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Inotrópicos, não devem ser prescritos?

Ponto de Vista

Inotrópicos, não Devem Ser Prescritos?

Antonio Carlos Pereira Barretto, Luiz Guilherme Velloso

São Paulo, SP

O inotrópico foi a primeira droga utilizada para tratar quadros de insuficiência cardíaca, tendo Withering administrado a digital há mais de 200 anos, obtendo a compensação do quadro desta síndrome. Nos últimos anos, vários agentes com esta atividade passaram a ser empregados na terapêutica da insuficiência cardíaca congestiva (ICC).

Se não há muitas dúvidas sobre seu valor na terapêutica dos quadros descompensados 1-5, o mesmo não ocorre quando da sua prescrição de maneira crônica para pacientes compensados 6-9. A sua prescrição, quando e como, vem sendo objeto de vários artigos e é motivo de intensa controvérsia, o que nos induziu a expor nosso ponto de vista sobre tema tão importante.

No paciente agudamente descompensado e com baixo débito cardíaco há pouca dúvida quanto aos efeitos benéficos do suporte inotrópico. Persistência de quadro congestivo associada a palidez e redução da temperatura cutânea, enchimento capilar extremamente lento, pulsos filiformes, hipotensão arterial, alteração do sensório, anorexia, intolerância alimentar, elevação progressiva dos níveis de uréia e creatinina permitem o diagnóstico do baixo débito, sem a necessidade de monitorização invasiva. Nesta situação de elevada mortalidade e grande sofrimento para o paciente, o uso de suporte inotrópico endovenoso traz melhora imediata e redução acentuada dos sintomas. As catecolaminas dobutamina e dopamina são os medicamentos mais utilizados com esta finalidade.

Em pacientes internados no Hospital Auxiliar de Cotoxó, que recebe do Pronto Socorro do INCOR pacientes descompensados, observamos que a administração de dobutamina em doses de 5 a 10µm/kg/min resultou em maior número de altas hospitalares (77%) que a dopamina (31%). Taquicardia ventricular sustentada ou piora do quadro hemodinâmico ocorreu em 17% dos tratados com dopamina, resultando em óbito ou suspensão da administração da droga 10. É interessante observar que, nesses pacientes com disfunção ventricular crônica, o baixo débito cardíaco pôde ser tratado com inotrópicos sem monitorização especial, em ambiente de enfermaria 11.

Os inibidores da fosfodiesterase (amrinona, milrinona), como a dobutamina, aumentam o débito cardíaco, reduzem a pressão de enchimento ventricular e a resistência vascular sistêmica 12. No entanto, o custo dos inibidores da fosfodiesterase é bastante superior ao das catecolaminas, o que sugere que em nosso meio possam ser reservadas a casos refratários, para uso em associação com a dobutamina ou em substituição a ela.

Para prevenir a descompensação dos pacientes mais graves, "pulsoterapia" com dobutamina ou amrinona foi utilizada 14-16. Alguns artigos, entretanto, mostraram que essa conduta era acompanhada de maior mortalidade e deixou de ser preconizada por muitos serviços 17. Recentemente, um artigo mostrou que seu emprego cuidadoso, pode estabilizar os pacientes, reduzindo as internações em enfermaria ou de emergência, bem como o número de dias internados para compensação. É nosso conceito, que a "pulsoterapia" possa ser usada, entretanto é necessário seguimento muito próximo dos pacientes, pelo mesmo médico, que realmente conhece seu doente 16. O intervalo para cada prescrição é determinado pelo médico, sendo realizada uma a duas vezes por semana.

A prescrição dos inotrópicos de maneira geral para portadores de ICC melhora sua classe funcional, sua capacidade de exercício e sua qualidade de vida, entretanto a maioria das drogas provoca aumento de mortalidade.

Este aumento da mortalidade é diferente com cada droga e parece ser proporcional à dose. Quanto maior a dose, maior a mortalidade. Com o vesnarinone, resultados preliminares pareciam sugerir que doses menores não induziriam a aumento da mortalidade 8. Estudo especialmente elaborado para analisar esses aspectos (Estudo VEST), não comprovou este benefício, e mostrou que o aumento da mortalidade era proporcional a dose. Este efeito adverso parece estar relacionado a aumento da estimulação neuro-humoral, aumento da estimulação simpática que induz aumento de arritmias e morte súbita, resultando em menor sobrevida.

Desta forma, não há indicação para a prescrição de inotrópicos para pacientes compensados, sendo exceção os digitálicos, que induzindo redução da freqüência cardíaca, modulação da estimulação neuro-humoral e redução da estimulação simpática parecem não provocar aumento da mortalidade.

O estudo DIG documentou este aspecto, mostrando que o uso de digoxina não tem impacto sobre a sobrevida 18. Este resultado pode levar a duas condutas, a não prescrevê-la pois não modifica a reduzida sobrevida dos portadores de ICC ou prescrevê-la pelos seus benefícios na melhora da função cardíaca, classe funcional, tempo de exercício e redução do número de hospitalizações. O resultado do estudo DIG mostra redução do número de internações (eventos) para aqueles em uso do medicamento. Resultado semelhante já havia sido observado nos estudos RADIANCE e PROVED, que demonstraram que a retirada de digital era acompanhado de piora da ICC, redução no tempo de exercício ou da distância caminhada 19,20.

A controvérsia sobre o emprego do digital ainda não terminou apesar destes resultados. No estudo DIG, observou-se que o digital aumentava a mortalidade daqueles que apresentavam arritmia ventricular. Aguarda-se análise mais detalhada dos subgrupos do estudo DIG para se concluir se todos pacientes podem tomar digital.

Há também dúvida se os digitálicos devam ser prescritos para pacientes com ICC secundária a doença isquêmica, onde alguns artigos mostram que a droga pode aumentar a mortalidade 21.

Assim, embora não seja medicação que, isoladamente, controle os quadros de insuficiência cardíaca, associado a diuréticos e inibidores da enzima conversora da angiotensina, desempenha papel importante, conforme os resultados mencionados.

Há um ponto mais controverso, que merece discussão. Não devemos utilizar os inotrópicos não digitálicos para tratamento de pacientes compensados ?

Consideramos que pelo aumento da mortalidade que induzem, não deveriam ser prescritos para os pacientes estáveis, que compensaram com o tratamento clássico de diuréticos, digital e vasodilatadores. Entretanto, questionamos se não poderia ser prescrito para pacientes com ICC avançada, que não se mantêm compensados, necessitando múltiplas internações, e mesmo para aqueles muito limitados apesar da terapêutica otimizada. Estes pacientes mais graves têm uma qualidade de vida muito ruim, e o emprego dos inotrópicos pode melhorá-la, uma vez que auxiliam a compensação dos pacientes, melhorando o desempenho físico e reduzindo a necessidade de múltiplas internações 9,22. Assim, nas formas avançadas, talvez o mais importante não seja a quantidade de vida mas a qualidade dela, e isto os inotrópicos melhoram, apesar de poderem reduzir o seu tempo. Esta ação na mortalidade, tem que ser criticamente analisada. No estudo PRIME 2, o ipopamina provocou aumento da mortalidade que passou de 20% para 24% em um ano 23. Este aumento de quatro mortes em um ano, para 100 pacientes, em relação ao grupo controle, significou do ponto de vista estatístico um aumento de mortalidade de 26%. Não que não seja importante este resultado, mas do ponto de vista clínico, para pacientes com qualidade de vida muito ruim, talvez não seja um risco que não se possa correr.

Este tema qualidade versus quantidade de vida vem sendo objeto de discussão em vários países e alguns serviços vêm utilizando os inotrópicos em pacientes com ICC avançada, por considerar que nesta fase da doença não resolve somente prolongar a vida com qualidade tão baixa.

Quanto a pergunta título deste ponto de vista, concluiríamos que há várias indicações para os inotrópicos, nos pacientes descompensados para acelerar sua compensação, reduzindo o desconforto que ela provoca. Para pacientes estáveis, embora sem impacto sobre a mortalidade, o digital estabiliza os pacientes melhorando sua performance e reduzindo os quadros de descompensação. Para pacientes com ICC avançada, os inotrópicos podem ser prescritos para melhorar a qualidade de vida.

Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP

Correspondência: Antonio Carlos Pereira Barretto - Incor - Av. Dr. Enéas C. Aguiar, 44 - 05403-000 - São Paulo, SP

Recebido para publicação em 2/7/97

Aceito em 20/8/97

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Fev 2001
  • Data do Fascículo
    Out 1997

Histórico

  • Aceito
    20 Ago 1997
  • Recebido
    02 Jul 1997
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