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A poliomielite e seus enigmas

Poliomyelitis enigmas

EDITORIAL

A poliomielite e seus enigmas

Poliomyelitis enigmas

Oswaldo Paulo Forattini

Quando da passagem do século, e do primeiro quartel do atual, ocorreram surtos de poliomielite na Europa e nos Estados Unidos da América do Norte, cuja dramaticidade despertou a atenção dos pesquisadores. E de tal maneira que se pode dizer, sem grande risco de elaborar em erro, ser essa a virose que mais foi objeto de estudos epidemiológicos. Como decorrência, estabeleceu-se quadro aceito amplamente e transformado em verdadeiro "dogma" o qual, na feliz abordagem de Nathanson e Martin, é considerado como o traço característico da epidemiologia dessa doença. Tal seria o conjunto dos aspectos invocados para explicar o desencadeamento epidêmico e a subseqüente evolução para o estado hiperendêmico. De maneira essencial, são eles representados pelo aumento, com a idade, da relação casos/infecções, e pelo consenso de que, em alguma época da vida, todos os indivíduos se infectam. Daí a conseqüente influência da distribuição etária das primo-infecções sobre a incidência anual dos casos paralíticos. E, com aspecto tão relevante que dela se originou a expressão "paralisia infantil" para designar o quadro clínico que suas conseqüências determinam. Por sua vez, as feições relativas à incidência têm sido observadas como tendo certa regularidade sazonal e irregularidade na tendência secular, pelo menos no que concerne aos episódios epidêmicos. Contudo, conquanto tais aspectos possam ter sido considerados como característicos, na verdade não resistem a análises mais detalhadas, uma vez que não chegam a explicar todos os fenômenos observados. Os estudos levados a efeito em países economicamente desenvolvidos, têm revelado, entre outras coisas, que a doença tende a se deslocar nos grupos etários atingindo, nas sucessivas epidemias, prevalência em grupos de idades cada vez maiores. Bem assim são as variações temporais que nem sempre encontram nos fatores climáticos e sociais, explicações satisfatórias.

Com o advento e ampla utilização da vacina, chegou-se à eliminação do problema em várias regiões o que, por sua vez, também fez surgir outros enigmas. Dentre eles destaca-se o resultado obtido nos EUA onde a doença pôde ser considerada eliminada embora o alcance do programa de imunização não tivesse ultrapassado a 90% da população infantil. Admite-se, inclusive, que na situação atual desse país, a poliomielite autóctone encontre-se erradicada, e os raros casos registrados, ou são importados ou são relacionados ao vírus vacinal. Assim sendo, torna-se necessário explicar porque, em havendo parcela populacional que não se encontra imunizada pela vacinação, deixou de existir o estado de endemia. Tem-se aventado a hipótese da ocorrência do possível efeito de imunidade grupal ("herd immunity") com conseqüente desaparecimento do vírus selvagem. Outra explicação residiria na possível disseminação do vírus vacinal substituindo àquele, com os mesmos resultados. Admite-se que, ainda nesse país, o contingente de suscetíveis, que era de cerca de 22% da população total em 1955, caiu para o redor de 5% em 1978. Assim, essa redução drástica do "terreno" disponível pode ter inviabilizado a sobrevivência da população viral. Trata-se, pois, de assunto a ser estudado, talvez à luz dos comportamentos da incidência como a variação estacional e das condições sócio-econômicas.

De maneira geral pondera-se que, na atualidade, a incidência de paralisia em alguns países "em desenvolvimento", seja comparável à observada por ocasião das piores epidemias que ocorreram nos "desenvolvidos". Tais ponderações vêm a propósito do recente programa de campanhas de vacinação em massa, posto em execução pelo Ministério da Saúde, em meados de 1980. Não sendo o Brasil considerado país economicamente desenvolvido, mas sim rotulado como pertencente àqueles, o combate à poliomielite em seu âmbito apresenta problemas mútiplos que necessitam consideração. As peculiaridades regionais, extremamente variáveis, tornam bastante difícil o emprego de metodologia uniforme, obrigando a estudos prévios para aquilatar feições locais de importância. Deixando de lado a problemática logística, pode-se exemplificar com a variação das correntes migratórias, que agem como fatores poderosos de injeção contínua do vírus e de suscetíveis em certas áreas. Por essas e outras razões, no caso da cidade de São Paulo, recomenda-se a continuada cobertura vacinal da população infantil, mediante programas de imunização intensivos e sistemáticos, como bem assinalam Barbosa e Stewien. Para outros países, em situação análoga à nossa, têm-se recomendado o aumento na potência das vacinas utilizadas, no número de doses, que passariam de três para cinco, e mesmo o uso sucessivo de vacinas monovalentes.

De qualquer maneira, é de se atentar para os aspectos ecológicos da vacinação em massa e que não diferem essencialmente do aspecto geral da luta pela sobrevivência. Sob esse ponto de vista, seu significado consiste na substituição de população viral selvagem por outra, domesticada. Bem assim como o homem, no decurso de sua evolução cultural, domesticou animais e plantas selvagens, para poder utilizá-los em proveito próprio, a população humana passaria a conviver em harmonia com vírus poliomielíticos domesticados, que é o nome que se pode dar aos chamados vírus vacinais. Sem excluir a possibilidade de, no futuro, ambas as populações, humana e viral, auferirem mútuas vantagens desse convívio, no que concerne às respectivas possibilidades de sobrevivência na face da terra. Nesse sentido, parece não haver dúvidas de que esse caminho é viável. Em recente trabalho, John, Joseph e Vijayarathnam verificaram que, em pequena vila da Índia, foi possível obter soroconversão mediante vacinação em massa de crianças com três doses, mensalmente intervaladas, de vacina com baixa potência. Esse efeito foi assim obtido após a aplicação abrangente em curto espaço de tempo, ou seja, com a técnica que se poderia denominar de imunização compacta ("cluster immunization"), e foi atribuído à instalação entérica do vírus de maneira súbita, propiciando infecção total. Esta experiência vai ao encontro da conceituação das campanhas de vacinação em massa, visando a implantação dos vírus vacinais na comunidade. Nesse particular, os técnicos do Ministério da Saúde poderiam considerar o melhor meio de alcançar esse objetivo para o Brasil, levando em consideração o fator tempo para a execução de seu programa. De qualquer maneira, é de se pensar que estejam no caminho certo.

Claro está que ainda o nosso país se encontra bem longe da situação alcançada pelos "desenvolvidos". Todavia, tanto nestes como aqui, a poliomielite continuará a desafiar a saúde pública com seus enigmas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

– NATHANSON, N. & MARTIN, J. R. The epidemiology of poliomyelitis: enigmas surrounding its appearance, epidemicity, and disappearance. Amer. J. Epidem., 110:672-92, 1979.

– JOHN, T. S., JOSEPH, A. & VIJAYARATHNAM, P. A better system for polio vaccination in developing countries Brit. med. J., 281:542, 1980.

– BARBOSA, V. & STEWIEN, K. E. Aspectos de importância para a vigilância epidemiológica da poliomielite na cidade de São Paulo, Brasil. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 14:557-68, 1980.

– MINISTÉRIO DA SAÚDE. Algumas considerações sobre o vírus da poliomielite e suas vacinas. Bol. epidem., 12(3) 1980.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Abr 1981
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