Acessibilidade / Reportar erro

Epidemia de doença meningocócica, 1970/1977: aparecimento e disseminação do processo epidêmico

The epidemics of meningococcal disease, 1970/1977: its appearance and spread

Resumos

Estuda-se o aparecimento da epidemia de doença meningocócica e sua disseminação na Cidade de São Paulo, SP (Brasil), destacando-se a progressão no tempo (mês de início do processo) e no espaço (subdistritos e distritos). A análise dos diagramas de controle construídos a partir da experiência em anos endêmicos (1960/1969), por subdistritos e distritos da Capital, permite evidenciar a progressão da epidemia em ondas concêntricas, da periferia para as áreas centrais, a partir de janeiro de 1970. Os dados empíricos permitem mostrar a distribuição heterogênea dos casos nos diferentes segmentos da população.

Meningite meningocócica; Epidemiologia descritiva; Fatores socioeconômicos


The beginning of the epidemics of meningococcal disease and its spread within the City of São Paulo is studied with emphasis given to its advance in time (month when it began) and space (quarters and districts of the city). The analysis of the control charts that were built up from the data of the endemic years (1960 to 1969) for the quarters and districts of the city, gives evidence that the epidemics spread in concentric waves from the outskirts of the city into the central areas, and began in January, 1970. The empirical data also show that the cases were heterogeneously distributed in the different strata of the population.

Meningits, meningococcal; Epidemiology, descriptive; Socioeconomic factors


Epidemia de doença meningocócica, 1970/1977. Aparecimento e disseminação do processo epidêmico

The epidemics of meningococcal disease, 1970/1977. Its appearance and spread

Rita de Cássia Barradas Barata

Departamento de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo — Rua Dr. Cesário Motta Jr., 112 — 01221 — São Paulo, SP — Brasil

RESUMO

Estuda-se o aparecimento da epidemia de doença meningocócica e sua disseminação na Cidade de São Paulo, SP (Brasil), destacando-se a progressão no tempo (mês de início do processo) e no espaço (subdistritos e distritos). A análise dos diagramas de controle construídos a partir da experiência em anos endêmicos (1960/1969), por subdistritos e distritos da Capital, permite evidenciar a progressão da epidemia em ondas concêntricas, da periferia para as áreas centrais, a partir de janeiro de 1970. Os dados empíricos permitem mostrar a distribuição heterogênea dos casos nos diferentes segmentos da população.

Unitermos: Meningite meningocócica, incidência. Epidemiologia descritiva. Fatores socioeconômicos.

ABSTRACT

The beginning of the epidemics of meningococcal disease and its spread within the City of São Paulo is studied with emphasis given to its advance in time (month when it began) and space (quarters and districts of the city). The analysis of the control charts that were built up from the data of the endemic years (1960 to 1969) for the quarters and districts of the city, gives evidence that the epidemics spread in concentric waves from the outskirts of the city into the central areas, and began in January, 1970. The empirical data also show that the cases were heterogeneously distributed in the different strata of the population.

Uniterms: Meningits, meningococcal, occurrence. Epidemiology, descriptive. Socioeconomic factors.

INTRODUÇÃO

O contexto em que a epidemia de doença meningocócica floresce na cidade de São Paulo, é aquele da década de 70, quando o país vivia o chamado "milagre" econômico.

A quebra do modelo desenvolvimentista populista, em abril de 1964, é seguida pela instalação de um novo modelo econômico e político caracterizado pela centralização; ampliação da participação do capital estrangeiro na economia com a desnacionalização das empresas; política anti-inflacionária baseada no "arrocho salarial", diminuição, do déficit orçamentário, reforma tributária e restrição do crédito; e a criação de um novo pacto de poder que reforça e amplia os laços de dependência a nível internacional e exclui a participação política da maior parte da sociedade6,8.

Apesar do crescimento econômico vertiginoso, a política de "arrocho" salarial, a repressão política, os movimentos migratórios no sentido campo-cidade e norte-nordeste-sudeste, e o crescimento acelerado da periferia dos grandes centros urbanos compunham o pano de fundo das condições sócio-políticas e socioeconômicas favoráveis ao aparecimento e disseminação da epidemia.

Por si só, tais condições não explicam o aparecimento da epidemia, entretanto, sem elas, acreditamos que a epidemia não teria assumido o vulto que assumiu. As condições miseráveis de vida a que estavam submetidas cerca de 2/3 da população do Município de São Paulo, residentes na periferia, favoreceram a instalação e posterior difusão dos casos.

As condições de vida e trabalho a que estavam sujeitas grandes parcelas da população podem ser inferidas a partir de alguns dados disponíveis para o período que precede o aparecimento da epidemia e para os anos iniciais do processo epidêmico. Em 1970, cerca de 72% da força de trabalho, em São Paulo, era constituída por trabalhadores assalariados. Destes, 88% trabalhavam 40 horas ou mais, por semana, e 55% ganhavam menos de 2 salários mínimos, enquanto 30% ganhavam entre 2 e 5 salários mínimos3,8.

Outro dado importante para a análise desse contexto, em que o processo epidêmico se instala, é o padrão de crescimento populacional da cidade de São Paulo. No período de 1940 a 1950, a população cresceu cerca de 5,2% ao ano, sendo que o crescimento migratório representou 79% do total. Na década seguinte, o crescimento foi da ordem de 5,6% ao ano com 3,8% de crescimento migratório (68%), refletindo o intenso processo de urbanização e industrialização ocorrido na região metropolitana nessas duas décadas. Nos anos 60, o crescimento diminui um pouco, sendo de 4,5% ao ano com taxa de crescimento migratório de 2,9% (64%) ao ano3.

O intenso processo de absorção de migrantes oriundos do interior do Estado de São Paulo e dos demais Estados do país é extremamente importante na configuração dos perfis epidemiológicos, uma vez que os migrantes representam grupo particular de risco, quer seja por suas condições geralmente precárias de inserção social, quer seja pela ausência de imunidade para as doenças existentes nas grandes áreas urbanas dentre as quais, a doença meningocócica2.

O processo de surgimento da epidemia apesar de permanecer desconhecido em seus mecanismos mais íntimos certamente está relacionado a esse quadro onde se somam crescimento desordenado, pobreza e intensa exploração da força de trabalho.

O presente trabalho teve por objetivo analisar a progressão crono-espacial da doença meningocócica na cidade de São Paulo durante a epidemia a fim de desvelar a lógica do processo de disseminação nas diferentes camadas da população.

MATERIAL E MÉTODOS

O número de casos de meningite meningocócica por subdistrito no Município de São Paulo, por mês, no período de 1960 a 1975, foi obtido através de levantamento de prontuários de todos os casos suspeitos internados no Hospital Emílio Ribas e nos demais hospitais que compuseram a rede de atendimento durante a epidemia.

Para cada caso suspeito foi preenchida uma ficha pré-codificada contendo vários dados inclusive o endereço completo. Este levantamento estendeu-se ao período pré-epidêmico, de 1960 a 1969, a fim de que os diagramas de controle fossem construídos com dados obtidos segundo os mesmos critérios que aqueles utilizados para o estudo dos casos, durante o período epidêmico.

O levantamento de dados foi financiado pelo Ministério da Saúde e realizado pelo Departamento de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Os dados foram coletados por estudantes de medicina e computados pela Divisão de Informática da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Para fins do presente trabalho utilizamos algumas das informações colhidas naquele levantamento: o diagnóstico definitivo, a data de internação e o local de residência.

Foram considerados casos de doença meningocócica aqueles que preenchessem uma das seguintes condições: contra-imunoeletroforese do líquor positiva para meningococo A, B, C, X, Y, ou outro; cultura do líquor positiva para meningococo; bacterioscopia do líquor positiva para Diplococcus Gran negativo; citológico do líquor apresentando aumento do número de células com predomínio de neutrófilos associado a quadro clínico de exantema petequial e toxemia com início abrupto; líquor purulento associado a exantema petequial e toxemia de início súbito; necrópsia mostrando necrose de supra-renais; quadro clínico compatível com meningococcemia.

A data de internação foi utilizada como indicativa do início do caso. Tendo em vista o curto período de incubação da doença (1 a 3 dias) considerou-se adequada sua aproximação.

Os casos com diagnóstico de doença meningocócica foram classificados, por meio de endereço, segundo subdistritos e distritos do Município de São Paulo. O subdistrito foi escolhido como unidade de classificação por ser a menor unidade territorial para a qual dispomos de informação relativa à população.

A distribuição dos casos em distritos e subdistritos foi feita partindo-se da informação de endereço constante do prontuário e verificando-se em um mapa (Geomapas, 1973) a localização do mesmo. Quando não foi possível a localização da rua referida adotou-se o bairro indicado para proceder-se à classificação. Nesses casos utilizamos a relação de bairros da Prefeitura Municipal de São Paulo. Quando nem o bairro era localizado aceitávamos a informação do subdistrito ou distrito existente no prontuário. Finalmente, quando nenhuma classificação era possível considerávamos o endereço ignorado.

Para verificar em que momento se deu o início da incidência epidêmica em cada subdistrito procedemos à construção de diagramas de controle adotando em sua construção a distribuição normal.

Os cálculos para a construção dos diagramas foram feitos por processamento eletrônico (HP 68/10), no Centro de Informações da Saúde da Secretaria de Estado da Saúde.

Na verificação da incidência epidêmica surgiu um problema relativo àqueles subdistritos com populações pequenas em cujo período pré-epidêmico praticamente não ocorreram casos de doença meningocócica. Para esses locais, um aumento pequeno no número de casos já se configura epidêmico. Sendo assim, observamos que durante um ou dois meses a incidência era epidêmica retomando em seguida, ao normal, durante alguns meses.

No sentido de caracterizar a progressão da epidemia em ondas, consideramos como início da mesma, não a primeira incidência fora dos limites do diagrama mas o momento em que a incidência se mostrou epidêmica sem retorno imediato à faixa de flutuação endêmica.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A heterogeneidade das condições de vida da população de São Paulo, no início da epidemia, pode ser constatada por alguns indicadores elaborados pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE), para as zonas central, intermediária e periférica da cidade.

Há diferenças marcantes com relação, principalmente, à mortalidade infantil, à taxa de crescimento populacional anual, à percentagem de prédios com água encanada e esgoto e à percentagem de famílias com renda superior a 10,68 salários mínimos.

Por trás da distribuição geográfica adotada escondem-se as diferenças, de classes social. Desta diversidade de formas de inserção social decorrem diferentes perfis epidemiológicos de classes que, em última instância, irão se traduzir em diferentes riscos de adquirir doenças resultando em certos padrões de distribuição1,4,5,7.

A distribuição da doença meningocócica pelas áreas central, intermediária e periférica reflete, grosso modo, os padrões heterogêneos de sua ocorrência em São Paulo (Tabela).

Os dados mostram que apesar da epidemia atingir fortemente todas as áreas da cidade, as áreas mais pobres, representadas pelos subdistritos e distritos da periferia, sempre apresentam riscos mais altos comparativamente às áreas central e intermediária.

Entretanto, é interessante notar que os aumentos relativos, na incidência, são menores na área periférica do que nas áreas central e intermediária. Este fato, talvez, esteja relacionado com o fenômeno de imunidade de massas, isto é, as populações da área periférica, por terem contatos mais freqüentes com o meningococo (incidência bem maior no período endêmico) sofrem, relativamente menos, o impacto da epidemia, enquanto as áreas central e intermediária mostram-se mais vulneráveis exatamente pela menor experiência com a doença. De qualquer sorte, as maiores incidências são encontradas nos bairros periféricos.

Chama a atenção ainda, o forte aumento de incidência observado em todas as áreas, do ano de 1973 para o ano de 1974, correspondendo à superposição de duas ondas epidêmicas; aquela provocada pelo meningococo C que vinha crescendo desde 1970 e a produzida pelo meningococo A a partir de 1974, assumindo caráter explosivo. O meningococo A que apresenta maior infectividade e maior patogenicidade do que o meningococo C, produziu assim uma verdadeira explosão de casos em todas as áreas da cidade.

A falsa suposição, freqüentemente difundida de que a doença meningocócica incide "democraticamente" entre ricos e pobres precisa ser revista. Se é verdade que tanto ricos quanto pobres são atingidos por ela, também é verdade que não são afetados com a mesma intensidade ou com a mesma velocidade.

Em 1970 a área central apresentava taxa anual de crescimento populacional de 1,31% ao ano, renda média mensal de 10 a 12 salários mínimos e 3,6 habitantes por domicílio. A área intermediária que inclui alguns bairros antigos e em franco processo de deterioração apresentava crescimento de 0,67% ao ano (vários subdistritos com crescimento negativo), renda média mensal de 6,8 a 8,0 salários mínimos e 4,1 habitantes por domicílio. Finalmente, a periferia tinha crescimento anual de 7,65%, renda média mensal de 3 a 4 salários mínimos e 4,4 habitantes por domicílio2.

Há, portanto, correspondência direta entre a incidência de doença meningocócica e número de habitantes por domicílio segundo as áreas consideradas, e indireta entre a incidência e a renda mensal média nas mesmas áreas. Sabendo que a aglomeração intradomiciliar é fator importante na facilitação do mecanismo de transmissão para as doenças de transmissão respiratória por contato direto, em geral, a diferença de aproximadamente um habitante por domicílio, existente entre a área central e periférica, poderia ser considerada relevante na explicação do maior risco verificado nessa última. Além disso, vale lembrar que as dimensões dos domicílios existentes na periferia e na área central são bastante diversos, devendo haver, conseqüentemente, aglomeração ainda maior, se consideramos o número de pessoas por dormitório ou por área construída.

A taxa de crescimento nas diferentes áreas pode nos fornecer uma pista para compreender como os aumentos relativos podem ser maiores nas áreas central e intermediária, embora as mais altas taxas de incidência ocorram na periferia. Para tanto é necessário aliar a compreensão teórica do fenômeno de imunidade de massas, de um lado, ao crescimento maior ou menor da população exposta. Assim, se por um lado os habitantes da periferia têm maior experiência prévia com a doença, eles também apresentam um crescimento alto, resultante do intenso fluxo migratório que fornece grandes quantidades de expostos, o que irá se refletir em altos coeficientes de incidência. As áreas centrais, com um crescimento bem menor e pouca experiência prévia com a doença, apresentam coeficientes de incidência mais baixos e aumentos relativos maiores. As áreas intermediárias, que apresentam as menores taxas de crescimento e experiência prévia semelhante a das áreas centrais, mostram coeficientes de incidência e aumentos relativos maiores do que os da área central, provavelmente pela existência, em grande número, de habitações coletivas em subdistritos mais velhos.

O aparecimento da epidemia não se dá de modo simultâneo no município como um todo. Seu surgimento e posterior propagação "obedece a certa lógica" que deve refletir o modo social de produção do processo epidêmico.

Nossa hipótese é que as populações submetidas às condições de vida piores devem apresentar incidência epidêmica mais precocemente do que aquelas com melhores condições de vida.

Na zona sul o processo iniciou-se em maio de 1971 no subdistrito de Santo Amaro progredindo em direção a subdistritos contíguos. O distrito de Parelheiros foi o último a ser atingido, cerca de 36 meses após. Este distrito apresenta densidade populacional baixa (316 hab/km2), comparativamente aos demais, e características rurais, o que poderia explicar haver sido afetado apenas em outubro de 1974.

Após 6 meses do início, a epidemia irrompe em São Miguel Paulista, na zona leste. Aí a progressão também se faz para os subdistritos e distritos contíguos sendo que o último subdistrito, a Penha só foi afetado após 21 meses.

A zona norte apresentou incidências epidêmicas 13 meses após o início na zona sul e 7 meses após o início na zona leste. Aqui a onda epidêmica apareceu simultaneamente em Santana e Tucuruvi, avançando sobre os subdistritos vizinhos, cobrindo todos eles em 19 meses.

Na zona oeste, a epidemia apareceu 25 meses após seu surgimento na zona sul apesar da proximidade geográfica entre elas. Os primeiros subdistritos afetados foram Lapa e Pirituba. A progressão levou 10 meses, sendo o distrito de Perus o último a ser atingido. Relativamente os distritos de Perus e Jaraguá apresentavam densidades populacionais menores, 487 e 581 hab/km2, respectivamente.

A última área a ser atingida foi o centro expandido. O primeiro subdistrito a apresentar incidência epidêmica foi a Liberdade em setembro de 1973, isto é, 28 meses após o início da zona sul, 22 meses após o aparecimento na zona leste, 15 meses após o início na zona norte e 3 meses após o início na zona oeste. A maioria dos subdistritos foi atingida somente em 1974 durante o acme da epidemia. A progressão na zona central levou apenas 11 meses.

É interessante notar como à medida que a "onda" epidêmica se espalha, foram encurtando os intervalos de tempo entre o acometimento do primeiro distrito ou subdistrito e o último, em cada zona. Tratando-se de doença de transmissão respiratória podemos supor que houve aumento progressivo do número de portadores à medida que o processo foi disseminado, tornando cada vez mais freqüentes os contatos entre portadores e susceptíveis.

Para facilitar a visualização da progressão espacial construímos cartogramas semestrais, para o período de janeiro de 1971 a dezembro de 1974, onde, por semestre, estão representados os subdistritos e distritos afetados, e a direção da progressão da onda epidêmica. (Figs. 1-8).


No primeiro semestre considerado, apenas o subdistrito de Santo Amaro apresentou incidência epidêmica. No segundo nota-se a progressão da epidemia na zona sul e seu início na zona leste. O terceiro mostra o prosseguimento do processo nas duas zonas já citadas e seu início na zona norte continuando a progressão no quarto semestre. O início da epidemia na zona oeste pode ser visto no quinto semestre e na zona central no sexto. Ao final do período, julho a dezembro/1974, todo o Município de São Paulo encontrava-se tomado pela epidemia.

Da observação, ainda que estática desses cartogramas, é possível apreender que a partir de pontos extremos na periferia (excluindo-se distritos predominantemente rurais), a epidemia foi-se espalhando, geralmente em ondas concêntricas.

Esse padrão de distribuição temporal espacial, que a epidemia apresentou, mostra, a relação entre as condições sociais de existência e a determinação dos padrões epidemiológicos de ocorrência de doenças. Afetando, inicialmente, as áreas de maior concentração da pobreza (quantitativa e qualitativamente) e, por último, as áreas onde as condições de vida são, em média, melhores, ou onde a baixa concentração de habitantes — por exemplo no subdistrito da Sé — constituiu um obstáculo à sua disseminação, a epidemia de doença meningocócica segue um traçado nada casual.

Na presente análise não podemos omitir um fato que pode obscurecer a relação entre condições de vida e produção de doença. Trata-se da distribuição heterogênea das classes e frações de classe, bem como das doenças dentro de cada subdistrito. Embora haja subdistritos e distritos relativamente homogêneos com relação às frações de classe que os habitam, muitos apresentam composição bastante heterogênea.

Para o Município de São Paulo, como um todo, a incidência foi epidêmica a partir de abril de 1971. Se consideramos a primeira incidência epidêmica em cada distrito e subdistrito, mesmo que a seguir ela tenha retornado aos níveis endêmicos temporariamente, em abril de 1971, cerca de 31 distritos e subdistritos já haviam apresentado número excessivo de casos, pelo menos durante um mês.

Já em janeiro de 1970, 4 subdistritos apresentaram incidência epidêmica para a doença meningocócica.

Na zona sul os primeiros subdistritos a apresentarem excesso de casos foram Santo Amaro e Ibirapuera. Em 25 meses todos os distritos e subdistritos apresentaram incidência anormal, sendo que o último distrito a ser afetado foi novamente Parelheiros.

Na zona norte, o primeiro subdistrito a apresentar a epidemia foi o Tucuruvi e o último novamente a Vila Guilherme que só foi afetada após 29 meses.

Na zona oeste, o processo apareceu inicialmente em Pirituba. O último subdistrito a ser atingido foi o de Vila Taguara, 19 meses depois.

Na zona leste, o primeiro subdistrito com incidência epidêmica foi Cangaíba, seguindo-se os demais em 24 meses. O último subdistrito a apresentar incidência excessiva foi a Vila Prudente.

No centro, a epidemia manifestou-se inicialmente no subdistrito de Vila Mariana e em 30 meses os demais subdistritos também apresentaram excesso de casos. O último subdistrito a apresentar a epidemia foi o Bom Retiro.

Essas incidências epidêmicas iniciais se apresentam como "manchas" que vão se alastrando nas diferentes zonas até tomar todo o município. Os subdistritos e distritos cuja primeira incidência epidêmica ocorreu no ano de 1970, tinham, em média, taxa de crescimento anual de 4,1% e densidade de 10.208 hab/km2. Naqueles em que a incidência anormal ocorreu em 1971, a taxa de crescimento anual foi de 4,2% e a densidade demográfica 9.325 hab/km2. Finalmente, os que apresentaram valores epidêmicos apenas em 1972 tinham taxa de crescimento anual de 3,4% e densidade demográfica de 6.965 hab/km2. Aparentemente houve relação inversa entre a taxa de crescimento e a densidade demográfica e o fato de a primeira incidência epidêmica haver sido mais ou menos precoce. Esta relação só se verifica com as medias, não havendo a mesma correspondência quando cada distrito ou subdistrito é analisado separadamente.

O intervalo entre o primeiro mês com incidência epidêmica e a instalação definitiva da epidemia, sem retorno aos valores endêmicos, variou de 4 a 53 meses, para o subdistrito de Jabaquara e de Vila Mariana, respectivamente.

Com intervalos entre 4 e 12 meses estavam os subdistritos do Jabaquara, Vila Prudente, Saúde e Vila Maria e os distritos de São Miguel Paulista e Itaquera. Esses locais apresentavam renda média mensal de 4,8 salários mínimos, crescimento anual de 8,6% e 8.178 hab/km2; valores estes que sugerem intenso crescimento populacional, provavelmente, às custas de migrações, alta concentração populacional com provável aglomeração intradomiciliar e renda baixa. Todos esses fatores aliados às más condições de vida e ao fato de pertencerem à área periférica poderiam facilitar a propagação mais rápida da epidemia.

Entre 13 e 24 meses de intervalo ficaram os subdistritos de Capela do Socorro, Vila Matilde, Santo Amaro, Butantã, Ipiranga, Tatuapé, Santana e Bom Retiro e o distrito de Ermelino Matarazzo. Essas localidades tinham renda média mensal de 4,4 salários mínimos, crescimento anual de 7,3% e densidade demográfica de 6.452 hab/km2. Neste grupo, a renda foi inferior a do grupo anterior assim como a taxa de crescimento e a densidade que, entretanto, apresentaram valores bem altos. Estão incluídos naquele grupo, 4 subdistritos da área periférica e 4 da área intermediária.

O intervalo de 25 a 36 meses foi observado em 17 locais sendo 5 da área central, 5 da área intermediária e 7 da área periférica. A renda média mensal dessas localidades era de 5,8 salários mínimos, crescimento anual de 2,9% e densidade 9.469 hab/km2. Este grupo tinha, portanto, renda média maior do que os anteriores e crescimento bem menor. A densidade maior deve estar refletindo predomínio de edifícios nas áreas centrais.

Entre 37 e 48 meses estavam os intervalos observados em 19 localidades. Destes, 8 eram da área central, 4 da intermediária e 7 da periférica. Para essas localidades a renda média era de 7,2 salários mínimos, o crescimento anual 2,7% e a densidade demográfica 10.356 hab/km2. Novamente observa-se renda maior que nos grupos anteriores, crescimento menor e densidade maior.

Finalmente, entre 49 e 53 meses encontraram-se 4 subdistritos: Bela Vista (área central), Vila Mariana (área intermediária), Limão e Vila Nova Cachoeirinha (área periférica). Neste grupo a renda média mensal era de 6,6 salários mínimos, o crescimento anual de 1,7% e a densidade 14.679 hab/km2.

Das variáveis disponíveis, a única que revelou relação inversamente proporcional, constante, com a duração do intervalo foi a taxa de crescimento, sugerindo que nas localidades onde o crescimento populacional foi mais acelerado, o "estoque" de susceptíveis era maior, facilitando a disseminação da doença. Com exceção do primeiro e do segundo grupos, nos demais a densidade demográfica mostrou-se diretamente proporcional à duração do intervalo. Para compreender tal relação é necessário lembrar que na transmissão das doenças respiratórias a aglomeração intradomiciliar é importante e poderia ser avaliada pelo número de pessoas por dormitório.

A densidade demográfica, embora retrate a concentração especial das pessoas, pode estar refletindo a presença predominante de edifícios de apartamento em várias áreas, sem com isso estar implicando maior aglomeração domiciliar.

A despeito das limitações que os dados registrados, assim como as informações censitárias e de eventos vitais impõem a uma análise que busque tornar clara a determinação social na produção e distribuição das doenças, permitem demonstrar, ainda que de forma pouco precisa, as desigualdades existentes na distribuição das doenças e suas relações com indicadores indiretos (ainda que insuficientes) das condições de classe.

Se quisermos apreender o fenômeno da determinação social na produção e distribuição das doenças e, em especial, nas situações epidêmicas, teremos que proceder a levantamentos de campo, utilizando categorias de análise que permitam trabalhar realmente com o conceito de classe.

De qualquer modo, resta o problema da caracterização da população, segundo as classes sociais, o que está longe de ser conseguido nas estatísticas oficiais.

No caso de epidemias, a complexidade de fatores envolvidos torna difícil a compreensão do fenômeno na sua intimidade. Entretanto, é possível tornar evidente as desigualdades na distribuição, seja quanto à magnitude dos coeficientes de incidência, seja quanto à precocidade de aparecimento da epidemia, seja quanto à rapidez com que o processo evolui nos diversos grupos populacionais.

Acreditamos que se fosse possível estudar o aparecimento e a difusão da epidemia segundo as classes sociais que compõem a sociedade, estas diferenças seriam ainda mais evidentes.

CONCLUSÕES

1 — A epidemia não se distribuiu homogeneamente pelos diferentes segmentos da população da cidade de São Paulo.

2 — O início do processo epidêmico na cidade de São Paulo foi em abril de 1971, entretanto, se considerarmos os distritos e subdistritos, a primeira incidência epidêmica ocorreu em janeiro de 1970.

3 — A epidemia progrediu em ondas concêntricas da periferia para a área central da cidade levando, nesse processo, cerca de 25 meses.

4 — Uma vez iniciado o processo, a progressão nas zonas da cidade se fez cada vez mais rapidamente.

5 — A epidemia teve início na zona sul, surgindo a seguir na zona leste, norte, oeste e finalmente atingindo o centro expandido.

Recebido para publicação em: 5/8/1987

Aprovado para publicação em: 14/10/1987

  • 1. BREILH, J. & GANDRA, E. Investigacion de la salud en la sociedad. Quito, Centro de Estudios y Asesoria en Salud, 1980.
  • 2. CARVALHEIRO, J. R. Processo migratório e disseminaçăo de doenças. In: Textos de Apoio: Cięncias sociais 1. Rio de Janeiro, Programa de Educaçăo Continuada da Escola Nacional de Saúde Pública/Associaçăo Brasileira de Pós-Graduaçăo em Saúde Coletiva, 1983. p. 29-55.
  • 3
    COMISSÃO JUSTIÇA E PAZ DA ARQUIDIOCESE DE SAO PAULO. São Paulo: crescimento e pobreza. São Paulo, Ed. Loyola, 1975.
  • 4. DONNANGELO, M. C. F. Saúde e sociedade. Săo Paulo, Ed. Duas Cidades, 1976.
  • 5. LAURELL, A. C. A saúde-doença como processo social. In: Nunes, E. D. Medicina social: aspectos históricos e teóricos. Săo Paulo, Global Ed., 1983.
  • 6. LUZ, M. T. As instituiçőes médicas no Brasil. Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1979.
  • 7. POLACK, J. C. La medicina del capital. Madrid, Editorial Fundamentos, 1971.
  • 8. SINGER, P. A crise do milagre. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1976.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2004
  • Data do Fascículo
    Fev 1988

Histórico

  • Aceito
    14 Out 1987
  • Recebido
    05 Ago 1987
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo Avenida Dr. Arnaldo, 715, 01246-904 São Paulo SP Brazil, Tel./Fax: +55 11 3061-7985 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revsp@usp.br