Acessibilidade / Reportar erro

Varíola e erradicação?

EDITORIAL

Varíola e erradicação?

Oswaldo Paulo Forattini

Professor Catedrático do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da USP

Não há dúvidas que, dentre os acontecimentos marcantes deste século, avulta aquele representado pela erradicação da varíola, o "mais terrível flagelo da espécie humana" no dizer da interessante resenha de Fenner (1984). Atingido que foi o objetivo proposto, e que ocorreu após a execução de memorável campanha, o resultado foi oficialmente reconhecido pela Assembléia Mundial da Saúde, em maio de 1980. Decorridos pois cinco anos, durante os quais a vacinação, não apenas deixou de ser obrigatória mas foi enfaticamente contra-indicada, torna-se oportuna reflexão sobre esse assunto e, em especial modo, a respeito do que se entende por erradicação como prática a ser seguida em saúde pública. Com efeito, erradicar, desarraigar ou desenraizar, significa não menos do que "tirar inteiramente", o que implica como resultado final a não mais existência possível daquilo que existia ou poderia existir. No caso supracitado, a varíola, afinal o único agravo à saúde humana que, até o momento, foi teoricamente erradicado a nível mundial.

É de convir que, em se tratando de infecções, a erradicação reveste-se do significado de extinção artificial de, pelo menos, uma das populações envolvidas, de preferência a do agente infeccioso. No caso em pauta, o resultado obtido implicou que a população do poxvirus variólico deixou de fazer parte de nossa biosfera, à semelhança das de outras espécies que se extinguiram em decorrência da atividade humana. Face a isso, surgem questões a serem levadas em conta e que deveriam nortear a subseqüente vigilância. Se, como se admite, o agente não mais existe no meio natural, impõe-se considerar razões de ordem social e política que contribuiriam para eventualmente o mesmo não ocorrer em relação ao ambiente humano. É bem verdade que a primeira premissa, tida sempre como verdade inconteste, nunca obteve comprovação. E é de se duvidar que a venha a ter, uma vez que vários poxvirus animais poderiam, pelo menos sob o ponto de vista teórico, se tornarem candidatos ao nicho deixado vacante por aquele que se tinha adaptado ao organismo humano. Não se trata porém de dedicar estas linhas a esse aspecto, já abordado por Candeias (1980) neste mesmo periódico. Admitamos pois, a não existência do virus variólico na natureza, ao menos de maneira detectável. O mesmo porém não se pode categoricamente afirmar em relação ao ambiente artificial.

É sabido que, por razões de ordem técnica e, porque não dizê-lo, também de natureza política, o virus vem sendo mantido em alguns laboratórios, adrede para isso destinados. Por outro lado, surgem aspectos curiosos. Assim, levanta-se a possibilidade de risco para arqueólogos e pessoas em geral que, por força de suas atividades profissionais, se vejam na contingência de manipular restos humanos de vítimas da doença e onde o agente poderia permanecer viável por considerável espaço de tempo (Meers, 1985). Chega-se mesmo a argumentar, a partir da constatação de possíveis lesões na múmia do faraó Ramses V, da conveniência de, pelo menos por certo tempo, os profissionais em escavações fossem submetidos à vacinação preventiva (Zuckerman, 1984). Mas, o que é mais preocupante, é o fato de a recomendação que visa interromper a aplicação da vacina antivariólica, não esteja sendo uniformemente seguida pelos Estados membros da Organização Mundial da Saúde. E, em especial modo, isso tem se verificado no que tange ao pessoal militar. Em informação recente, a Comissão especialmente designada, refere que oito países acolheram a recomendação e anunciaram terem interrompido a vacinação de suas forças armadas. Obviamente, não é necessário dizer que nenhuma das duas atuais superpotências figura da lista (WHO, 1984). Dessa maneira, só restou à Comissão recomendar que os recrutas recém-vacinados fossem submetidos a isolamento de, pelo menos, duas semanas, confinados em suas bases. Com isso pretende-se impedir o contato com pessoas não vacinadas e assim diminuir o risco de propagação do virus vacínico. Como se pode ver, deve-se admitir que, a despeito de considerada erradicada, a presença potencial da varíola não pode ser ignorada.

Tais aspectos, que atualmente se observam após campanha mundial de erradicação, levam inevitavelmente a ponderações que essa experiência permite. Conseguiu-se erradicar uma doença, no caso a varíola, mas não o agente infeccioso. E, neste exemplo particular, não por razões outras que as decorrentes do próprio comportamento humano. Este aliás, eivado de incongruências. Argumenta-se que a política de erradicação se justificava face aos custos requeridos pelas medidas de quarentena e de vacinação dos viajantes. No entanto, é difícil imaginar que eles pudessem ser mais elevados do que os gastos cada vez maiores em armamentos e manutenção de poderosos exércitos. É de se acreditar que, ao menos teoricamente, seria muito mais fundamentado erradicar os agravos e ameaças decorrentes do comportamento humano, do que as conseqüentes à presença de outras populações de nossa biosfera. Que maior absurdo do que, ao lado de termos livrado a humanidade da "ameaça" da varíola, termos de enfrentar a ameaça do "inverno atômico"? E a tal ponto, de estarem sendo levados a efeito pela Academia Nacional de Ciências dos EUA estudos destinados a estimar o risco conseqüente à detonação de 25.000 bombas atômicas com 6.500 megatones de poder explosivo (Kerr, 1985). Eis aí ameaças que realmente poderiam ser erradicadas. E com muito maior fundamento teórico de sucesso. Não há como deixar de admitir, em sã consciência, que são os agravos à saúde decorrentes do próprio homem que deveriam merecer atenção prioritária para pretensas campanhas de erradicação. A lista é numerosa. Nela pode-se incluir a morbidade e a mortalidade conseqüentes da agressividade, do uso de drogas, do fumo, da competição selvagem intrassocial, a fome, da infância abandonada, do analfabetismo e da ignorância, do consumismo, da deterioração dos valores e da auto-estima, da degradação do ambiente e de muitos outros.

Pensar em erradicação quando se pretende resolver problemas de saúde pública decorrentes da presença de doenças infecciosas, implica obrigatoriamente levar em conta, não apenas o comportamento do homem, mas também o de outras populações envolvidas. Estas, certamente tratarão de sobreviver e, salvo melhor juízo, ao invés de extingui-las melhor seria com elas conviver de maneira pacífica. O exemplo da poliomielite é bem sugestivo, chegando-se ao estado vantajoso da população humana poder conviver com algumas populações de virus adequadamente domesticadas.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CANDEIAS, J.A. O que dizer da erradicação mundial da varíola? Rev. Saúde públ., S. Paulo, 14:427-38, 1980.

FENNER, F. Smallpox, "the most dreadful scourge of the human species". Its global spread and recent eradication. Med. J. Australia, 141: 728-35; 841-6, 1985.

KERR, R. A. Nuclear winter won't blow away. Science, 228:163, 1985. MEERS,P.D. Smallpox still entombed? Lancet, 1:1103, 1985.

SMALLPOX. Post-eradication surveillance. Vaccination policy. Wkly Epidemiol. Rec., 59: 278,1984.

ZUCKERMAN, A.J. Palaentology of smallpox. Lancet, 2:1454, 1984.

O arquivo disponível sofreu correções conforme ERRATA publicada no Volume 19 Número 6 da revista.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Set 2005
  • Data do Fascículo
    Out 1985
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo Avenida Dr. Arnaldo, 715, 01246-904 São Paulo SP Brazil, Tel./Fax: +55 11 3061-7985 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revsp@usp.br