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Condições socioeconômicas em saúde: discussão de dois paradigmas

Resumos

Condição socioeconômica e seu impacto em saúde são objeto de grande interesse para pesquisadores e gestores de saúde. O artigo discute dois paradigmas de aferição da condição socioeconômica e revisa estudos epidemiológicos em que eles foram aplicados. Um dos paradigmas é referenciado por medidas de prestígio e diferenciação positiva entre os estratos sociais, como classificações baseadas em capital social e no acesso a bens e serviços. O outro é referenciado por classificações envolvendo privação material e diferenciação negativa entre os estratos sociais, e envolve a proposta de reposição aos segmentos populacionais mais afetados pela privação pelo Estado. A reflexão sobre opções metodológicas para se aferir condição socioeconômica em estudos epidemiológicos pode contribuir para a promoção de saúde e justiça social.

Desigualdades em Saúde; Fatores Socioeconômicos; Análise Socioeconômica; Iniqüidade Social


Socioeconomic status and its impact on health are in the mainstream of public health thinking. This text discusses two paradigms utilized in assessing socioeconomic status in epidemiologic studies. One paradigm refers to prestige-based measurements and positive differentiation among social strata. This paradigm is characterized by classifications assessing social capital and the access to goods and services. The other paradigm refers to the classification of social deprivation and negative differentiation among social strata. The proposal of State-funded reposition to the mostly deprived social strata is acknowledged as characteristic of this paradigm. The contrast between these paradigms, and their potential interaction and debate are discussed. Fostering reflection on methodological strategies to assess socioeconomic status in epidemiologic studies can contribute to the promotion of health and social justice.

Health Inequalities; Socioeconomic Factors; Socioeconomic Analysis; Social Inequity


COMENTÁRIOS

Condições socioeconômicas em saúde: discussão de dois paradigmas

José Leopoldo Ferreira Antunes

Faculdade de Odontologia. Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil

Correspondência Correspondência: José Leopoldo Ferreira Antunes Av. Prof. Lineu Prestes, 2227 05508-900 São Paulo, SP, Brasil E-mail: leopoldo@usp.br

RESUMO

Condição socioeconômica e seu impacto em saúde são objeto de grande interesse para pesquisadores e gestores de saúde. O artigo discute dois paradigmas de aferição da condição socioeconômica e revisa estudos epidemiológicos em que eles foram aplicados. Um dos paradigmas é referenciado por medidas de prestígio e diferenciação positiva entre os estratos sociais, como classificações baseadas em capital social e no acesso a bens e serviços. O outro é referenciado por classificações envolvendo privação material e diferenciação negativa entre os estratos sociais, e envolve a proposta de reposição aos segmentos populacionais mais afetados pela privação pelo Estado. A reflexão sobre opções metodológicas para se aferir condição socioeconômica em estudos epidemiológicos pode contribuir para a promoção de saúde e justiça social.

Descritores: Desigualdades em Saúde. Fatores Socioeconômicos. Análise Socioeconômica. Iniqüidade Social.

INTRODUÇÃO

Definição influente e atual aponta saúde pública como "a ciência e a arte de prevenir as doenças, prolongar a vida e promover a saúde por meio do esforço organizado e escolhas informadas da sociedade, organizações públicas e privadas, comunidade e indivíduos".20 Evidencia-se a indicação da saúde pública como processo dinâmico que demanda a conjunção de esforços individuais e institucionais. Para compatibilizar os interesses que viabilizam a ação social, é necessário o debate de idéias e a conjunção das vontades; a saúde pública é, portanto, fundada na política.

A política envolve discussão e conflito de interesses, o que pode resultar em desgaste pessoal e esgarçadura do tecido social. Todavia esse processo tem como contrapartida a organização das iniciativas e a agregação dos agentes sociais. A política é o recurso para a construção de consensos possíveis que justificam a efetivação dos programas e intervenções em saúde.

Ao estudar as causas e a distribuição de estados ou eventos relacionados à saúde em populações específicas, a epidemiologia contribui para a saúde pública fornecendo conhecimentos e informações que instruem a formação do consenso e a tomada de decisão. Para essa função, não raro, os estudos epidemiológicos precisam classificar indivíduos e grupos de população segundo condições socioeconômicas – dimensão há muito reconhecida como importante fator para modificação do risco de doenças, para restrição ou facilitação do acesso a serviços de saúde.

Condições socioeconômicas podem ser aferidas por meio de indicadores de renda, escolaridade e ocupação para referenciar hipóteses de interesse; podem também ser empregados índices que agregam informações sobre diferentes aspectos da condição socioeconômica. De todo modo, os recursos de classificação da sociedade são permeados por diferentes ideologias, valores e concepções. A aferição de condições socioeconômicas nos estudos epidemiológicos também tem proeminente dimensão política, o que torna ainda mais complexa a imbricação entre saúde pública e política.

O presente texto teve por objetivo descrever dois paradigmas para a mensuração de condições socioeconômicas, os quais têm sido utilizados em estudos epidemiológicos recentes, em particular no contexto brasileiro. Espera-se com isso propiciar reflexão quanto às opções metodológicas disponíveis e suas conseqüências, contribuindo com os estudos nessa área.

"DIFERENÇA ENTRE NÓS"

Não foi realizada uma revisão sistemática de literatura; apenas procurou-se reunir indicações para o esclarecimento das posições em contraste. O confronto ideológico entre essas perspectivas analíticas não é recente, nem exclusivo da realidade brasileira. "A diferença entre nós" diz respeito à contraposição entre os dois paradigmas que adiante serão detalhados. Para introduzir a temática, um trecho de depoimento de Leeder (2003)9 sintetiza as idéias em debate:

Em 1988, participei de um congresso sobre gerenciamento de serviços de saúde, reunindo delegações do Reino Unido, Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Estivemos discutindo a alocação de recursos e a frustração avançava durante os dois primeiros dias. Ideologicamente, os participantes estavam divididos em dois times – os Estados Unidos e o Resto.

No terceiro dia, o líder do grupo americano disse: "A diferença entre nós é que vocês acreditam na eqüidade e nós não. Nos Estados Unidos, as pessoas estão menos interessadas em garantir que todos recebam assistência do que em assegurar um elevado padrão para os que podem pagar por isso. As pessoas aceitam não receber assistência imediata caso estejam seguras das oportunidades em melhorar sua posição e sucesso financeiro, de modo a poderem pagar por assistência de boa qualidade quando tiverem dinheiro suficiente. Tudo é uma questão de oportunidade. As pessoas nos Estados Unidos querem oportunidade, não eqüidade. Isso é o que elas acreditam ser justo."

Foi importante que o representante da delegação americana tenha dito o que disse. Aquilo limpou o terreno. Fez-nos lembrar que nem todas as sociedades, e nem todas as pessoas no interior de uma mesma sociedade, partilham uma visão comum do que é justo. Nos Estados Unidos, "justiça" significa que você é encorajado a procurar o sucesso pessoal sem ter que se preocupar muito com os demais. No Reino Unido, Canadá, Nova Zelândia e Austrália, há um interesse geral pelo bem-estar dos outros.

PRIMEIRO PARADIGMA: LIBERDADE E OPORTUNIDADE

O primeiro paradigma de classificação da sociedade envolve a perspectiva de que a diferenciação socioeconômica entre os seres humanos pode estar associada a valores humanos fundamentais: liberdade, realização das potencialidades individuais. Nesse sentido, atribui-se um aspecto positivo proeminente à desigualdade socioeconômica resultante dessa diferenciação; a realização das oportunidades pode ser causa e conseqüência do acesso a melhores condições de saúde.

Segundo essa diretriz, "justiça social" consistiria em propiciar que cada indivíduo tivesse condições de realizar suas vocações e oportunidades, ainda que isso implique alguma diferenciação de condições entre os seres humanos. Nem por isso, as "disparidades" em saúde seriam sempre justificadas, e o estudo socioeconômico permitiria identificar estratégias para a ampliação das oportunidades, para uma extensa difusão dos recursos e benefícios sociais. Os estudos que avaliam a relação entre condições socioeconômicas e saúde segundo esse paradigma estratificam a população em termos da quantificação das aquisições individuais, das oportunidades que se pôde realizar, procurando assim indicar o acesso a melhores condições de saúde.

Acesso a bens e serviços

Para essa finalidade, um recurso utilizado com alguma freqüência consiste em quantificar o acesso diferencial a bens e serviços de mercado. A Associação Brasileira de Anunciantes propôs em 1970 um primeiro critério para estratificação social dos núcleos familiares segundo características relativas a seus hábitos de consumo. Nas décadas seguintes, a Associação Brasileira dos Institutos de Pesquisa de Mercado associou-se a essa iniciativa e diferentes reformulações dessa metodologia foram apresentadas, com a proposição de itens adicionais e novos sistemas de pontuação. Chancelada pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP), a versão mais recente (2003) do questionário pode ser consultada on-line.* * Associação Brasileira de Empresas de Pesquisas. Critério de Classificação Econômica Brasil. Disponível em: http://www.abep.org/codigosguias/ABEP_CCEB.pdf [Acesso em 28 Fev 2008]

Essa classificação baseia-se em itens como posse de artigos (televisão, rádio, automóvel, aspirador de pó, videocassete e/ou aparelho de DVD, geladeira, freezer e máquina de lavar), serviços (empregada mensalista), características do domicílio (número de banheiros) e grau de instrução do responsável pelo domicílio. A totalização dos pontos relativos a cada item resulta na classificação dos respondentes em sete estratos, identificados como "classes sociais" A1, A2, B1, B2, C, D e E.

A finalidade precípua desse sistema classificatório é estimar o poder de compra dos participantes de pesquisas de mercado, para dirigir a ação de fabricantes e anunciantes. Seus proponentes reiteraram que o objetivo restringia-se a medir potencial de mercado, não havendo pretensões de inferir classes sociais para estudos mais abrangentes de população. E mesmo nessa dimensão a metodologia foi criticada como sendo ultrapassada, insensível às modificações mais dinâmicas dos hábitos de consumo, e por incluir itens instáveis e de pequeno poder discriminatório.11

Apesar disso, a facilidade de obtenção desses dados parece ter cativado pesquisadores da área de saúde para a classificação segundo esse critério. Ao revisar 86 estudos do Brasil e do exterior, que abordaram diferenciais de ordem socioeconômica na prevalência de cárie dentária e doença periodontal entre 1990 e 2001, Boing et al5 identificaram três estudos que adotaram essa metodologia. Almeida-Filho et al1 utilizaram a pontuação obtida no questionário da ABEP para inferir classe social, segundo as categorias "alta", "média", "trabalhadores" e "pobres", e explorar interações entre desigualdades sociais e condições de saúde mental na Bahia.

A despeito de sua facilidade operacional, ressalta-se que esse índice não foi desenvolvido tendo em vista preocupações de saúde e bem-estar social. Hábitos de consumo não necessariamente refletem padrões comportamentais em saúde, níveis diferenciais de acesso a serviços médicos ou risco de doença. Há relativa incongruência entre o objeto de mensuração desse índice e os motivos mais comuns que levam as pesquisas em saúde a estratificar a população. Ao ponderar a possibilidade de seu uso, deve-se também levar em consideração que esse critério de classificação não foi validado no País e não tem similar no contexto internacional.

Capital social

Outro recurso analítico para aferir o potencial de realização da liberdade e das oportunidades dos indivíduos e coletividades refere-se ao conceito de "capital social". Intuitivamente, esse conceito envolve a idéia de que a família, os amigos e colegas, as pessoas e grupos com que se pode interagir socialmente, constituem patrimônio relevante para a satisfação das necessidades humanas. Capital social seria uma indicação de coesão dos indivíduos e dos agrupamentos sociais, uma dimensão mensurável de algo que lhes qualifica para uma ação conjunta mais efetiva em busca da realização de objetivos compartilhados.21 Uma síntese histórica do conceito, sua capacidade de inferência dos diferenciais de saúde e suas formas de medida foram recentemente apresentadas ao meio profissional da saúde pública no Brasil.15,18

Exemplificando a aplicação desse conceito, Pattussi et al14 estudaram traumatismo dentário em adolescentes residentes em duas cidades satélites de Brasília. Um extenso questionário e um complexo procedimento estatístico permitiram caracterizar capital social como atributo de áreas residenciais. Os bairros com indicadores mais favoráveis de capital social estariam sujeitos a menor prevalência de traumatismo dentário em adolescentes. Esse estudo também utilizou o questionário da ABEP para inferir classes sociais (alta, média e baixa) e descrever diferenciais de prevalência. A conjunção dos dois procedimentos no mesmo estudo pode ser interpretada como sinal de sua afinidade ideológica e adesão a esse primeiro paradigma de aferição de condição socioeconômica.

Não obstante o grande interesse suscitado e seu uso crescente na pesquisa em saúde, o conceito de capital social tem sido criticado por sua virtual associação ideológica ao neoliberalismo. Navarro13 reconstituiu a genealogia do conceito e sintetizou parâmetros para uma apreciação crítica. Em sua avaliação, a importância do conceito teria sido exagerada nos estudos epidemiológicos, e seu uso teria dificultado evidenciar relações de poder e fatores políticos relacionados à luta de classes. Para testar essa hipótese, Muntaner et al12 estudaram coeficientes de mortalidade de vários países e avaliaram sua associação com diferentes indicadores, organizados em dois blocos. O primeiro, avalia fatores políticos relacionados ao poder dos trabalhadores (desigualdade na distribuição de renda, desemprego, pobreza, gastos em seguridade social, votos de "esquerda"); o segundo, reúne medidas convencionais de capital social (trabalho voluntário, corrupção, inserção em organizações). Por meio desse procedimento, os autores do estudo concluíram que as variáveis do primeiro bloco teriam maior poder preditivo sobre condições de interesse para a saúde que as do segundo.

SEGUNDO PARADIGMA: IGUALDADE E EQÜIDADE

O segundo paradigma de classificação da sociedade envolve a perspectiva de que a diferenciação socioeconômica entre os seres humanos pode estar associada à exploração e injustiça social. Nesse sentido, atribui-se um aspecto negativo proeminente à desigualdade socioeconômica resultante dessa diferenciação: a privação material pode ser causa e conseqüência de dificuldades no acesso a melhores condições de saúde.

De acordo com essa diretriz, "justiça social" consistiria em propiciar reposição de recursos comunitários ou estatais para os indivíduos e grupos prejudicados em relação ao patamar possível de ser atingido de desenvolvimento humano em geral, de saúde em particular. Nem por isso, as "desigualdades" em saúde seriam sempre injustas, e o estudo de condição socioeconômica permitiria identificar quais delas demandam a intervenção dos esforços organizados da sociedade. Os estudos que avaliam a relação entre condições socioeconômicas e saúde segundo esse paradigma têm procurado estratificar a população, visando a quantificar as desigualdades e a qualificar as que são consideradas injustas.

Justiça social dos programas de saúde

Os diferenciais de saúde segundo condição socioeconômica podem ser descritos e explorados analiticamente com vistas à identificação de injustiça social na distribuição da carga de doença ou de resultados dos programas de saúde. As formas usuais para aferir condição socioeconômica em estudos dessa natureza foram objeto de várias revisões.4,7,8 Além de sintetizar as medidas de interesse e apreciar criticamente suas vantagens e desvantagens, estas revisões sublinharam a necessidade de se aprofundar a compreensão da estreita relação que se estabelece entre condição socioeconômica e saúde. Os estudos indicados a seguir são alguns exemplos de aplicação dessa diretriz.

Victora et al19 avaliaram a implementação de um programa de assistência à saúde infantil em cidades brasileiras segundo categorias de variação do índice de desenvolvimento humano, renda per capita, taxa de alfabetizados, porte populacional, distância para a capital do Estado, percentagem de população urbana e cobertura da rede de águas. Com base nesta avaliação, os autores puderam mostrar que a intervenção foi efetivada em menor proporção nas cidades menores, mais pobres e distantes dos centros metropolitanos. Desse modo, os autores apontaram um aspecto de injustiça social que deve ser levado em consideração pelos gestores do programa para beneficiar as cidades mais carentes no planejamento de estratégias de expansão.

A redução de mortalidade por Aids em São Paulo após a introdução do programa de distribuição de medicamentos anti-retrovirais foi avaliada segundo diferenciais de condição socioeconômica nos distritos da cidade.2 Para essa finalidade, utilizaram-se o índice de desenvolvimento humano, renda per capita, coeficiente de Gini (desigualdade na distribuição de renda), taxa de alfabetizados, anos de estudo, proporção de chefes de domicílios graduados no ensino secundário, percentagem de domicílios localizados em favelas, aglomeração domiciliar e posse do domicílio. Com isso, pôde-se relatar o sucesso da intervenção, tanto do ponto de vista da melhora global do indicador de saúde, como da ausência de viés socioeconômico.

Peres et al16 estudaram a adição de flúor à água de abastecimento público, medida preventiva da cárie dentária, quanto a seu potencial efeito na redução de prevalência e o impacto sobre diferenciais socioeconômicos na distribuição da doença. Foram avaliados dados sobre a cobertura da rede de águas, índice de desenvolvimento humano, diferenciais entre áreas urbanas e rurais, indicadores de escolaridade e renda de cidades do Brasil. Como nem todas as cidades puderam efetivar a fluoretação, e mesmo as que o fizeram, não dispunham de acesso universal para abastecimento de água, o recurso preventivo resultou simultaneamente na redução global dos índices de cárie e na ampliação da desigualdade na prevalência da doença. Os autores concluíram que o direcionamento de recursos para expandir o acesso à água fluoretada pode resultar em redução ainda mais extensa dos níveis globais de cárie.

Classe social no enfoque marxista

Aspectos estruturais da divisão de classes da sociedade capitalista, contemplados pela análise marxista, podem ser integrados aos esquemas de estratificação social dos estudos epidemiológicos? A injustiça social que permeia diferenças socioeconômicas em saúde pode ser refletida segundo o enfoque da exploração e luta de classes? Essas perguntas são complexas e motivaram pesquisadores no Brasil10 e no exterior6,22 para a proposição de esquemas operacionais que permitam reconhecer o pertencimento de indivíduos às diferentes classes sociais a partir de atributos relativos à inserção no trabalho. Embora seja difícil avaliar a validade destas iniciativas, pode-se ao menos dizer que esse esforço obteve resultados favoráveis de responsividade; isto é, poder discriminatório para identificar associações significantes aos diferenciais de saúde.

Exemplificando, menciona-se estudo que identificou a classe social dos pais como fator distal da prevalência de cárie em crianças com dentição decídua.17 As categorias de "pequena burguesia tradicional" e "proletariado" apresentaram razão de chances mais elevada que a categoria de referência ("burguesia" e "nova pequena burguesia"). No entanto, essa associação não foi selecionada para os modelos multivariados delineados, em função de outros indicadores de condição socioeconômica (renda familiar e escolaridade da mãe) terem apresentado melhor qualidade de ajuste.

DIÁLOGO DOS PARADIGMAS

Um dos paradigmas para mensuração de condições socioeconômicas valoriza a intervenção estatal e pressupõe o fortalecimento de iniciativas normativas, capazes de propiciar reposição para indivíduos e grupos prejudicados nas desigualdades sociais. O outro paradigma valoriza a liberdade individual e a capacidade humana de diferenciação positiva.

Descrever esse contraste em termos de posições de direita e esquerda não favorece a apreensão da complexidade dessa temática. Não existe correspondência imediata entre os paradigmas descritos e posições políticas consolidadas associadas a concepções ideológicas mais abrangentes. Ao empregar um ou outro paradigma, os estudiosos não estão obrigados às rotulações ideológicas e, muitas vezes, eles ampliam o escopo de suas abordagens transitando entre estratégias alinhadas aos diferentes paradigmas.

Enquanto estratégias de estratificação social, os paradigmas descritos não são mutuamente excludentes; alguma intersecção se estabelece entre eles, e isso pode ser explorado analiticamente para agregar valor explicativo aos estudos epidemiológicos. Quando se caracteriza condições socioeconômicas desiguais como meras "disparidades", não necessariamente se deixa de considerar a injustiça inerente à diferenciação entre os estratos sociais. Para caracterizar "desigualdades" em saúde que são "iníquas" ou representam "falta de eqüidade", não é necessário se furtar a classificar condição socioeconômica como diferenciação positiva. A estratégia da "liberdade" não é insensível à privação material; a estratégia da "igualdade" pode incorporar medidas de prestígio social na aferição de condição socioeconômica.

Tradicionalmente empregados em estudos de falta de eqüidade, os índices de Townsend (Townsend Material Deprivation Score) e de Carstairs (Carstairs and Morris Scottish Deprivation Score) conjugam informações de prestigio social (posse de automóvel e residência) a dados sobre trabalho e habitação.4 Esses índices, no entanto, são baseados em informações coletadas pelos recenseamentos britânicos, o que dificulta sua transposição para o cenário brasileiro. Pesquisadores associados ao paradigma da "igualdade", com diversas intervenções em prol da eqüidade, também propuseram formas de medida de condição socioeconômica baseada em prestígio social e diferenciação positiva.3

CONCLUSÕES

Condições socioeconômicas e seu impacto em saúde merecem e de fato recebem considerável atenção por parte de pesquisadores e gestores de saúde. Esse tema é abordado com ainda maior complexidade, quando se considera a imbricação de diferenciais socioeconômicos, de gênero e de grupo étnico.

Os dois paradigmas aqui discutidos não são mutuamente excludentes ou redutíveis, e sua contraposição decerto continuará animando os estudos de saúde. Deve-se estar atento para o fato de que a escolha de recursos metodológicos para a aferição do impacto das condições socioeconômicas sobre as desigualdades em saúde pode influenciar o resultado do estudo e dificultar sua comparabilidade com observações relativas a outras regiões ou períodos.

Recebido: 28/2/2007

Aprovado: 31/10/2007

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  • Correspondência:
    José Leopoldo Ferreira Antunes
    Av. Prof. Lineu Prestes, 2227
    05508-900 São Paulo, SP, Brasil
    E-mail:
  • *
    Associação Brasileira de Empresas de Pesquisas. Critério de Classificação Econômica Brasil. Disponível em:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2008

    Histórico

    • Aceito
      31 Out 2007
    • Recebido
      28 Fev 2007
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