-carga e da complacência da parede ventricular. A razão entre o enchimento ventricular precoce (E) e o tardio (A), ao nível das válvulas mitral e tricúspide (razão E/A), medida pelo eocardiograma, é usada para estabelecer a contribuição da contração atrial para o fluxo transmitral total. Como já mencionado, estes índices têm sido as principais medidas indiretas da função diastólica. Rizzo e cols. demonstraram diminuição da função diastólica nos fetos de mães diabéticas expressa por essa razão. Uma complacência ventricular reduzida em fetos de mães diabéticas poderia ser secundária a um espessamento de parede ou a outros fatores13, como alterações metabólicas do ambiente uterino associado a mudanças qualitativas do colágeno (aumento do colágeno fluorescente no miocárdio) 12. A maior velocidade da onda E nas valvas mitral e tricúspide no grupo de fetos de mães diabéticas com hipertrofia miocárdica encontrada no presente trabalho poderia refletir um padrão de relaxamento alterado. Tsyvian e cols.12, em um estudo com fetos de mães diabéticas insulino-dependentes, demonstraram, através da razão E/A, diminuição na função diastólica destes fetos12. Macklon e cols.37, pesquisando a função cardíaca dos fetos de mães diabéticas entre 18 e 20 semanas, não encontraram diferenças em relação ao grupo controle, ao contrário de estudos prévios que descreveram a diminuição da razão E/A nas valvas atrioventriculares e altos valores de velocidade de pico nas vias de saída entre 20 e 36 semanas de gestação. Esses achados podem simplesmente refletir a fase precoce em que esses fetos foram examinados, indicando que as mudanças funcionais se tornam evidentes tardiamente nas gestações com a influência do diabetes, ou sugerir que a análise dos fluxos atrioventriculares possa não ser suficientemente sensível para avaliar a função diastólica.

Rizzo e cols.38, ao pesquisarem o fluxo cardíaco e venoso com o uso combinado de ecocardiograma transvaginal e Doppler, mostraram evidências de mudanças dramáticas no padrão de fluxo entre a 11° e a 20° semana de gestação. Essas mudanças são mais marcantes do que aquelas que ocorrem tardiamente na gestação, sugerindo um período de rápido desenvolvimento do coração fetal. Com isso, anormalidades metabólicas, como as observadas no diabetes materno, podem afetar e prejudicar o desenvolvimento precoce do coração fetal. Ao pesquisar o fluxo cardíaco e venoso de fetos de mães diabéticas controladas e não controladas e comparar com um grupo controle, foi demonstrado que os fetos de mães diabéticas tinham um menor aumento da razão E/A, um menor decréscimo no fluxo reverso da veia cava inferior e a presença de pulsação na veia umbilical até a 16° semana de gestação. Essas alterações podem ser o reflexo de mudanças na pré-carga, na pós-carga ou na complacência ventricular.

O presente trabalho avalia o comportamento do fluxo no ducto venoso em fetos de mães diabéticas com e sem hipertrofia miocárdica, comparando-o com um grupo de fetos normais de mães não diabéticas. Observou-se que os fetos de mães diabéticas com hipertrofia septal mostravam índice de pulsatilidade no ducto venoso significativamente maior do que os fetos de mães diabéticas sem hipertrofia septal e do que os controles, confirmando a hipótese conceitual. Este comportamento pode ser atribuído a alterações na função diastólica ventricular nos fetos com hipertrofia miocárdica, já que o índice de pulsatilidade do fluxo no ducto venoso representa a impedância por ele sofrida durante o ciclo cardíaco, e que é influenciada pela capacidade de enchimento dos ventrículos. Importa ressaltar que a diferença encontrada entre o grupo II e o grupo III sugere que outros fatores, além da hipertrofia miocárdica, interfiram na função diastólica fetal no diabetes materno.

Embora o índice de pulsatilidade do ducto venoso não tivesse distribuição normal, os valores da média e da mediana dos fluxos no ducto venoso não foram discrepantes. Por isso, optou-se por descrever as médias e realizar os testes paramétricos para que se pudesse comparar com outros estudos.

A avaliação do fluxo através das valvas mitral e tricúspide demonstrou que a onda E, em ambas as valvas, era significativamente maior nos fetos com hipertrofia miocárdica do que nos controles, sugerindo que o relaxamento diastólico de ambos os ventrículos estivesse alterado na presença de hipertrofia de suas paredes. Não foi observada diferença na onda A das valvas mitral e tricúspide (o que refletiria alteração na complacência ventricular). Entretanto, os resultados observados na análise do fluxo no ducto venoso sugerem que a complacência dos ventrículos esteja comprometida como conseqüência da hipertrofia miocárdica e do diabetes materno, o que indicaria uma possível maior sensibilidade da avaliação do ducto venoso do que da análise dos fluxos atrioventriculares na detecção da hipocomplacência ventricular.

Nossos resultados mostram diferenças em relação ao estudo de Rizzo e cols 38 provavelmente devido ao fato de que no presente estudo foram avaliadas gestantes com idade gestacional mais avançada, reforçando a idéia de que alterações num período mais precoce da gestação sejam mais evidentes do que aquelas surgidas mais tardiamente, como aliás foi sugerido pelos próprios autores. Além disso, no trabalho de Rizzo e cols., os fetos de mães diabéticas não foram separados em dois grupos (com e sem hipertrofia), como neste estudo. Sabendo-se que a hipertrofia miocárdica está relacionada com anormalidades no relaxamento ventricular, era de se esperar alterações na fase de enchimento precoce nos fetos de mães diabéticas com hipertrofia miocárdica comparados com fetos de mães diabéticas sem hipertrofia miocárdica e com fetos de gestantes sem diabetes, o que realmente foi demonstrado.

Conclusão

Em conclusão, fetos de mães diabéticas portadores de hipertrofia miocárdica apresentam comprometimento do fluxo através do ducto venoso, com aumento do índice de pulsatilidade desse fluxo em relação a fetos de mães diabéticas com espessura miocárdica normal e a fetos normais de mães sem diabetes. Esse comportamento pode estar relacionado a alterações da função diastólica fetal, que afetem o relaxamento e a complacência dos ventrículos, como conseqüência da hipertrofia miocárdica e do diabetes mellitus materno.

Recebido para Publicação em 25/06/2003

Aceito em 11/12/03

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  • Endereço para correspondência

    Dr. Paulo Zielinsky
    Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul - Unidade de Pesquisa
    Av. Princesa Isabel, 395 - Santana
    Cep 90620 001 Porto Alegre - RS
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Ago 2004
    • Data do Fascículo
      Jul 2004

    Histórico

    • Recebido
      25 Jun 2003
    • Aceito
      11 Dez 2003
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