Acessibilidade / Reportar erro

Complicações na febre tifóide: relato de um caso atípico e considerações sobre suas implicações no diagnóstico e no controle

Complications in typhoid fever: description of an anusual case and its bearing on diagnosis and control

Resumos

Apresenta-se um caso de febre tifóide que cursou com hepatite colestática cujo diagnóstico foi dado pela coprocultura. A negativação das provas para hepatites virais, malária e leptospirose, e a pronta resposta ao tratamento com ciprofloxacina corroboraram o diagnóstico de febre tifóide. Nas áreas endêmicas, essa hipótese deve ser lembrada diante das icterícias febris.

Febre tifóide; Hepatite; Diagnóstico; Controle


A case of typhoid fever with colestatic hepatitis is described, with diagnosis made by stool culture. Examination for malaria, leptospirosis and viral hepatitis were all negatives. These results and the rapid response of the patient to treatment with ciprofloxacin confirmed the diagnosis of typhoid fever and indicate the importance of considering typhoid fever in cases of fever with jaundice.

Typhoid fever; Hepatitis; Diagnosis; Control


Complicações na febre tifóide: relato de um caso atípico e considerações sobre suas implicações no diagnóstico e no controle

Complications in typhoid fever: description of an anusual case and its bearing on diagnosis and control

Francisco Lúzio de Paula Ramos

Seção de Bacteriologia do Instituto Evandro Chagas da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Belém, PA, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Dr.Francisco Lúzio de Paula Instituto Evandro Chagas Av Almirante Barroso 492 66093-020 Belém, PA, Brasil. Fax: 91 211-4418 Fone: 91 214-2115. e-mail : franciscoluzio@iec.pa.gov.br

RESUMO

Apresenta-se um caso de febre tifóide que cursou com hepatite colestática cujo diagnóstico foi dado pela coprocultura. A negativação das provas para hepatites virais, malária e leptospirose, e a pronta resposta ao tratamento com ciprofloxacina corroboraram o diagnóstico de febre tifóide. Nas áreas endêmicas, essa hipótese deve ser lembrada diante das icterícias febris.

Palavras-chaves: Febre tifóide. Hepatite. Diagnóstico. Controle.

ABSTRACT

A case of typhoid fever with colestatic hepatitis is described, with diagnosis made by stool culture. Examination for malaria, leptospirosis and viral hepatitis were all negatives. These results and the rapid response of the patient to treatment with ciprofloxacin confirmed the diagnosis of typhoid fever and indicate the importance of considering typhoid fever in cases of fever with jaundice.

Key-words: Typhoid fever. Hepatitis. Diagnosis. Control.

A febre tifóide é uma enfermidade infecciosa, causada pela Salmonella typhi, que acomete exclusivamente o homem e constitui grave problema de saúde pública nos países em desenvolvimento. São registrados cerca de 17 milhões de casos anualmente em todo o mundo, dos quais resultam em torno de 600.000 mortes1. No Brasil, as regiões Norte e Nordeste são as de maior incidência, refletindo as precárias condições de saneamento básico nessas áreas do país1. A doença se manifesta cerca de uma a três semanas após a infecção, a qual se dá pela ingestão de água ou de alimentos contaminados com o agente causal. A bactéria atravessa o epitélio intestinal e por meio do ducto torácico alcança a corrente sangüínea, por intermédio da qual se espalha por todo o organismo13 podendo afetar qualquer órgão6, principalmente os do sistema retículoendotelial13, razão pela qual a hepatoesplenomegalia é um achado frequente9; abscessos no fígado e hepatites, as vezes severas, são algumas das complicações hepáticas que podem ser observadas na febre tifóide6 8 9. Este trabalho objetiva mostrar um caso de febre tifóide de rara apresentação clínica, uma vez que se manifestou com icterícia e colúria intensas, cujo padrão não é comum nessa patologia.

RELATO DO CASO

Paciente do sexo masculino, 14 anos de idade, residente em Belém, PA, foi atendido na Seção de Bacteriologia do Instituto Evandro Chagas, no final do mês de maio de 2002, queixando-se de febre elevada e intermitente há aproximadamente 30 dias, acompanhada de calafrios, cefaléia, mialgias generalizadas, artralgias, náuseas, vômitos, dores abdominais difusas e diarréia. Relatou que há mais ou menos duas semanas da consulta começou a apresentar urina escura e pele e olhos amarelados. Ao exame físico apresentava queda do estado geral, desidratação, icterícia (3+/4+), abdome normotenso, doloroso à palpação, sobretudo no hipocôndrio direito, e fígado e baço discretamente aumentados de tamanho. A investigação laboratorial, procedida no dia da consulta, revelou: Hemograma: Hc - 4,49 milhões/mm3, Ht: 36,3%, Hb: 12,3 g%, plaquetas: 176.000/mm3, leucócitos: 3.900/mm3, bas: 2%, eos: 1%, seg: 67%, lin: 20%, mon: 10%.

Provas de função hepática e renal: TGO: 385U/l, TGP: 738U/l, fosfatase alcalina: 1.848U/l, Gama GT: 1.397U/l, bilirrubina direta: 4,83mg/dl, bilirrubina total: 7,04mg/dl, uréia: 22mg/dl e creatinina: 0,40mg/dl.

A pesquisa de Plasmodium, assim como a de marcadores virais para as hepatites A, B, C e E e a soroaglutinação microscópica para leptospirose foram todas negativas. Também, foram negativos os exames sorológicos para febre amarela, dengue e outras arboviroses de ocorrência comum na região.

A reação de Widal mostrou títulos de aglutininas anti-O inferiores a 1:20 e de anti-H, 1:640. O cultivo das fezes evidenciou o isolamento de Salmonella typhi; enquato que a hemocultura foi negativa.

Diante do achado laboratorial foi prescrito ao paciente ciprofloxacina (500mg), de 12 em 12 horas, por via oral, durante 10 dias. No 3º dia de tratamento a febre cedeu e o paciente foi apresentando progressiva reversão da icterícia e recuperação do apetite, seguindo-se de completo restabelecimento da saúde em poucos dias.

O controle de cura foi feito por meio de três coprocultivos, em dias consecutivos, iniciados uma semana após o término do tratamento; todos os cultivos revelaram ausência de S. typhi.

Provas de função hepática de controle, realizadas cerca de 10 dias depois do primeiro exame, revelaram os seguintes resultados: TGO: 158U/l, TGP:266U/l, Fosfatase alcalina: 1.263U/l, bilirrubina direta: 1,25mg/dl e bilirrubina total: 1, 33mg/dl.

DISCUSSÃO

A icterícia é um sinal clínico esperado na febre tifóide, haja vista o fígado, assim como os demais órgãos do sistema retículoendotelial, ser diretamente afetado pela Salmonella typhi12 13. Apesar de se ter estudo no qual o registro de pacientes com febre tifóide, que evoluíram com icterícia, alcançou índice de 36,8%4, esse sinal clínico, na febre tifóide, normalmente aparece em reduzido número de casos6 7 16. Além disso, a intensidade é habitualmente pequena, uma vez que o acometimento hepático, via de regra, é de pequena monta, na maioria das vezes traduzido apenas por hepatomegalia leve e por discretas alterações nas provas de função hepática9. Porém, algumas vezes o ataque ao fígado pode ser severo8 9 14 capaz até mesmo de ocasionar manifestações de encefalopatia hepática6 8 14. No caso ora em discussão, cuja apresentação clínica se mostrou fora dos padrões da doença, o paciente teve comprometimento hepático importante, revelado pela intensidade dos sinais clínicos (icterícia e colúria) e pelas significativas alterações das provas de função hepática, caracterizando quadro de hepatite colestática. Tanto os sinais clínicos quanto os achados laboratoriais se mostraram mais compatíveis com outras patologias, a exemplo das hepatites virais, da leptospirose e da malária, do que com a febre tifóide. Considerando a elevada freqüência dessas doenças na região, e a feição clínica com que o caso se apresentou, a tendência natural do investigador seria direcionar a investigação a essas patologias, buscando, em vão, a causa do problema. Até que toda a busca o convencesse do contrário, um precioso tempo seria desperdiçado, uma vez que a instalação das complicações da febre tifóide varia na razão direta com o tempo de evolução da doença2; além disso, as análises laboratoriais, sempre dispendiosas, tornariam também o caso oneroso ao percorrer desnecessariamente algumas etapas na busca da causa da condição mórbida em questão.

O quadro de hepatite instalado na febre tifóide é traduzido histologicamente por uma reação inflamatória inespecífica, na qual o parênquima hepático pode ser comprometido em grau variado9; m algumas ocasiões o acometimento do fígado pode se traduzir unicamente pela formação de abscessos2 10. A investigação do presente caso não foi conduzida com exames ultrasonográficos ou de imagem, tampouco por qualquer processo invasivo; limitou-se ao exame físico - no qual se destacou a icterícia febril e a hepatomegalia dolorosa - e às provas bioquímicas, nas quais os níveis séricos das transaminases revelaram comprometimento importante das funções hepáticas; os níveis séricos das transaminases aqui encontrados foram comparados com os demonstrados por outros autores, em circunstâncias semelhantes5 14. Sendo a febre tifóide uma doença sistêmica, qualquer órgão pode ser afetado pelo agente causal, e até mesmo múltiplos órgãos podem vir a ser atingidos, simultaneamente6. A icterícia geralmente pode ser sinal de sério comprometimento hepático que, por sua vez, pode precipitar sinais clínicos de glomerulonefrite4. A Salmonella typhi tem como alvo também a vesícula biliar, com a qual estabelece uma relação ainda pouco compreendida, que pode condicionar o estado de portador ou até mesmo resultar num estado mórbido3 11 15. Ressalte-se, ainda, que a colelitíase pode ser fator predisponente para a formação de abscessos1. Dos indivíduos que contraem febre tifóide e não são tratados, cerca de 10% podem continuar excretando o bacilo tífico pelas fezes por até 3 meses após o início dos sintomas, e 2% a 5% deles podem se tornar portadores permanentes1. Uma vez conhecido o papel desempenhado pelo portador na cadeia epidemiológica da febre tifóide, a necessidade de se estabelecer o diagnóstico de certeza da doença é absoluta, a fim de que, com a correta aplicação das medidas terapêuticas e do controle de cura se evite a formação do estado de portador, cuja relação com o aumento da incidência da doença varia na razão direta.

Dos exames específicos para o diagnóstico da febre tifóide, a hemocultura revelou-se negativa enquanto que a coprocultura e a reação de Widal foram positivas. O fato do paciente ter sido examinado no 30º dia de doença - a sensibilidade do hemocultivo é inversamente proporcional ao tempo de evolução da enfermidade - e de estar fazendo uso de antibiótico no momento da investigação, justifica o resultado obtido na hemocultura16; o baixo nível de aglutininas anti-O detectado talvez seja devido também à interferência dessas drogas. A negativação das provas voltadas para o diagnóstico diferencial e a boa resposta ao tratamento específico, revelada pela a rápida recuperação do paciente, corroboram o diagnóstico de febre tifóide.

A aplicação rotineira das provas laboratoriais específicas para febre tifóide a todos os casos de febre prolongada de origem obscura que procuram ou que são encaminhados à Seção de bacteriologia do IEC, tal como o ora discutido, foi o fator determinante para o desfecho favorável do caso, prevenindo assim as complicações e as incertezas prognósticas que normalmente as acompanham. Portanto, este relato, assim como os de outros autores10 14 mostra que, nas áreas endêmicas, prova boa conduta incluir a febre tifóide no diagnóstico diferencial das icterícias febris.

  • 1. Chin J. El control de las enfermidades transmisibles. 17th edition. Organition Panamerican del Salude. Washington p.284-293, 2001.
  • 2. Ciraj AM, Reetka D, Bhat GK, Pai GC, Chivananda PG. Hepatic abscess causad by Salmonella typhi Journal of the association of physicians of India 49: 1021-1022, 2001.
  • 3. Fundação Nacional da Saúde. Guia de Vigilância Epidemiológica, Ministério da Saúde, Brasília, 1998.
  • 4. Khan M, Coovadia YM, Karas JÁ, Connoly C, Sturm AW. Clinical significance of hepatic dysfunction With jaundice in typhoid fever. Digestive Diseases and Science 44: 590-594, 1999.
  • 5. Khan M, Coovadia YM, Karas JÁ, Connoly C, Sturm AW. Influence of sex on clinical features, laboratory findings, and complication of typhoid fever. The American Journal Tropical Medicine of Hygiene 61: 41-46, 1999.
  • 6. Khan M, Coovadia YM, Sturm AW. Typhoid fever by acut renal failure and hepatitis: Case report and review. American Journal of Gastroenterology. 93: 1001-1003, 1998.
  • 7. Khosla SN, Singh R, Singh GP, Trehan VK. The espectrum of hepatic injury in enteric fever. The American Journal of Gastroenterology 83: 413-416, 1988.
  • 8. Olubodum J, kuti J, Adefuye B, Talab A. Typhoid fever associated with severe hepatitis. Central African Journal of Medicine 40, 1994.
  • 9. Ramachandran S, Godfrey JJ, Perera MVF. Typhoid hepatitis. The Journal of the American Medical Association 230: 236-240, 1974.
  • 10. Ramanathan M. Unusual hepatic manifestations in typhoid fever. Singapore Medical Journal 32: 335-337, 1991.
  • 11. Ristori C, Rodrigues H, Vicent P, Lobos H, D'Ottonec, Garcia J, Pinto ME, Patrício N, Cisneros L. Investigacion sobre el estado de portador de Salmonella typhi-paratyphi em pacientes intervenidos por patologia vesicular. Boletim of Sanitary Panamerican 93: 365-375, 1982.
  • 12. Ruiz-Palacios G. Salmonella hepatitis: Detection of Salmonella antigen in the liver of pacients with typhoid fever. Journal of Infectious Diseases 154: 373-374, 1986.
  • 13. Saravia-Gomez J, Focaccia R, Lima VP. Febre Tifóide e paratifóide. In: Veronesi R, Focaccia R (eds) Tratado de Infectologia, 2Ş reimpressão, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, p. 697-709, 1997.
  • 14. Shetty AK, Mital SR, Bahrainwala AHT, Klubchandani RP, Kunita NB. Typhoid hepatitis in children. Journal of Tropical Pediatrics 45: 287-290, 1999.
  • 15. Winkler AP, Gleich S. Acute acalculous cholecystitis caused by Salmonella typhi in na 11 - year-old. Pediatric Infections Diseases Journal 7: 125-128, 1988.
  • 16. Yap I, Wee A. Uncommon presentation of typhoid fever: a case report. Annals Academic Medicals Singapore 22: 943-944, 1993.
  • Endereço para correspondência:

    Dr.Francisco Lúzio de Paula
    Instituto Evandro Chagas
    Av Almirante Barroso 492
    66093-020 Belém, PA, Brasil.
    Fax: 91 211-4418
    Fone: 91 214-2115.
    e-mail :
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Set 2014
    • Data do Fascículo
      2004
    Sociedade Brasileira de Medicina Tropical - SBMT Caixa Postal 118, 38001-970 Uberaba MG Brazil, Tel.: +55 34 3318-5255 / +55 34 3318-5636/ +55 34 3318-5287, http://rsbmt.org.br/ - Uberaba - MG - Brazil
    E-mail: rsbmt@uftm.edu.br