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Dimensão social da ocorrência das doenças: I - positividade da reação de Machado-Guerreiro em convocados para o serviço militar no Estado de São Paulo (Brasil), de 1972 a 1975

The social dimension of the occurrence of disease: 1 - the positiveness of reaction to Machado-Guerreiro tests among draftees in the state of S. Paulo, 1972 - 1975

Resumos

São destacados, diante da série histórica levantada, os valores elevados dos coeficientes de positividade da reação de Machado-Guerreiro entre convocados apresentados na Capital de São Paulo (Brasil), onde não é referida a ocorrência de transmissão de Chagas. Esses valores atingem, inclusive, níveis superiores aos dos convocados apresentados no Interior, onde existem áreas endêmicas. O estudo evidenciou a participação de migrantes, infectados nos locais de origem, na determinação dos níveis de positividade, especialmente da Capital de São Paulo. Esses dados ressaltariam o envolvimento de fatores sociais no condicionamento da ocorrência e distribuição da doença ao nível populacional.

Tripanossomíase americana; Fatores sócio-econômicos


Study of a historical series survey showed the coefficients running into high numbers indicating the positiveness of the Machado-Guerreiro reaction among army draftees called to service in the city of S. Paulo. Attention is called to the fact taht these figures are higher that those found among army draftees called to service in the hinterland where, paradoxally, the endemic areas exist. As the existence of Chagas transmission in the city of S. Paulo has not been reported, its occurrence can be ascribed to the coming of migrants infected in the areas they come from. Study of the place of origin of young draftees brought evidence which sustains this hypothesis. These data emphasize the presence of social factors in determining the occurrence and distribution of the disease in the community.

Tripanosomiasis, South American; Socioeconomic factors


Dimensão Social da ocorrência das doenças. I — Positividade da reação de Machado-Guerreiro em convocados para o serviço militar no Estado de São Paulo (Brasil), de 1972 a 1975* * Apresentado ao XIX Congresso Brasileiro de Higiene. São Paulo, 1977.

The social dimension of the occurrence of disease. 1 — The positiveness of reaction to Machado-Guerreiro tests among draftees in the state of S. Paulo, 1972 — 1975

Paulete GoldenbergI; Mauro Batista de MoraisII; Mariangela CainelliII; Caio Augusto de Souza NeryII; Antônio Fernando MoronII; Antonio Sergio NioniI; Antonio Sergio TebexreniII; Francisco Filhou JoséII; Sergio KhouriII; Magid IunesI

IDo Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina — Rua Botucatu, 720 — 04023 — São Paulo, SP — Brasil

IIAcadêmicos da Escola Paulista de Medicina

RESUMO

São destacados, diante da série histórica levantada, os valores elevados dos coeficientes de positividade da reação de Machado-Guerreiro entre convocados apresentados na Capital de São Paulo (Brasil), onde não é referida a ocorrência de transmissão de Chagas. Esses valores atingem, inclusive, níveis superiores aos dos convocados apresentados no Interior, onde existem áreas endêmicas. O estudo evidenciou a participação de migrantes, infectados nos locais de origem, na determinação dos níveis de positividade, especialmente da Capital de São Paulo. Esses dados ressaltariam o envolvimento de fatores sociais no condicionamento da ocorrência e distribuição da doença ao nível populacional.

Unitermos: Tripanossomíase americana, S. Paulo, SP, Brasil. Fatores sócio-econômicos.

ABSTRACT

Study of a historical series survey showed the coefficients running into high numbers indicating the positiveness of the Machado-Guerreiro reaction among army draftees called to service in the city of S. Paulo. Attention is called to the fact taht these figures are higher that those found among army draftees called to service in the hinterland where, paradoxally, the endemic areas exist. As the existence of Chagas transmission in the city of S. Paulo has not been reported, its occurrence can be ascribed to the coming of migrants infected in the areas they come from. Study of the place of origin of young draftees brought evidence which sustains this hypothesis. These data emphasize the presence of social factors in determining the occurrence and distribution of the disease in the community.

Uniterms: Tripanosomiasis, South American, S. Paulo, Brazil. Socioeconomic factors.

INTRODUÇÃO

O levantamento das reações positivas de Machado-Guerreiro, em convocados para o Serviço Militar no Estado de São Paulo de 1972 a 1975, em seqüência ao estudo iniciado em 1968 (Goldenberg e col., 1974), tem por finalidade, estimar as tendências da evolução da prevalência da doença de Chagas, entre os apresentados na Capital e no Interior.

Desde os primeiros resultados da série histórica, chamou-nos a atenção a presença de elevados valores de positividade, das reações de Machado-Guerreiro, na Capital, onde não é referida a transmissão de Chagas.

Levantou-se a hipótese de que esses valores seriam devidos à presença de migrantes, os quais teriam sido infectados nos primeiros anos de vida. Neste sentido, foram colhidos os dados disponíveis sobre a naturalidade dos convocados, a partir de 1973, com o objetivo de obter indicações sobre a importância e o peso das migrações na determinação dos níveis dos coeficientes de positividade, especialmente na amostra da Capital.

A caracterização de mecanismos sociais envolvidos na disseminação da doença de Chagas entre nós, possibilitaria, por sua vez, tecer algumas considerações à respeito da dimensão social com que se reveste a distribuição das doenças a nível populacional.

METODOLOGIA

O levantamento dos coeficientes de positividade das reações de Machado-Guerreiro, de 1972 a 1975, obedeceu a mesma metodologia adotada no estudo dos anos anteriores (Goldenberg e col., 1974).

Os dados foram colhidos nos fichários da COLSAN (Sociedade Beneficiente de Coleta de Sangue) que realiza, junto aos convocados apresentados para o Serviço Militar do Estado de São Paulo, entre outras, a reação de Machado-Guerreiro. A disponibilidade desse arquivo torna viável o levantamento sorológico, em amostras anuais, de um amplo setor da população masculina ao redor dos 18 anos de idade. Admitindo-se que eventuais fatores de tendenciosidade não variam substancialmente de ano para ano, esse fichário da COLSAN se constitui em preciosa fonte de levantamento, tendo em vista a avaliação das tendências do comportamento da doença de Chagas no Estado, em anos sucessivos.

Em função dos dados disponíveis, realizou-se um levantamento do resultado das reações positivas, duvidosas e negativas. Foram excluídas as fichas que referiam anti-complementaridade do soro ou não realização das reações, por quaisquer motivos. Da mesma forma que nos estudos anteriores, as fichas excluídas atingiram uma cifra inferior a 0,5% do total.

Esses dados foram classificados segundo o local de apresentação dos convocados, ou seja, apresentados na Capital e no Interior, que inclui os demais municípios do Estado.

A partir de 1973, por motivos já explicados, procedeu-se o levantamento da naturalidade dos convocados, tendo sido possível distinguir duas sub-amostras, uma de naturais do Estado de São Paulo e outra de naturais de outros Estados da Federação. O tamanho dessas sub-amostras caiu nos anos estudados devido ao não preenchimento do dado, o qual passou de 19% em 1973, para 28% em 1974 e 50% em 1975. A comparação entre fichas com e sem preenchimento da naturalidade, segundo local de apresentação e segundo os níveis de positividade, indicou que o não preenchimento se fez de modo aleatório.

A SÉRIE HISTÓRIA

Os coeficientes de positividade da reação de Machado-Guerreiro na Capital e no Interior, de 1972 a 1975, constam da Tabela 1.

Em seguida foram calculados, para cada um dos coeficientes anuais, os intervalos de confiança de 95%. Para facilitar o acompanhamento da série histórica, estes dados, em seqüência aos valores levantados anteriormente, desde 1968, encontram-se especificados na Tabela 2 e projetados na Figura.


Na Capital, os resultados obtidos não indicaram modificações substanciais, de 1968 a 1973. A partir desse período, observa-se uma queda acentuada, nos valores dos anos subseqüentes (1974 a 1975).

No Interior (ressalvando-se o valor de 1968 que apresenta um intervalo de confiança muito amplo, devido à pequena população estudada), os coeficientes apresentaram comportamento relativamente estável até 1972, seguido de um acréscimo em 1973 que se mantém em 1974 e 1975.

Até 1973, os valores dos coeficientes da Capital apresentaram-se significativamente maiores do que os coeficientes do Interior. Com a queda desses valores na Capital e o aumento no Interior, essa diferença se reduz, não sendo considerada estatisticamente significante em 1974 a 1975, ao nível de 5%.

Diante dos resultados obtidos, surpreendem os valores semelhantes, e, inclusive, superiores de positividade das reações dos convocados apresentados na Capital, em relação aos apresentados no Interior.

OS COEFICIENTES DE POSITIVIDADE SEGUNDO A NATURALIDADE DOS CONVOCADOS

A partir de 1973, procedeu-se o levantamento da naturalidade dos convocados, tendo em vista avaliar a participação dos migrantes na determinação dos níveis de positividade nas amostras estudadas, especialmente da Capital de São Paulo.

A partir desses dados, foram calculados coeficientes de positividade da reação de Machado-Guerreiro entre convocados, apresentados na Capital e no Interior, segundo a naturalidade, au seja, em função das categorias: naturais do Estado de São Paulo e de outros Estados (Tabela 3).

Estes resultados evidenciam de um lado, a semelhança entre os valores dos coeficientes de positividade dos nascidos no Estado de São Paulo, apresentados na Capital ou no Interior; e de outro, os valores maiores dos coeficientes dos convocados nascidos em outros Estados, em relação aos nascidos no Estado de São Paulo.

As diferenças entre os coeficientes de positividade da reação de Machado-Guerreiro, entre os nascidos no Estado de São Paulo, apresentados na Capital e no Interior, indicam que as mesmas não são estaticamente significantes (Tabela 4).

Esses resultados poderiam ser considerados menos estranhos, diante da impossibilidade de identificar entre os residentes da Capital, os nascidos no Interior do Estado de São Paulo. Esse dado, apesar das limitações que imprime à comprovação da hipótese inicial, não exclui, porém, a possibilidade da ocorrência de positividade na população de convocados na Capital, devido ao afluxo de indivíduos infectados provenientes do Interior.

Por outro lado, são nítidas as proporções maiores de infectados entre convocados nascidos em outros Estados, em relação aos nascidos no Estado de São Paulo, apresentados na Capital como no Interior. As estatísticas especificadas nas Tabelas 5 e 6 demonstram que essas diferenças são significativas.

Diante desses resultados, torna-se evidente a importância do contingente de migrantes na determinação dos níveis de prevalência dos coeficientes de positividade da reação de Machado-Guerreiro nas amostras estudadas. Esses dados seriam indicativos da existência de importantes mecanismos sociais na disseminação da doença.

Eles assumem especial significado no município de São Paulo, que não sendo considerada área endêmica se constitui num grande polo de atração migratória.

Neste sentido, considerando a semelhança dos coeficientes de positividade dos convocados, naturais do Estado de São Paulo, apresentados na Capital e no Interior, seria lícito supor que o comportamento dos coeficientes da Capital seria explicado, em grande parte, pelo grande número de nascidos em outros Estados, apresentados na Capital.

No Interior, seja porque existem áreas endêmicas de Chagas, seja porque os processos migratórios, ainda que se apliquem a alguns municípios, não guardam no seu conjunto a mesma especificidade daqueles que se orientam para a Capital, não se poderia pretender explicar, a variação dos coeficientes de positividade das amostras, em função dos contingentes de nascidos em outros Estados.

Os dados da Tabela 7 ilustram essas suposições.

Na Capital, a variação em números absolutos e relativos de nascidos em outros Estados, de 1973 para 1974, corresponde a uma queda do coeficiente de 19,05‰ para 8,69‰. No ano seguinte, aumenta a percentagem desse contingente da amostra, com conseqüente elevação do coeficiente de positividade para 11,08‰, limitado, porém, pela manutenção dos números absolutos em relação ao ano anterior.

No Interior, ao aumento observado no contingente de nascidos em outros Estados de 73 para 74 corresponde, contraditoriamente, à uma queda do coeficiente de positividade, e, a recíproca se deu no ano seguinte.

O paralelismo que se observa, entre as variações no contingente de naturais de outros Estados e as variações nos coeficientes de positividade da Capital, ressalta a importância da afluência de migrantes, infectados nos locais de origem, no condicionamento dos níveis de positividade.

A DIMENSÃO SOCIAL DA DISTRIBUIÇÃO DA DOENÇA A NÍVEL POPULACIONAL

A participação de migrantes, infectados nos locais de origem, na determinação dos níveis de positividade da reação de Machado-Guerreiro, nas amostras de convocados, apresentados no município de São Paulo, nos anos estudados, vêm demonstrar que a presença de fontes de infecção e barbeiros não são suficientes para explicar a ocorrência e distribuição da doença de Chagas nas populações. Os resultados encontrados evidenciam, isto sim, a existência de mecanismos sociais de disseminação da doença, que decorrem do sistema de articulação que se estabelece entre os homens, na formação econômica e social peculiar do país.

Entre nós, o desenvolvimento de uma nova ordem capitalista, que visa uma situação econômica auto sustentada, esbarra, desde o início, com os avanços do capitalismo monopolista, a nível internacional. Dessa forma, esse desenvolvimento se estrutura débil, sem alterar profundamente a formação econômico-social tradicional, inaugurada no período colonial. Nesta sociedade emergente, observa-se um compromisso entre a "nova" e a "velha" organização, norteado pela combinação que se estabelece entre a formação de riqueza e a formação de pobreza.

Nestas condições, o desenvolvimento se processa em meio à acentuadas desigualdades sociais, que transparecem, especialmente ao nível inter e intra-regionais. Áreas mais desenvolvidas e menos desenvolvidas não só coexistem como mantém estreitas relações de interdependência. Como decorrência, observa-se intenso deslocamento de populações que se transferem dos centros menos dinâmicos para os mais dinâmicos. Circuitos migratórios se estabelecem em função das características da evolução do sistema capitalista do país, que determina e sincroniza, em última instância, os fatores de expulsão nos locais de origem e de atração nos locais de destino.

Essas rotas, socialmente desencadeadas, delimitam importantes diretrizes de disseminação da doença de Chagas. Os dados encontrados evidenciam essa afirmação. São Paulo, ao liderar o processo de industrialização, atrai amplos contingentes de migrantes de certas regiões do país, que vêm integrar o mercado disponível de mão de obra, e por isso mesmo, barata. Na medida em que persistem esses mecanismos, o grande centro urbano industrial atrai número significativo de infectados.

A presença de migrantes infectados e a sua participação na determinação dos níveis de positividade da reação de Machado-Guerreiro, nas amostras da Capital, atestam portanto, ao nível biológico as características da organização social num dado momento histórico. A ocorrência e distribuição da doença de Chagas refletem as movimentações populacionais, as quais decorrem das formas de articulação entre os homens, norteada entre nós pela combinação que se estabelece entre crescimento econômico e formação de pobreza. A distribuição da doença assume, portanto, uma dimensão social, e, isto equivale dizer que o estudo das doenças a nível populacional implica a consideração de uma ordem social de fatores, afeitos ao nível sociológico de abordagem.

Neste sentido, a unidade de análise, nos estudos epidemiológicos, transcende ao indivíduo ou a soma deles e passa a ser representada pela formação social concreta e histórica. Somente sob este prisma torna-se possível entender a interferência dos fatores sociais, pois é na unidade social, com suas características próprias, que se encontra delimitada a explicação da ocorrência e distribuição das doenças a nível populacional.

A presença de fontes de infecção, de vetores e de novos hospedeiros explicam o processo de desencadeamento da doença ao nível do indivíduo, mas não explicam sua distribuição ao nível populacional. Não basta identificar como ou através de que mecanismos um agente etiológico passa de uma fonte de infecção para um novo hospedeiro; a nível populacional, a organização e as forças sociais interferem no volume, localização e extensão desses mecanismos. O esquema clássico de transmissão das doenças nas populações, deve, portanto, ser referido ao meio social, ou seja, às formas de articulação que se estabelecem entre os homens as quais condicionam, em última instância, a forma pela qual os homens se apropriam e interagem com a natureza.

CONCLUSÕES

O levantamento dos coeficientes de positividade das reações de Machado-Guerreiro em convocados para o serviço militar em 1973, 1974 e 1975, em continuidade a série histórica iniciada em 1968, evidencia um aumento dos valores do Interior a partir de 1973 e um decréscimo na Capital a partir de 1974. Assim, desaparecem as diferenças entre os valores da Capital em relação aos do Interior, em níveis significativos, contrariando a tendência anteriormente observada segundo a qual os valores da Capital se apresentavam sistematicamente superiores aos do Interior.

O estudo da naturalidade veio confirmar a suposição sobre a importância da afluência de migrantes, infectados nos locais de origem, na determinação dos níveis de positividade da Capital, aonde não é referida a transmissão da doença.

Ao retratar o sistema de articulação que se estabelece entre os homens, a nível inter e intra-regional, esses dados chamam a atenção para a dimensão social da ocorrência da doença a nível populacional e ressaltam a necessidade de referir os esquemas de transmissão das doenças às características peculiares e concretas da formação social do país.

O levantamento dos coeficientes dos anos posteriores, levando-se em consideração a naturalidade dos convocados, permitirá detectar as tendências da evolução futura da doença e, a partir de 1976, os prováveis efeitos da campanha de saneamento realizada em áreas endêmicas do Estado.

AGRADECIMENTO

Ao Prof. Dr. Walter Sidney Pereira Leser pela orientação.

Recebido para publicação em 05/06/1979

Aprovado para publicação em 30/07/1979

  • GOLDENBERG, P. et al. Coeficientes de positividade das reações de Machado-Guerreiro em convocados para o serviço militar no Estado de São Paulo, de 1968 a 1971. Rev. Ass. med. bras., 20:307-8, 1974.
  • *
    Apresentado ao XIX Congresso Brasileiro de Higiene. São Paulo, 1977.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Fev 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 1979

    Histórico

    • Aceito
      30 Jul 1979
    • Recebido
      05 Jun 1979
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