Acessibilidade / Reportar erro

Policy Drift em governos ideologicamente heterogêneos: política tributária na América Latina

Resumo

A relação entre tributação e partidarismo é amplamente estudada na Ciência Política. Entretanto, trabalhos anteriores não só apresentaram resultados contraditórios - sem esclarecer quais partidos são mais propensos a instituir tributos progressivos - como nenhum considerou um elemento particular da política latino-americana: os governos de coalizão. Usando o nível de arrecadação com tributos diretos como uma proxy para tributação progressiva e adotando um banco de dados em painel, investiga-se a receita com tributos progressivos considerando uma escala da ideologia da liderança executiva e a heterogeneidade ideológica da coalizão que forma o governo. Os resultados indicam que governos ideologicamente heterogêneos apresentam policy drift, já que as políticas sendo implementadas se distanciam das preferências originais da liderança executiva. Governos homogêneos de esquerda têm receitas maiores com tributos diretos do que governos formados a partir de coalizão ideologicamente heterogênea sob as mesmas lideranças. A mesma dinâmica ocorre com governos homogêneos de direita, que têm receitas maiores com tributos indiretos. Os resultados indicam novos caminhos para pesquisa, destacando a necessidade de se incorporar a composição de um governo à análise de políticas públicas, como a importância de se compreender o mecanismo pelo qual policy drift ocorre em governos ideologicamente heterogêneos.

Palavras-chave:
tributação; partidarismo; governos de coalizão; América Latina; desigualdade

Abstract

The relation between taxation and partisanship is a widely studied topic in Political Science. However, previous works have provided conflicting findings without clarifying which parties are most prone to progressive taxation. These studies also did not consider one distinctive feature of Latin American politics: coalition governments. Using the level of direct tax collection as a proxy for progressive taxation and panel data of Latin American countries since 1990, we investigate how progressive taxes vary across a scale of ideology observed in the executive branch along with the ideological heterogeneity of its coalition. The results show that ideologically heterogeneous governments present a policy drift, as the policies being enacted depart from parties’ original preferences. Homogeneous left-wing governments collect more direct taxes than ideologically heterogeneous coalitions led by governments with the same ideology. The same dynamic is observed with homogeneous right-wing governments, which collect more indirect taxes in ideologically homogeneous coalitions. These results create new paths of research highlighting the need to include the government’s composition in the analysis to understand policy design and the need to unravel the mechanism through which policy drift occurs in ideologically heterogeneous governments.

Keywords:
taxation; partisanship; coalition governments; Latin America; inequality

Resumen

La relación entre tributación y partidismo es un tema ampliamente estudiado en Ciencias Políticas. Sin embargo, trabajos previos han proporcionado hallazgos contradictorios sin aclarar qué partes son más propensas a la tributación progresiva. Estos estudios tampoco consideraron una característica distintiva de la política latinoamericana: los gobiernos de coalición. Utilizando el nivel de recaudación de impuestos directos como indicador de la tributación progresiva y datos de panel de los países de América Latina desde 1990, investigamos cómo varían los impuestos progresivos a lo largo de una escala de ideología observada en el poder ejecutivo junto con la heterogeneidad ideológica de su coalición. Los resultados muestran que los gobiernos ideológicamente heterogéneos presentan un policy drift, ya que las políticas que se promulgan se apartan de las preferencias originales de los partidos. Los gobiernos homogéneos de izquierda recaudan más impuestos directos que las coaliciones ideológicamente heterogéneas lideradas por gobiernos con la misma ideología. La misma dinámica se observa con gobiernos homogéneos de derecha, que recaudan más impuestos indirectos en coaliciones ideológicamente homogéneas. Estos resultados crean nuevos caminos de investigación que destacan la necesidad de incluir la composición del gobierno en el análisis para comprender el diseño de políticas y la necesidad de desentrañar el mecanismo a través del cual se produce policy drift de políticas en gobiernos ideológicamente heterogéneos.

Palabras clave:
tributación; partidismo; gobiernos de coalición; América Latina; desigualdad

1. INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é investigar os efeitos que a ideologia de governos de coalizão tem sobre a política tributária latino-americana nos últimos trinta anos. A relevância desta questão se encontra em dois pontos. Em primeiro lugar, embora a relação entre tributação e ideologia seja uma agenda central na Ciência Política, o campo colheu resultados conflitantes sobre o tema. Por um lado, alguns achados apontam para como partidos de esquerda são importantes para a tributação progressiva (Esping-Andersen, 1985Esping-Andersen, G. (1985). Politics Against Markets: The social-democratic road to power. Princeton, NJ: Princeton University Press.; Stein & Caro, 2017Stein, E., & Caro, L. (2017). Ideology and Taxation in Latin America. Economía, 17(2), 1-27.). Por outro, existem trabalhos que apontam na direção oposta, indicando mudanças incrementalmente progressivas sob governos de direita (Timmons, 2010Timmons, J. (2010). Taxation and Credible Commitment: Left, Right, and Partisan Turnover. Comparative Politics, 42(2), 207-227.).

Em segundo lugar, nenhum dos trabalhos neste campo, conforme podemos identificar, considerou uma característica distintiva da disputa política latino-americana: governos de coalizão. Apenas um punhado de governos da região foram homogêneos do ponto de vista ideológico. Se existe interesse em capturar os efeitos da ideologia sobre a política tributária na América Latina, é fundamental considerar a heterogeneidade ideológica que existe entre partidos que fazem parte de uma coalizão governamental.

Portanto, o artigo emprega a seguinte estratégia metodológica para explorar a relação entre governos ideologicamente heterogêneos e política tributária. Primeiro, usamos a carga tributária de tributos direitos como uma proxy para tributação progressiva, já que sua incidência sobre renda, lucros, ganhos de capital e patrimônio pode ser personalizada, dependendo da capacidade contributiva dos indivíduos. Alternativamente, tributos sobre mercadorias e serviços, chamados de indiretos, são considerados regressivos. Em segundo lugar, usando dados em painel para uma miríade de países latino-americanos entre os anos 1990 e 2000, estima-se o impacto da heterogeneidade ideológica sobre a política tributária, variando a partir da ideologia do Executivo.

Ilustra-se que Executivos de esquerda, ideologicamente homogêneos, estão associados a maiores níveis de tributação direta, uma ferramenta progressiva e redistributiva na tributação. Com efeito, Executivos de esquerda (direita) com coalizões heterogêneas estão associados a menores (maiores) níveis de tributação direta e (menores) maiores níveis de tributação indireta. Os resultados são importantes, pois destacam que partidos de esquerda têm iniciativa em tornar a tributação mais progressiva na região, como trabalhos anteriores mostraram, na relação entre partidos de esquerda e políticas redistributivas (Esping-Andersen, 1985Esping-Andersen, G. (1985). Politics Against Markets: The social-democratic road to power. Princeton, NJ: Princeton University Press.; Huber & Stephens, 2012aHuber, E., & Stephens, J. (2012a). Democracy and the Left: Social policy and inequality in Latin America. Chicago, IL: Chicago University Press.).

Contudo, e mais importante, não só os resultados corroboram a premissa de que governos ideologicamente divididos têm mais conflitos para instituir políticas públicas, como destaca a existência de um policy drift quando coalizões são ideologicamente heterogêneas. Os resultados indicam que nesses contextos, partidos se deslocam de suas preferências originais, instituindo políticas que são diferentes do que optariam a priori.

Assim, este trabalho destaca que análise futuras, no desenho de políticas públicas, devem considerar a composição de um governo, já que podem-se produzir políticas públicas diferentes, além de representar uma próspera linha de pesquisa, revelando o mecanismo pelo qual policy drift ocorre em governos ideologicamente heterogêneos.

A próxima seção lança as bases deste debate, junto com as visões opostas acerca dos efeitos da ideologia ou do partidarismo sobre tributação, além de expor a importância de coalizões na compreensão do desenho de políticas públicas. Em seguida, apresenta-se a metodologia empregada neste artigo, além da medida de heterogeneidade ideológica e dos dados utilizados. Finalmente, apresentam-se os resultados que apontam para a ocorrência de policy drift em governos ideologicamente heterogêneos na América Latina, em relação à política tributária. O artigo é encerrado com as conclusões.

2. PARTIDARISMO E TRIBUTAÇÃO

Desde o trabalho de Hibbs (1977Hibbs, D. (1977). Political Parties and Macroeconomic Policy. American Political Science Review, 71(4), 1467-1487.), no qual o autor encontrou uma associação entre partidos de esquerda e um equilíbrio entre baixo desemprego e inflação mais alta nos EUA e no Reino Unido, o efeito da ideologia ou do partidarismo em diferentes políticas públicas se tornou um extenso objeto de estudo. Em Boix (1998Boix, C. (1998). Political Parties, Growth and Equality: Conservative and social democratic economc strategies in the world economy. Cambridge, UK: Cambridge University Press.), por exemplo, é possível encontrar como partidos de esquerda seriam mais propensos a usar o setor público para investir em capital e trabalho, buscando aumentar a produtividade, enquanto partidos conservadores recorreriam ao setor privado para a mesma finalidade.

Seguindo este exemplo, políticas redistributivas também poderiam estar associadas à ideologia de partidos políticos. Partindo das limitações que a teoria do eleitor mediano teria (Meltzer & Richard, 1981Meltzer, A. H., & Richard, S. F. (1981). A Rational Theory of the Size of Government. Journal of Political Economy, 89(5), 914-927. Retrieved from https://doi.org/10.1086/261013), já que esse modelo tomaria a democracia como condição suficiente para redistribuição, Esping-Andersen (1985Esping-Andersen, G. (1985). Politics Against Markets: The social-democratic road to power. Princeton, NJ: Princeton University Press.) destaca quão importante foi a coesão de partidos de esquerda na instituição de um Estado de Bem-Estar Social socialdemocrata e universalista na Suécia. Alternativamente, um cenário diferente emergiu na Alemanha, onde a força de partidos de direita contribuiu para a construção de um Estado de Bem-Estar Social conservador.

No contexto latino-americano, Huber e Stephens (2012aHuber, E., & Stephens, J. (2012a). Democracy and the Left: Social policy and inequality in Latin America. Chicago, IL: Chicago University Press.) desenvolveram o que foi chamada de teoria de constelação de poder. Como na Europa, a presença e importância de partidos de esquerda em instituições deliberativas foram fundamentais para a implementação de sistemas de saúde universais e de transferências condicionais de renda na região, significativamente contribuindo para uma redução na desigualdade. A lógica por trás destes trabalhos era de que partidos de esquerda e sindicatos são os atores políticos interessados e efetivamente engajados na redução das diferenças entre ricos e pobres, consequentemente contribuindo para a implementação de toda sorte de políticas redistributivas.

Entretanto, considerando políticas macroeconômicas ou redistributivas, a tributação não foi prioritariamente estudada como uma política pública, na qual partidos de diferentes ideologias teriam preferências explicitamente diferentes. Por um lado, sob uma perspectiva macroeconômica, a tributação foi entendida como um corolário das preferências em torno dos gastos, onde a maior importância do setor público sob partidos de esquerda levaria, indiretamente, à uma maior arrecadação, quando comparado com governos de direita. Por outro, sob uma perspectiva redistributiva, embora a política tributária seja capaz de intervir na distribuição de renda, por meio do aumento da carga sobre os estratos mais ricos, a tributação foi vista como um meio necessário para financiar as políticas redistributivas “verdadeiramente” preferidas por partidos de esquerda, os gastos redistributivos1 1 “O grosso dos tributos deve ser coletado entre as maiores faixas de renda, as quais são compostas por trabalhadores e empregados gerenciais de médio escalão”. Do original: “The bulk of taxes must be collected among the largest income brackets, and that happens to be workers and middle-level white-collar employees” (Esping-Andersen, 1985, p. 35). . Nesse caso, a única preocupação seria coletar mais receitas, independentemente da maneira como essa carga é distribuída pela sociedade. Este cenário levou a uma considerável incerteza sobre a associação que haveria entre partidos de esquerda e uma política tributária redistributiva.

A maneira com que um Estado coleta tributos pode ter profundas consequências para a desigualdade de renda. Tributos incidentes sobre mercadorias e serviços - tributos indiretos - são regressivos, significando que sua incidência cai à medida que se parte do contribuinte mais pobre ao mais rico. Afinal, como estes têm rendas diferentes e tributos indiretos incidem de maneira uniforme entre todos, contribuintes mais pobres pagam mais do que os mais ricos, em termos relativos, aumentando a desigualdade. Alternativamente, tributos incidentes sobre a renda, lucros e ganhos de capital - tributos diretos - podem ser progressivos, já que sua incidência pode ser regulada para aumentar, à medida que se avança na distribuição de renda, personalizando sua alíquota de acordo com a capacidade contributiva dos indivíduos (Comisión Económica Para América Latina y el Caribe ]Cepal], 2017Comisión Económica Para América Latina y el Caribe. (2017). Panorama Fiscal de América Latina y el Caribe: La movilización de recursos para el financiamiento del desarrollo sostenible. Retrieved from https://www.cepal.org/es/publicaciones/41044-panorama-fiscal-america-latina-caribe-2017-la-movilizacion-recursos
https://www.cepal.org/es/publicaciones/4...
).

Assim, se um governo está interessado em mitigar a desigualdade de renda, pode-se usar a política tributária para tanto, ajustando o equilíbrio entre tributos diretos e indiretos, diminuindo a carga sobre os estratos mais baixos, enquanto aumenta sobre os mais ricos. Essa é a principal razão pela qual, neste trabalho, consideremos que um sistema tributário se torna mais progressivo, à medida que aumenta a arrecadação de tributos diretos. Especificamente, considerando como os países latino-americanos têm baixas cargas tributárias e, historicamente, níveis ainda mais baixos de tributos diretos, a desigualdade de renda passa praticamente incólume à tributação, num evidente contraste com países da OCDE (Goñi, López, & Servén, 2011Goñi, E., López, H., & Servén, L. (2011). Fiscal redistribution and income inequality in Latin America. World Development, 39(9), 1558-1569.).

Pode-se argumentar que uma alta carga de tributos incidentes sobre renda, lucros e ganhos de capital está, na verdade, associada à uma política tributária regressiva; afinal, a composição desta carga poderia favorecer os mais ricos e prejudicar os mais pobres. Idealmente, sob uma perspectiva comparada, seria interessante analisar a progressividade de sistemas tributários por meio da alíquota tributária efetiva sobre os domicílios mais ricos de determinada sociedade. Contudo, como não temos conhecimento de tal dado, recorrer a tributos (in)diretos como critério para investigar a progressividade de um sistema tributário constitui uma proxy útil.

Para uma parte do campo, partidos de esquerda teriam claras preferências em aumentar a carga tributária, além de aumentá-la de maneira progressiva, sob determinadas condições. Stein e Caro (2017Stein, E., & Caro, L. (2017). Ideology and Taxation in Latin America. Economía, 17(2), 1-27.) analisam a receita tributária de países latino-americanos entre 1990 e 2010, encontrando que a inflexão à esquerda da região esteve associada à uma maior carga tributária, além de uma maior arrecadação de tributos sobre a renda, não encontrando nenhuma relação com a tributação indireta ou contribuições sociais. À luz dos critérios empregados aqui, os resultados dos autores indicariam uma associação entre partidos de esquerda e sistemas tributários progressivos.

Na mesma linha, Castañeda (2017Castañeda, N. (2017). Business Coordination and Tax Politics. Political Studies, 65(1), 122-143.) desenvolve uma teoria que parte de uma divisão entre agenda-setters que poderiam ser considerados taxers ou non-taxers. Em relação à política tributária, presidentes e ministros da fazenda na América Latina são figuras centrais na instituição ou reforma de sistemas tributárias. Se estes têm interesses em aumentar a arrecadação, os mesmos devem ser considerados taxers. Alternativamente, se não existe este interesse, non-taxers. Em geral, haveria uma alta correlação entre partidos de esquerda e taxers, principalmente em função da importância que os primeiros atribuem ao setor público (Castañeda, 2017Castañeda, N. (2017). Business Coordination and Tax Politics. Political Studies, 65(1), 122-143.).

Entretanto, a capacidade que esses partidos têm de instituir sistemas tributários progressivos - mais dependentes de tributos diretos - dependeria de dois fatores. Em primeiro lugar, dependeria de sua força partidária. Se taxers são politicamente fortes, o que significa terem inúmeros assentos em assembleias nacionais, as chances de se aprovar reformas tributárias progressivas aumentam. O segundo fator seria o padrão de coordenação empresarial. Obviamente, o empresariado constitui um oponente natural a mudanças progressivas, já que os mesmos seriam os principais perdedores desta política. Portanto, se grupos de interesse são altamente organizados e possuem organizações centralizadas, integradas ao processo de formulação de política pública, as chances de uma mudança progressiva são pequenas2 2 Embora não esteja necessariamente relacionado à integração de grupos de interesse ao processo de formulação de políticas públicas, a rejeição do aumento do imposto sobre exportações agrícolas na Argentina, devido à intensa mobilização de produtores, destaca a importância do engajamento do empresariado no desenho da política tributária (Fairfield, 2011). Alternativamente, apesar de diversas tentativas de uma reforma tributária abrangente, o Brasil não viu nenhuma modificação tributária relevante, em termos de progressividade (Oliveira & Biasoto, 2017). . O cenário cria uma situação na qual mudanças progressivas só podem ser identificadas se agenda-setters são taxers (de esquerda), com grande força partidária, num contexto em que grupos de interesse são descentralizados e fracos. Se este é o caso, é possível esperar uma reforma tributária progressiva estrutural. Se grupos de interesse são fortes, sob o mesmo contexto, a maior arrecadação advém da tributação indireta, aumentando a regressividade do sistema (Castañeda, 2017Castañeda, N. (2017). Business Coordination and Tax Politics. Political Studies, 65(1), 122-143.).

O cenário descrito como ideal por Castañeda (2017Castañeda, N. (2017). Business Coordination and Tax Politics. Political Studies, 65(1), 122-143.) é igual ao caso uruguaio em 2006, descrito por Rius (2015Rius, A. (2015). The Uruguayan tax reform of 2006: Why didn’t it fail? In J. E. Mahon Jr., M. Bergman, & C. J. Arnson (Eds.), Progressive tax reform in Latin America(pp. 64-100). Washington, DC: Wilson Center. Retrieved from https://www.wilsoncenter.org/publication/progressive-tax-reform-and-equality-latin-america-no-35
https://www.wilsoncenter.org/publication...
). Tabaré Vázquez foi eleito presidente em 2004 pela Frente Ampla de esquerda. Não só este partido venceu as eleições presidenciais, como a Frente Ampla conquistou a maioria de assentos na câmara baixa e no senado, tendo 52,9% e 54,8% dos assentos, respectivamente, sem ter nenhum outro partido fazendo parte de sua coalizão. Portanto, as eleições de 2004 deram a presidência a um taxer, com grande força partidária.

Com dois anos de mandato, Tabaré Vázquez propôs uma abrangente reforma tributária. Composta por diversas mudanças progressivas, como a substituição do imposto de renda cedular pelo imposto de renda global3 3 A principal diferença entre os dois é que o imposto de renda cedular divide a cobrança do imposto em diferentes fontes de renda, como trabalho, capital e lucro, por exemplo. Ao passo que o imposto de renda global agrega rendimentos de fontes diferentes, potencialmente aumentando a progressividade e a carga do imposto de renda, comparado com o modelo cedular. , a compatibilização da alíquota máxima do imposto de renda sobre pessoas físicas e jurídicas, redução das alíquotas do IVA4 4 IVA é a sigla para imposto sobre valor adicionado, incidente sobre mercadorias e serviços. Portanto, é um tipo de tribute indireto. , supressão do imposto sobre vendas, entre outros. Para Rius (2015Rius, A. (2015). The Uruguayan tax reform of 2006: Why didn’t it fail? In J. E. Mahon Jr., M. Bergman, & C. J. Arnson (Eds.), Progressive tax reform in Latin America(pp. 64-100). Washington, DC: Wilson Center. Retrieved from https://www.wilsoncenter.org/publication/progressive-tax-reform-and-equality-latin-america-no-35
https://www.wilsoncenter.org/publication...
), além do esforço que o governo fez para esclarecer quem seria mais afetado pela reforma, mitigando a oposição da classe média, a incipiente organização de grupos de interesse no Uruguai foi fundamental para a aprovação da reforma. De acordo com o autor, as elites uruguaias são organizacional e ideologicamente divididas, com fracas conexões com partidos políticos. Portanto, não haveria uma confederação de empresários nacional e centralizada. Não é trivial que, de acordo com as estatísticas da OCDE, a arrecadação de tributos diretos no Uruguai tenha saltado de 2,4% do PIB em 2004 para 5,4% em 2010.

Outro exemplo é o Chile, embora tenha grupos de interesse mais fortes. Durante o governo de Lagos entre 2001 e 2006, o presidente do Partido Socialista, chefe da coalizão de esquerda Concertación, foi capaz de instituir três mudanças progressivas incrementais. Em 2001, Lagos aprovou i) uma restrição a benefícios fiscais que favoreciam a evasão fiscal, e ii) também aumentou o imposto sobre renda de pessoas jurídicas de 15% para 17%. Se estas mudanças não fossem incrementais o suficiente, a última foi acompanhada por uma diminuição da alíquota marginal máxima sobre o imposto de renda de pessoas físicas, de 45% para 40%, além de outro corte, da segunda maior alíquota marginal, a qual caiu de 35% para 32%. Finalmente, em 2006, iii) o governo eliminou o benefício 57 Bis, um subsídio para proprietários de ações de nova emissão. Como se pode ver, todas mudanças foram incrementais. Como apontado por Fairfield (2015Fairfield, T. (2015). The political economy of progressive tax reform in Chile. In Progressive tax reform in Latin America(pp. 30-56). Washington, DC: Wilson Center.), estas mudanças foram aprovadas apenas porque o governo de esquerda foi capaz de angariar apoio da classe média, ao mesmo tempo que a ferrenha oposição de grupos de interesse, com conexões com os partidos de direita, como o RN, mas especialmente a UDI, restringiu consideravelmente a abrangência de qualquer mudança tributária progressiva.

Contudo, uma segunda parte da literatura inverte a relação entre ideologia e tributação, onde partidos de esquerda não estariam associados à uma política tributária redistributiva (Timmons, 2010Timmons, J. (2010). Taxation and Credible Commitment: Left, Right, and Partisan Turnover. Comparative Politics, 42(2), 207-227.). Esse seria o caso, pois a tributação não pode ser considerada uma política pública que é usada para coagir os oponentes políticos da esquerda, mas uma política pública, dentre outras, que faz parte de uma barganha política mais abrangente entre formuladores de políticas públicas e grupos de interesse (Timmons, 2010Timmons, J. (2010). Taxation and Credible Commitment: Left, Right, and Partisan Turnover. Comparative Politics, 42(2), 207-227.). Sob essa perspectiva, governos de direita teriam uma maior chance de aprovar mudanças progressivas porque seria mais fácil para eles firmar acordos com seus aliados - os principais perdedores de mudanças progressivas - já que cada mudança tributária seria seguida por outras políticas, preferidas por elites e empresariado.

Em outras palavras, como todas as mudanças progressivas viriam de um acordo entre atores políticos e empresariado, o novo custo colocado por uma política tributária precisaria ser seguido por outra política, demandada por esses grupos, de modo que apenas partidos de direita seriam capazes de firmar compromissos críveis com eles. Alternativamente, como partidos de esquerda não seriam, em tese, tão bem conectados com o empresariado, as chances que acordos sejam estabelecidos entre esses grupos e partidos de esquerda são menores. Como apontado por Timmons (2010Timmons, J. (2010). Taxation and Credible Commitment: Left, Right, and Partisan Turnover. Comparative Politics, 42(2), 207-227.), é mais fácil tributar seus próprios apoiadores, já que se torna mais fácil oferecer benefícios plausíveis, em contrapartida. Ainda que sob uma diferente perspectiva, este trabalho ecoa o de Holland e Schneider (2017Holland, A., & Schneider, B. R. (2017). Easy and Hard Redistribution: The political economy of Welfare States in Latin America. Perspective on Politics, 15(4), 988-1006.), onde tributos são parte de um conjunto de políticas chamadas de hard-redistribution, as quais, para serem aprovadas, precisariam enfrentar crescente oposição política, por meio de uma coalizão abrangente, sólida e duradoura.

Isto poderia fornecer uma explicação para as mudanças progressivas que aconteceram sob governos de direita na Colômbia, México e, mais uma vez, Chile5 5 É importante destacar que existiram duas mudanças tributárias diferentes objetos de estudos de caso no Chile. A primeira foi descrita por Fairfield (2015), durante a presidência de Lagos, encaixando-se na hipótese de que partidos de esquerda estariam associados à uma política tributária progressiva. A segunda foi instituída pelo governo conservador de Piñera em 2011, descrita por Fairfield e Garay (2017). . Enfrentando uma crise de segurança crescente, seguida por outra fiscal, a Colômbia aprovou uma série de tributos extraordinários em 2002, 2003, 2006 e 2007, todas durante o governo de direito de Álvaro Uribe, do partido de direita Primero Colombia.

Todas essas mudanças foram parte de um plano de estabilização para mitigar a violência no país. Assim, todos os impostos foram nomeados Impuesto de la Seguridad Democrática. De acordo com Flores-Macías (2014Flores-Macías, G. (2014). Financing Security Through Elite Taxation: The case of Colombia’s “Democratic Security Taxes”. Studies in Comparative International Development, 49(4), 477-500.), tudo isso foi possível, pois a Colômbia enfrentava uma grave ameaça de segurança que não poderia ser resolvida por um “processo convencional de formação de política pública” (Flores-Macías, 2014, p. 488). Grupos de empresários aceitaram os novos impostos incidentes sobre grandes ativos líquidos, pois anteciparam os benefícios que se seguiriam ao plano de segurança sendo proposto por Uribe, compensando a maior carga.

Para Fairfield e Garay (2017Fairfield, T., & Garay, C. (2017). Redistribution Under the Right in Latin America: Electoral Competition and Organized Actors in Policymaking. Comparative Political Studies, 50(14), 1871-1906.), no México e no Chile, as mudanças incrementais observadas nestes países teriam sido resultado da competição eleitoral por eleitores em disputa, colocando pressão sobre a política fiscal, a qual precisaria de maiores receitas. Entretanto, pode se argumentar que ante à crescente ameaça eleitoral de movimentos políticos à esquerda, partidos de direita conseguiram firmar acordos com o empresariado, antecipando que estes grupos teriam perdas de qualquer jeito, mas poderiam diminuí-las aceitando maiores impostos, os quais se traduziriam numa vantagem eleitoral para partidos conservadores posteriormente.

Na corrida presidencial mexicana de 2006, os três principais partidos, PRI, PAN e PRD, competiram por vastos contingentes do eleitorado, desejosos por políticas redistributivas. O candidato à esquerda Andrés Manuel López Obrador (PRD), representava uma ameaça eleitoral crível aos partidos de direita, o PAN e o PRI. Deve-se destacar que o PRD pressionou, anteriormente, o então governo por um novo sistema de pensões, posteriormente chamado Oportunidades, meses antes da eleição nacional. O então presidente eleito, por uma estreita margem de 300.000 votos, Felipe Calderón (PAN), teve que aumentar a carga tributária, e, de acordo com Fairfield and Garay (2017Fairfield, T., & Garay, C. (2017). Redistribution Under the Right in Latin America: Electoral Competition and Organized Actors in Policymaking. Comparative Political Studies, 50(14), 1871-1906.), a única maneira viável de fazê-lo era por meio da criação de um imposto mínimo sobre pessoas jurídicas - Impuesto Empresarial a Tasa Única (IETU) - um tributo direto e progressivo.

Ao mesmo tempo, no Chile, Sebatián Piñera foi eleito em 2009 pelo agrupamento de direita, Coalición. Assumindo o cargo em 2010, o mesmo instituiu um programa de transferência de renda para famílias pobres, o Ingreso Ético Familiar. Simultaneamente, o país foi atingido por um terremoto que causou consideráveis danos à infraestrutura e domicílios chilenos. Ademais, em 2011, protestos estudantis pressionaram o governo por um sistema de ensino superior gratuito, ante à dívida crescente de empréstimos estudantis. Todos esses fatores combinados aumentaram a necessidade de maiores receitas tributárias. Piñera respondeu aumentando o imposto sobre pessoas jurídicas de 17% para 20%, apesar de receber críticas de sua própria base, como um informante do empresariado disse: “nós ]empresários] decidimos não mostrar nossos dentes... era nosso governo” (Fairfield & Garay, 2017Fairfield, T., & Garay, C. (2017). Redistribution Under the Right in Latin America: Electoral Competition and Organized Actors in Policymaking. Comparative Political Studies, 50(14), 1871-1906., p. 23), indicando uma negociação entre estes grupos e o governo de direita de Piñera.

Obviamente, o partidarismo é apenas um fator, dentre outros, que influencia a política tributária. Outro comumente citado também é o PIB per capita. Grosso modo, tributos só incidem sobre uma expressão de poder econômico ou de compra. Afinal, tributos são coletados sobre renda, propriedade, lucro, consumo, etc. Portanto, se determinada população é mais rica que outra, a primeira tem um maior potencial arrecadatório, independente do quão progressivo seu sistema tributário é. Em termos técnicos, à medida que um país enriquece, a base tributária aumenta, favorecendo as condições para a arrecadação de impostos, sejam eles progressivos ou não (Cepal, 2017; Goñi et al., 2011Goñi, E., López, H., & Servén, L. (2011). Fiscal redistribution and income inequality in Latin America. World Development, 39(9), 1558-1569.).

Outro fator relevante constrangendo a política tributária, especialmente no caso de países latino-americanos, é a abertura comercial e o quão integrado um país é a mercados globais. Considere-se tributos incidentes sobre o capital. Se um país aumenta a mobilidade de capitais em suas fronteiras, eventualmente tornando-se mais dependente de investimento estrangeiro direto (IED), o mesmo teria menos incentivos para aumentar impostos sobre o capital, já que a medida poderia gerar fuga de capitais. Embora a América Latina tenha algum grau de controle sobre sua política tributária, alguns trabalhos argumentaram que a globalização condicionou como os países da região optaram por coletar impostos sobre a renda e sobre o capital nos anos 1990 (Wibbles & Arce, 2003Wibbles, E., & Arce, M. (2003). Globalization, Taxation, and Burden-Shifting in Latin America. International Organization, 57(1), 111-136.).

Embora de maneira contraintuitiva, também se deve destacar que países socialdemocratas, como a Suécia, estão associados à uma tributação regressiva, dada sua arrecadação de tributos sobre mercadorias e serviços (Beramendi & Rueda, 2007Beramendi, P., & Rueda, D. (2007). Social Democracy Constrained: Indirect taxation in industrialized democracies. British Journal of Political Science, 37(4), 619-641.). Regimes socialdemocratas construíram seus Estados de Bem-Estar Social sobre a ideia de que políticas públicas, como saúde, devem ser universalmente disponíveis. Além de criar uma pressão significativa para coletar receitas, considerando as condições sobre as quais esses Estados foram erigidos, numa negociação entre Estado, capitalistas e sindicatos, a tributação regressiva foi vista como o “custo” a ser pago, se existe interesse em se ter um sistema de saúde universal, por exemplo. Por isso, como se verá, nossa análise empírica inclui o PIB per capita, o IED e o gasto público total em saúde (como uma proxy do esforço de um país em recorrer a políticas universais) em nosso vetor de variáveis de controle.

Portanto, incluindo em nossa análise relevantes variáveis de controle para compreender a política tributária, conforme se foca na sua relação com partidarismo, nossa contribuição é integrar uma característica distintiva de sistemas presidencialistas na região, a qual não foi considerada até aqui: governos de coalizão. Ao se investigar o efeito da ideologia sobre a política tributária na região, não basta capturar a ideologia do Executivo; é fundamental integrar a heterogeneidade ideológica de coalizões governamentais, avaliando como a mesma interage com a ideologia do Executivo6 6 Como Garay (2016) apontou, as políticas sociais propostas por governos de esquerda no Chile, em Lagos e Bachelet, foram restringidas, considerando as diferentes abordagens que os membros da coalizão governante tinha, frente à política social. Ainda que PS e PPD desejassem benefícios mais abrangentes e generosos, o DC era mais conservador, restringindo e diluindo as propostas originais dos dois primeiros. .

A introdução de governos de coalizão na análise de políticas públicas se deve à uma premissa básica. Suponha uma coalizão composta por três partidos, todos com posições e preferências similares. Uma vez no governo, esta coalizão tem uma chance maior de instituir mudanças políticas, de acordo com seus interesses. Alternativamente, se outra coalizão assumir o governo, tendo membros consideravelmente heterogêneos, conflitos vão emergir em discussões em torno das políticas que serão implementadas pelo governo, diminuindo suas chances de sucesso. Especialmente no caso de políticas redistributivas, como a tributária, dado seu intenso conflito político (Lowi, 1964Lowi, T. (1964). American Business, Public Policy, Case-Studies, and Political Theory. World Politics, 16(4), 677-715.).

Analisar o desenho de políticas públicas sem considerar como membros de coalizões são ideologicamente distintos entre si, pode desconsiderar como uma política se distanciou das preferências originais de seus membros. Em outras palavras, é preciso considerar “uma diferenciação conceitual entre preferências partidárias e posições de coalizão” (Jungblut, 2017Jungblut, J. (2017). From preferences to policies in coalition governments - Unpacking policy making in European higher education. Public Policy and Administration, 32(4), 323-348., p. 19).

Debus (2008Debus, M. (2008). Office and Policy Payoffs in Coalition Governments. Party Politics, 14(5), 515-538.) mostrou, por exemplo, como a preferência do partido chefe de uma coalizão impõe sua visão de maneira mais eficaz, analisando governos de coalizão na Áustria, Bélgica, Alemanha, Irlanda e Países Baixos. Embora a posição do partido chefe não se traduza, necessariamente, em mais assentos nos ministérios, a posição leva à uma maior prevalência de suas preferências em torno de políticas públicas.

Também deve se mencionar que conflitos entre coalizões pode ser mitigado, dependendo das instituições legislativas voltadas ao policiamento de membros do Legislativo (Martin & Vanberg, 2019Martin, L., & Vanberg, G. (2019). Coalition Government, Legislative Institutions, and Public Policy in Parliamentary Democracies. American Journal of Political Science, 64(2), 325-340.). Se existem instituições destinadas a aumentar o escrutínio de propostas ministeriais no Legislativo, as chances de acordos entre parceiros de coalizão aumentam, mesmo se são ideologicamente distantes. Assim, as instituições afetam as preferências de quem são consideradas na coalizão, levando ao que os autores chamaram de “drift ministerial”.

Contudo, e de maneira mais relevante, existem dois trabalhos que validam nossa premissa. Jungblut (2017Jungblut, J. (2017). From preferences to policies in coalition governments - Unpacking policy making in European higher education. Public Policy and Administration, 32(4), 323-348.) demonstra como, se membros de coalizões têm preferências similares, acordos de coalizão em torno de políticas públicas se tornam mais abrangentes. Esse foi o caso da região da North Rhine-Westphalia, um estado alemão, e das duas coalizões que introduziram reformas no ensino superior em 2005 e 2010. Como o autor demonstra, “homogeneidade ideológica pode levar a um maior detalhamento no acordo da coalizão” (Jungblut, 2017Jungblut, J. (2017). From preferences to policies in coalition governments - Unpacking policy making in European higher education. Public Policy and Administration, 32(4), 323-348., p. 5).

Finalmente, abordando a questão de por que promessas eleitorais são habitualmente descumpridas, Zuber e Klüver (2015)Zubek, R., & Klüver, H. (2015). Legislative pledges and coalition government. Party Politics, 21(4), 603-614. destacam como o conflito de coalizões na Polônia levou a atrasos no cumprimento de promessas eleitorais, se estas sequer eram cumpridas. O resultado foi compreendido como consequência de posições políticas conflitantes. Se este é o caso, parceiros de coalizão são mais meticulosos e céticos acerca das propostas de seus congêneres na coalizão, produzindo atrasos na instituição de políticas públicas, cumprindo com suas promessas eleitorais. Nesse cenário, a desconsideração de governos de coalizão - e a heterogeneidade ideológica dentro deles - é uma lacuna que deve ser preenchida.

3. METODOLOGIA

São quatro as principais fontes de dados a que este trabalho recorre. A primeira é a OECD Stat, banco que agrega estatísticas de arrecadação de países latino-americanos. O banco disponibiliza quanto esses países arrecadaram nos tributos incidentes sobre renda, lucros e ganhos de capital, grosso modo desde 1990, assim como quanto se arrecada na tributação de mercadorias e serviços. Os primeiros são chamados de tributos diretos, enquanto os segundos de indiretos. Deve-se destacar que as receitas de ambas medidas são restritas ao governo central apenas, sem incluir receitas de unidades subnacionais. Portanto, nossas duas variáveis dependentes são quanto tributos (in)diretos correspondem sobre a arrecadação tributária total para o país i no ano t7 7 Se existe interesse em analisar a mudança em arrecadação de um ano para outro, sob o argumento de que as variáveis dependentes propostas são estáticas e não capturam, efetivamente, mudanças na política tributária, no apêndice, apresentam-se os mesmos modelos, mas com variáveis dependentes que se referem às diferenças em arrecadação de cada país no ano t e t - 1. Os coeficientes estimados têm a mesma relação apresentada no corpo principal do trabalho, entre política tributária e partidarismo. .

A segunda base de dados é o projeto Parliamentary Elites in Latin America (PELA). Aplicado pela Universidad de Salamanca desde 1994 em todos os países latino-americanos, este é um survey de deputados das assembleias nacionais, coletando suas opiniões em diversos assuntos, ao longo de ondas de aplicação. Normalmente, o survey é aplicado no segundo ano de cada legislatura. Dentre todos os assuntos tratados no questionário, são três perguntas diferentes referentes à ideologia. A primeira é uma questão sobre o posicionamento político de no máximo seis partidos políticos naquele país, onde 1 indica extrema-esquerda e 10 extrema-direita. A segunda é a mesma escala, mas se pede para posicionar ideologicamente o partido do próprio respondente, ao passo que a terceira se refere ao posicionamento do deputado em si. São estas escalas que nos dão o posicionamento ideológico dos partidos, como se verá abaixo.

Contudo, pode ser o caso que o survey não lista um partido membro da coalizão governamental na primeira questão (Huber & Stephens, 2012bHuber, E., & Stephens, J. (2012b). Social Policy in Latin America and the Caribbean Dataset. Social Policy in Latin America and the Caribbean Dataset. Retrieved from http://huberandstephens.web.unc.edu/common -works/data/
http://huberandstephens.web.unc.edu/comm...
). Além disso, devido a não-respostas, alguns partidos pequenos que também podem fazer parte da coalizão não têm deputados sendo entrevistados. Portanto, para não perdermos observações país-ano, já que se perderiam membros da coalizão, estima-se uma média de posicionamento ideológico. O primeiro passo é estimar uma média, ao longo de todas as ondas do survey, do posicionamento ideológico dos partidos listados no questionário, dos partidos dos próprios respondentes e do dos deputados em si. Essas médias foram estimadas separadamente.

Considere o Partido dos Trabalhadores no Brasil, o principal partido de esquerda no país. Três médias ideológicas foram estimadas. Uma da avaliação feita de todos os respondentes do questionário, outra de representantes petistas e mais uma do posicionamento que petistas deram ao próprio partido. A média destas médias foi calculada e esta é a medida de ideologia usada na análise aqui. Se, por exemplo, um partido tinha apenas a medida dada por seus próprios representantes, esta é a medida ideológica usada no trabalho. Posteriormente, a escala foi invertida para que 10 representasse extrema-esquerda. Essa estimativa, para todos os partidos que um dia fizeram parte de alguma coalizão, junto com seu desvio padrão, pode ser encontrada no apêndice abaixo, na Tabela 4.

O posicionamento ideológico nos permite estimar a heterogeneidade ideológica de cada coalizão de nossa análise. Em outras palavras, tendo apenas o posicionamento ideológico de cada partido que é membro de uma coalizão, torna-se possível estimar a heterogeneidade ideológica de um gabinete. Na equação abaixo, x se refere à ideologia do Executivo (partido líder da coalizão) subtraída pela ideologia do partido xi (membro da coalizão), em termos absolutos, sobre o número total de partidos na coalizão. A fórmula foi obtida em outros artigos que analisaram a composição ideológica de diferentes governos brasileiros (Power & Zucco, 2009Power, T., & Zucco, C. (2009). Estimating ideology of Brazilian legislative parties, 1990-2005: A research communication. Latin American Research Review, 44(1), 218-246.; Silva, 2017Silva, V. (2017). Mecanismo de alinhamento de preferências em governos multipartidários: Controle de políticas públicas no presidencialismo brasileiro. Opinião Pública, 23(2), 429-458.).

H e t e r o g e n e i d a d e I d e o l ó g i c a i , t = n = 1 n x - x i n

Considere a coalizão boliviana em 1997. Este foi o último ano do mandato de Lozada, do MNR, o partido líder, cujo escore ideológico é de 3,53. Como parceiros de coalizão, o mesmo tinha o MBL e o UCS, respectivamente, 6,00 e 3,98. Assim, a heterogeneidade ideológica daquele ano seria dada pela soma da diferença absoluta entre os escores do MNR e do MBL, dividido por três, repetindo o procedimento para o UCS, totalizando 0,974. Finalmente, se um governo era composto por apenas um partido, então a heterogeneidade ideológica é igual a 0.

Deve-se destacar que todos os gabinetes para todos os países foram obtidos de Figueiredo, Canello, e Vieira (2012Figueiredo, A. C., Canello, J., & Vieira, M. (2012). Governos minoritários no presidencialismo latino-americano: Determinantes institucionais e políticos. Dados, 55(4), 839-875.), um banco de dados do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), nossa terceira fonte de dados para este trabalho. Considerando a informação coletada, na Tabela 1 se encontra a média de carga tributária, de tributos diretos e indiretos (em relação à receita tributária total), bem como a média de heterogeneidade ideológica por país. Finalmente, apresenta-se também o primeiro e último anos disponíveis para cada país de nossa análise.

TABELA 1
MÉDIA DE TRIBUTAÇÃO DIRETA, INDIRETA, HETEROGENEIDADE IDEOLÓGICA E PRIMEIRO E ÚLTIMO ANOS DE OBSERVAÇÕES

Refletindo como o país tem uma alta carga tributária para a região (Ondetti, 2015Ondetti, G. (2015). The roots of Brazil’s heavy taxation. Journal of Latin American Studies, 47(4), 749-779.), o Brasil tem a maior carga tributária média, em relação ao PIB, 33% aproximadamente. Em todos os países analisados, a arrecadação de tributos indiretos é mais importante do que a de diretos, destacando a conhecida regressividade dos sistemas tributários da região (Cepal, 2017Comisión Económica Para América Latina y el Caribe. (2017). Panorama Fiscal de América Latina y el Caribe: La movilización de recursos para el financiamiento del desarrollo sostenible. Retrieved from https://www.cepal.org/es/publicaciones/41044-panorama-fiscal-america-latina-caribe-2017-la-movilizacion-recursos
https://www.cepal.org/es/publicaciones/4...
). Reforça-se aquilo que Tanzi (2000Tanzi, V. (2000, December). Taxation in Latin America in the Last Decade (Working Paper, n. 76). Stanford, CA: Stanford University.) disse sobre como os países da América Latina são alérgicos à tributação direta.

Tratando-se de heterogeneidade ideológica, o Equador apresenta o maior índice (3,014). O resultado se deve ao governo de Alfredo Palacio, entre 2005 e 2006. Sua coalizão era composta por seu partido, Partido Sociedad Patriótica, o Pachakutik e o Movimiento Popular Democrático. A Colômbia tem a segunda maior heterogeneidade ideológica (1,414). Principalmente devido aos escores ideológicos do Partido de La Unidad Nacional, partido líder do governo de Uribe, também composto pelo PLC e PC. Argentina e Uruguai têm o menor nível de heterogeneidade ideológica, já que a maior parte de suas observações são de governos com apenas um partido, como o governo de Cristina Kirschner (FPV-PJ) e da Frente Ampla, respectivamente.

Como é crucial analisar este fenômeno com variáveis de controle, este trabalho recorre ao Social Policy in Latin America and the Caribbean Dataset, compilado por Huber e Stephens (2012bHuber, E., & Stephens, J. (2012b). Social Policy in Latin America and the Caribbean Dataset. Social Policy in Latin America and the Caribbean Dataset. Retrieved from http://huberandstephens.web.unc.edu/common -works/data/
http://huberandstephens.web.unc.edu/comm...
). Deste banco de dados, utilizamos as seguintes variáveis: PIB per capita real, IED (% do PIB), gastos públicos em saúde (% do PIB), todos podendo afetar os níveis de arrecadação de tributos diretos e indiretos, como discutido na seção acima.

O primeiro pode aumentar a arrecadação de ambos os tipos de tributos, já que conforme o PIB per capita aumenta, a base tributária potencial cresce (Cepal, 2017Comisión Económica Para América Latina y el Caribe. (2017). Panorama Fiscal de América Latina y el Caribe: La movilización de recursos para el financiamiento del desarrollo sostenible. Retrieved from https://www.cepal.org/es/publicaciones/41044-panorama-fiscal-america-latina-caribe-2017-la-movilizacion-recursos
https://www.cepal.org/es/publicaciones/4...
). IED, como porcentagem do PIB, é importante ser incluído na análise, uma vez que conforme cresce, pode haver um incentive negativo a se tributar o capital, o qual é parte da base sobre a qual tributos diretos incidem (Wibbles & Arce, 2003Wibbles, E., & Arce, M. (2003). Globalization, Taxation, and Burden-Shifting in Latin America. International Organization, 57(1), 111-136.). Enquanto gastos públicos em saúde, também como porcentagem do PIB, são incluídos, pois os mesmos podem levar ao aumento de tributos indiretos, considerando o aparente paradoxo entre políticas universais e sistemas tributários regressivos (Beramendi & Rueda, 2007Beramendi, P., & Rueda, D. (2007). Social Democracy Constrained: Indirect taxation in industrialized democracies. British Journal of Political Science, 37(4), 619-641.). Também incluímos uma variável que mensura a porcentagem de assentos da coalizão governamental. A lógica é que toda mudança legal depende da maioria parlamentar para ser aprovada, justificando sua inclusão nos modelos. Formalmente, nossa análise vai estimar a relação entre partidarismo e política tributária por meio da equação abaixo, utilizando os valores das variáveis independentes defasados em um ano.

T r i b u t o s I n D i r e t o t , i = I d e o l o g i a E x e c u t i v o t - 1 , i + H e t . I d e o l o g i c a C o a l i z ã o t - 1 , i + I d e o l o g i a E x e c u t i v o t - 1 , i * H e t . I d e o l o g i c C o a l i z ã o t - 1 , i + % d e A s s e n t o s t - 1 , i + P I B p e r c a p i t a r e a l t - 1 , i + I n v e s t i m e n t o E s t r a n g e i r o D i r e t o t - 1 , i + G a s t o s P ú b l i c o s S a ú d e t - 1 , i

Todas as especificações incluíram efeitos fixos de país. Na segunda especificação, incluímos uma variável dicotômica indicando se o país-ano é um governo de coalizão, ou tem um governo composto por um único partido, considerando a importância dada à heterogeneidade ideológica de uma coalizão governamental. Por fim, numa terceira especificação, excluem-se governos formados por apenas um partido. Nossas principais variáveis independentes de interesse são a ideologia do Executivo (um índice contínuo que vai até dez, indicando extrema-esquerda), o índice de heterogeneidade ideológica citado, além de um termo interativo entre os dois.

Ainda considerando a especificação de nosso modelo, estima-se a arrecadação de tributos diretos e indiretos por meio de regressões beta, uma vez que nossas variáveis dependentes são proporções restritas entre 0 e 1. Regressões OLS poderiam gerar estimativas enviesadas, permitindo valores preditos que não respeitam as limitações empíricas de nossos dados, produzindo resultados ilógicos. Por isso, regressões beta são a técnica adequada para investigar as proporções de interesse deste artigo. Tal método foi desenvolvido por Ferrari e Chibari-Neto (2004Ferrari, S., & Cribari-Neto, F. (2004). Beta Regression for Modelling Rates and Proportions. Journal of Applied Statistics, 31(7), 799-815.) e desenvolvido por Simas et al. (2010Simas, A., Barreto-Souza, W., & Rocha, A. (2010). Improved estimators for a general class of beta regression models. Computational Statistics and Data Analysis, 54(2), 348-366.). Nesse caso, os parâmetros são estimados por máximo verossimilhança. Finalmente, considerando as características de nossa variável dependente, a função de ligação utilizada foi a de identidade.

4. RESULTADOS

Começamos apresentando os resultados relacionados à tributação direta na Tabela 2. Em todas as especificações e isoladamente, um Executivo de esquerda é positivamente associado à tributação direta. A associação positiva aumenta, à medida que se vai do primeiro ao terceiro modelo, excluindo da análise aqueles governos compostos por apenas um partido. PIB per capita real tem os sinais esperados, sendo estatisticamente significante, enquanto IED e gastos públicos em saúde aparentemente não afetam os níveis de arrecadação de tributação direta. Embora foquemos nos efeitos combinados de ideologia e heterogeneidade abaixo, esses modelos já dão indícios de que Executivos de esquerda estão positivamente associados a sistemas tributários que poderiam ser considerados mais progressivos sob uma perspectiva comparada.

TABELA 2
REGRESSÕES BETA EM TRIBUTAÇÃO DIRETA (% DE RECEITA TRIBUTÁRIA TOTAL)

Quando se analisa a relação entre partidarismo e tributação indireta, o cenário invertido se apresenta. Em outras palavras, se Executivos de esquerda estão associados a níveis mais altos de tributos diretos, em relação à tributação indireta, Executivos com essa ideologia têm uma associação negativa. Os resultados indicam que Executivos de esquerda têm alguma iniciativa em tornar a política tributária mais progressiva, conforme as expectativas da teoria de constelação de poder (Huber & Stephens, 2012aHuber, E., & Stephens, J. (2012a). Democracy and the Left: Social policy and inequality in Latin America. Chicago, IL: Chicago University Press.).

Considerando as variáveis de controle incluídas na análise de tributação indireta, PIB per capita real tem uma associação negativa, como os gastos públicos em saúde. Embora mais análises sejam necessárias no assunto, aparentemente, conforme o PIB per capita aumenta, a base tributária potencial de renda, lucros e ganhos de capital cresce também, permitindo uma menor tributação do consumo. Tratando-se dos gastos com saúde, não existem indícios de que o aparente paradoxo entre sistemas tributários regressivos e políticas universais se mantém na América Latina (Beramendi & Rueda, 2007Beramendi, P., & Rueda, D. (2007). Social Democracy Constrained: Indirect taxation in industrialized democracies. British Journal of Political Science, 37(4), 619-641.). Finalmente, IED está positivamente associado à tributação regressiva, indicando a necessidade de se investigar de maneira mais meticulosa a relação entre tributação regressiva e globalização (Wibbles & Arce, 2003Wibbles, E., & Arce, M. (2003). Globalization, Taxation, and Burden-Shifting in Latin America. International Organization, 57(1), 111-136.).

TABELA 3
REGRESSÕES BETA EM TRIBUTAÇÃO INDIRETA (% DE RECEITA TRIBUTÁRIA TOTAL)

Na Figura 1, apresentam-se os valores preditos para arrecadação dos tributos incidentes sobre renda, lucros e ganhos de capital em relação à arrecadação tributária total. Mantendo as variáveis de controle em seus valores médios, além de fixar a porcentagem de assentos da coalizão governamental em 55%, com o terceiro modelo da Tabela 2, ilustra-se os valores preditos para tributação direta ao longo da escala ideológica do Executivo, dividindo os resultados em dois grupos diferentes de heterogeneidade ideológica. Em outras palavras, estimamos os valores preditos nos casos em que a heterogeneidade ideológica é, hipoteticamente, igual ao valor observado no 30º percentil de nossa distribuição de heterogeneidade - níveis “baixos” de heterogeneidade ideológica - e outra para casos em que a heterogeneidade ideológica é igual ao índice em seu 90º percentil - níveis “extremos” de heterogeneidade.

Por um lado, no 30º percentil de nossa distribuição de heterogeneidade, o índice é igual a 0,0127, semelhante ao gabinete visto no Uruguai em 2001 e 2002 (Partido Colorado e Partido Nacional). Por outro, o índice chega a 1,644 no 90º percentil, próximo ao valor observado na Bolívia entre 1998 e 1999 (gabinete composto por ADN, MIR, CONDEPA, UCS e NFR), por exemplo.

FIGURA 1
PREDITOS DE TRIBUTAÇÃO DIRETA (% DE RECEITA TRIBUTÁRIA TOTAL), MODELO 3

Como pode ser visto na Figura 1, Executivos consistentemente de esquerda estão associados a maiores níveis de tributação direta, uma ferramenta progressiva da política tributária. No eixo horizontal, um Executivo de esquerda, na marca dos 7,5 pontos, próximo ao posicionamento ideológico do partido boliviano Movimiento al Socialismo, prevê 40% de tributação direta, em relação à carga tributária total. Isso significa aproximadamente 5 pontos percentuais a mais de tributação progressiva do que o Chile, país latino-americano com a maior média de arrecadação de tributos diretos. Comparativamente, um Executivo de direita na marca dos dois pontos, como a UDI no Chile, prevê um total de 15% na arrecadação destes tributos, equivalente à arrecadação do Peru nesse tipo de tributação. Portanto, o componente da coalizão é crucial para se investigar a relação entre partidarismo e política tributária.

FIGURA 2
PREDITOS DE TRIBUTAÇÃO INDIRETA (% DE RECEITA TRIBUTÁRIA TOTAL), MODELO 6

Um cenário completamente diferente emerge quando se analisa a Figura 2, a qual apresenta os níveis preditos de arrecadação de tributos indiretos. Governos homogêneos de (direita)esquerda estão sistematicamente associados a (maiores)menores níveis de arrecadação de tributos incidentes sobre mercadorias e serviços.

Quando se trata de governos ideologicamente heterogêneos, os resultados em termos de políticas públicas aparentam ser diferentes das preferências originais do partido do Executivo. Independente do tipo de tributo, Executivos de esquerda com extrema heterogeneidade ideológica têm maiores níveis de arrecadação com tributos indiretos e níveis mais baixos de arrecadação com tributos diretos. O mesmo pode ser dito de governos liderados por Executivos de direita, ou seja, maiores níveis de tributação direta e menores de tributação indireta em governos heterogêneos, quando comparados a governos homogêneos da mesma ideologia.

Como anteriormente destacado, governos que são ideologicamente heterogêneos têm mais conflitos na instituição de mudanças em políticas públicas, dadas as distintas preferências que a coalizão apresenta. Coalizões que são ideologicamente homogêneas tendem a forjar compromissos mais abrangentes em suas agendas de política pública (Jungblut, 2016Jungblut, J. (2017). From preferences to policies in coalition governments - Unpacking policy making in European higher education. Public Policy and Administration, 32(4), 323-348.), ao passo que divergências ideológicas dentro da coalizão levam ao distanciamento das preferências originais dos partidos, produzindo paralisia decisória ou mudanças políticas sub-ótimas (Zuber & Klüver, 2013Zubek, R., & Klüver, H. (2015). Legislative pledges and coalition government. Party Politics, 21(4), 603-614.).

Contudo, conforme a interação entre a ideologia do Executivo e a heterogeneidade de sua coalizão destaca, há um aparente policy drift, quando gabinetes são ideologicamente diferentes. Martin e Vanberg (2019Martin, L., & Vanberg, G. (2019). Coalition Government, Legislative Institutions, and Public Policy in Parliamentary Democracies. American Journal of Political Science, 64(2), 325-340.), por exemplo, mostram como existe um drift ministerial se existem instituições legislativas capazes de escrutinizar proposições ministeriais, levando a mudanças nas propostas originalmente encaminhadas por um membro do governo. O caso latino-americano ilustra como esse drift também pode ocorrer em diferentes contextos institucionais, numa política redistributiva, como a tributária.

5. CONCLUSÕES

Este trabalho começou questionando qual era o efeito do partidarismo sobre a política tributária na América Latina, sob uma perspectiva redistributiva. A incerteza em torno da preferência de diferentes ideologias sobre a política tributária requer uma análise comparada, a partir do que já se produziu em estudos qualitativos. Ao mesmo tempo, nenhum trabalho no tema incorporou um traço distintivo da política latino-americana: coalizões. O principal objetivo era endereçar esta questão, considerando uma característica pouco explorada da política da região.

A importância de se discutir o componente de governos de coalizão é derivado de uma premissa básica, na qual conforme uma coalizão se torna mais heterogênea em termos de preferências, conflitos podem surgir, produzindo políticas que são diferentes das preferências originais de seus membros. Trabalhos anteriores (Debus, 2008Debus, M. (2008). Office and Policy Payoffs in Coalition Governments. Party Politics, 14(5), 515-538.; Jungblut, 2016Jungblut, J. (2017). From preferences to policies in coalition governments - Unpacking policy making in European higher education. Public Policy and Administration, 32(4), 323-348.; Martin & Vanberg, 2019Martin, L., & Vanberg, G. (2019). Coalition Government, Legislative Institutions, and Public Policy in Parliamentary Democracies. American Journal of Political Science, 64(2), 325-340.; Zuber & Klüver, 2013Zubek, R., & Klüver, H. (2015). Legislative pledges and coalition government. Party Politics, 21(4), 603-614.) exploraram como a heterogeneidade ideológica de coalizões contribuiu para policy drift, paralisia decisória e o não cumprimento de promessas eleitorais.

Porém, nem partidarismo tem um efeito consensual sobre a política tributária, o principal foco deste trabalho. Duas hipóteses emergem a respeito desta relação, de acordo com a literatura. A primeira reproduziria a preferência que governos de esquerda têm com todas políticas redistributivas, fazendo com que estes se engajassem numa política tributária progressiva (Castañeda, 2017Castañeda, N. (2017). Business Coordination and Tax Politics. Political Studies, 65(1), 122-143.; Esping-Andersen, 1985Esping-Andersen, G. (1985). Politics Against Markets: The social-democratic road to power. Princeton, NJ: Princeton University Press.; Huber & Stephens, 2012aHuber, E., & Stephens, J. (2012a). Democracy and the Left: Social policy and inequality in Latin America. Chicago, IL: Chicago University Press.; Stein & Caro, 2017Stein, E., & Caro, L. (2017). Ideology and Taxation in Latin America. Economía, 17(2), 1-27.). Ao passo que outra teoria viu a política tributária como parte de uma barganha política, não como um instrumento para coagir opositores políticos (Timmons, 2010Timmons, J. (2010). Taxation and Credible Commitment: Left, Right, and Partisan Turnover. Comparative Politics, 42(2), 207-227.). Portanto, neste caso, governos de direita teriam melhores chances de instituir mudanças progressivas, pois conseguiriam barganhar com elites e empresariado por mudanças progressivas, as compensando com outra política. Um compromisso crível teoricamente indisponível a partidos de esquerda.

Analisando como diferentes tipos de tributos variaram por toda América Latina, seja considerando quanto arrecadam ou diferenças anuais em receitas (ver Apêndice), dois importantes resultados foram encontrados. Primeiro, tomando tributos diretos - incidentes sobre a renda, lucros, ganhos de capital e patrimônio - como proxy para tributação progressiva, enquanto tributos incidentes sobre mercadorias e serviços (tributos indiretos) seriam regressivos, Executivos de esquerda estiveram associados à uma maior arrecadação entre os primeiros, e níveis menores no segundo. Inicialmente, isso indica como governos desta ideologia têm alguma iniciativa em tornar a política tributária mais progressiva.

Segundo, introduzindo o componente da coalizão na análise, é possível observar que governos ideologicamente heterogêneos apresentam policy drift, distanciando-se das preferências originais de seus membros. Nesse caso, governos heterogêneos, liderados por Executivos de esquerda, têm previstos (maiores) menores níveis de tributos (indiretos) diretos do que governos da mesma ideologia, mas homogêneos em termos da ideologia de sua coalizão. O oposto do que pode ser dito sobre governos de direita.

Considerando a política tributária, os resultados indicam quão importante é levar em conta a composição da coalizão de um governo, já que esta pode introduzir policy drift, à luz das evidências de que as preferências originais de partidos são alteradas no desenho de políticas públicas. Futuros trabalhos devem incluir a composição de um governo na análise do desenho adotado por determinadas políticas públicas, explorando o mecanismo pelo qual esse drift ocorre, um promissor campo de pesquisa.

AGRADECIMENTOS

O autor gostaria de agradecer ao David Rockefeller Center for Latin American Studies (DRCLAS) da Universidade Harvard por financiar este artigo.

APÊNDICE

TABELA 4
IDEOLOGIA DE PARTIDOS LATINO-AMERICANOS
TABELA 5
REGRESSÃO EM PAINEL SOBRE A DIFERENÇA EM ARRECADAÇÃO DE TRIBUTOS DIRETOS
TABELA 6
REGRESSÕES EM PAINEL PARA DIFERENÇA EM ARRECADAÇÃO DE TRIBUTOS INDIRETOS

REFERENCES

  • Alcántara, M.(2018). Elites Latinoamericanas de la Universidad de Salamanca (PELA-USAL) Retrieved fromhttps://oir.org.es/pela/bases-datos-paises/
    » https://oir.org.es/pela/bases-datos-paises/
  • Beramendi, P., & Rueda, D. (2007). Social Democracy Constrained: Indirect taxation in industrialized democracies. British Journal of Political Science, 37(4), 619-641.
  • Boix, C. (1998). Political Parties, Growth and Equality: Conservative and social democratic economc strategies in the world economy Cambridge, UK: Cambridge University Press.
  • Castañeda, N. (2017). Business Coordination and Tax Politics. Political Studies, 65(1), 122-143.
  • Comisión Económica Para América Latina y el Caribe. (2017). Panorama Fiscal de América Latina y el Caribe: La movilización de recursos para el financiamiento del desarrollo sostenible Retrieved from https://www.cepal.org/es/publicaciones/41044-panorama-fiscal-america-latina-caribe-2017-la-movilizacion-recursos
    » https://www.cepal.org/es/publicaciones/41044-panorama-fiscal-america-latina-caribe-2017-la-movilizacion-recursos
  • Debus, M. (2008). Office and Policy Payoffs in Coalition Governments. Party Politics, 14(5), 515-538.
  • Esping-Andersen, G. (1985). Politics Against Markets: The social-democratic road to power Princeton, NJ: Princeton University Press.
  • Fairfield, T. (2011). Business Power and Protest: Argentina’s Agricultural Producers Protest in Comparative Context. Studies in Comparative International Development, 46(4), 424-453.
  • Fairfield, T. (2015). The political economy of progressive tax reform in Chile. In Progressive tax reform in Latin America(pp. 30-56). Washington, DC: Wilson Center.
  • Fairfield, T., & Garay, C. (2017). Redistribution Under the Right in Latin America: Electoral Competition and Organized Actors in Policymaking. Comparative Political Studies, 50(14), 1871-1906.
  • Ferrari, S., & Cribari-Neto, F. (2004). Beta Regression for Modelling Rates and Proportions. Journal of Applied Statistics, 31(7), 799-815.
  • Figueiredo, A. C., Canello, J., & Vieira, M. (2012). Governos minoritários no presidencialismo latino-americano: Determinantes institucionais e políticos. Dados, 55(4), 839-875.
  • Flores-Macías, G. (2014). Financing Security Through Elite Taxation: The case of Colombia’s “Democratic Security Taxes”. Studies in Comparative International Development, 49(4), 477-500.
  • Garay, C. (2016). Social Policy Expansion in Latin America Cambridge, UK: Cambridge University Press.
  • Goñi, E., López, H., & Servén, L. (2011). Fiscal redistribution and income inequality in Latin America. World Development, 39(9), 1558-1569.
  • Hibbs, D. (1977). Political Parties and Macroeconomic Policy. American Political Science Review, 71(4), 1467-1487.
  • Holland, A., & Schneider, B. R. (2017). Easy and Hard Redistribution: The political economy of Welfare States in Latin America. Perspective on Politics, 15(4), 988-1006.
  • Huber, E., & Stephens, J. (2012a). Democracy and the Left: Social policy and inequality in Latin America Chicago, IL: Chicago University Press.
  • Huber, E., & Stephens, J. (2012b). Social Policy in Latin America and the Caribbean Dataset. Social Policy in Latin America and the Caribbean Dataset Retrieved from http://huberandstephens.web.unc.edu/common -works/data/
    » http://huberandstephens.web.unc.edu/common -works/data/
  • Jungblut, J. (2017). From preferences to policies in coalition governments - Unpacking policy making in European higher education. Public Policy and Administration, 32(4), 323-348.
  • Lowi, T. (1964). American Business, Public Policy, Case-Studies, and Political Theory. World Politics, 16(4), 677-715.
  • Martin, L., & Vanberg, G. (2019). Coalition Government, Legislative Institutions, and Public Policy in Parliamentary Democracies. American Journal of Political Science, 64(2), 325-340.
  • Meltzer, A. H., & Richard, S. F. (1981). A Rational Theory of the Size of Government. Journal of Political Economy, 89(5), 914-927. Retrieved from https://doi.org/10.1086/261013
  • Oliveira, F. A., & Biasoto, G. (2017). A Reforma Tributária: Removendo entraves para o crescimento, a inclusão social e o fortalecimento da federação. In J. R. Afonso, M. R. Lukic, R. O. Orair, & F. G. Silveira (Orgs.), Tributação e Desigualdade Belo Horizonte, MG: Letramento.
  • Ondetti, G. (2015). The roots of Brazil’s heavy taxation. Journal of Latin American Studies, 47(4), 749-779.
  • Power, T., & Zucco, C. (2009). Estimating ideology of Brazilian legislative parties, 1990-2005: A research communication. Latin American Research Review, 44(1), 218-246.
  • Rius, A. (2015). The Uruguayan tax reform of 2006: Why didn’t it fail? In J. E. Mahon Jr., M. Bergman, & C. J. Arnson (Eds.), Progressive tax reform in Latin America(pp. 64-100). Washington, DC: Wilson Center. Retrieved from https://www.wilsoncenter.org/publication/progressive-tax-reform-and-equality-latin-america-no-35
    » https://www.wilsoncenter.org/publication/progressive-tax-reform-and-equality-latin-america-no-35
  • Silva, V. (2017). Mecanismo de alinhamento de preferências em governos multipartidários: Controle de políticas públicas no presidencialismo brasileiro. Opinião Pública, 23(2), 429-458.
  • Simas, A., Barreto-Souza, W., & Rocha, A. (2010). Improved estimators for a general class of beta regression models. Computational Statistics and Data Analysis, 54(2), 348-366.
  • Stein, E., & Caro, L. (2017). Ideology and Taxation in Latin America. Economía, 17(2), 1-27.
  • Tanzi, V. (2000, December). Taxation in Latin America in the Last Decade (Working Paper, n. 76). Stanford, CA: Stanford University.
  • Timmons, J. (2010). Taxation and Credible Commitment: Left, Right, and Partisan Turnover. Comparative Politics, 42(2), 207-227.
  • Wibbles, E., & Arce, M. (2003). Globalization, Taxation, and Burden-Shifting in Latin America. International Organization, 57(1), 111-136.
  • Zubek, R., & Klüver, H. (2015). Legislative pledges and coalition government. Party Politics, 21(4), 603-614.
  • 1
    “O grosso dos tributos deve ser coletado entre as maiores faixas de renda, as quais são compostas por trabalhadores e empregados gerenciais de médio escalão”. Do original: “The bulk of taxes must be collected among the largest income brackets, and that happens to be workers and middle-level white-collar employees” (Esping-Andersen, 1985, p. 35).
  • 2
    Embora não esteja necessariamente relacionado à integração de grupos de interesse ao processo de formulação de políticas públicas, a rejeição do aumento do imposto sobre exportações agrícolas na Argentina, devido à intensa mobilização de produtores, destaca a importância do engajamento do empresariado no desenho da política tributária (Fairfield, 2011Fairfield, T. (2011). Business Power and Protest: Argentina’s Agricultural Producers Protest in Comparative Context. Studies in Comparative International Development, 46(4), 424-453.). Alternativamente, apesar de diversas tentativas de uma reforma tributária abrangente, o Brasil não viu nenhuma modificação tributária relevante, em termos de progressividade (Oliveira & Biasoto, 2017).
  • 3
    A principal diferença entre os dois é que o imposto de renda cedular divide a cobrança do imposto em diferentes fontes de renda, como trabalho, capital e lucro, por exemplo. Ao passo que o imposto de renda global agrega rendimentos de fontes diferentes, potencialmente aumentando a progressividade e a carga do imposto de renda, comparado com o modelo cedular.
  • 4
    IVA é a sigla para imposto sobre valor adicionado, incidente sobre mercadorias e serviços. Portanto, é um tipo de tribute indireto.
  • 5
    É importante destacar que existiram duas mudanças tributárias diferentes objetos de estudos de caso no Chile. A primeira foi descrita por Fairfield (2015), durante a presidência de Lagos, encaixando-se na hipótese de que partidos de esquerda estariam associados à uma política tributária progressiva. A segunda foi instituída pelo governo conservador de Piñera em 2011, descrita por Fairfield e Garay (2017).
  • 6
    Como Garay (2016Garay, C. (2016). Social Policy Expansion in Latin America. Cambridge, UK: Cambridge University Press.) apontou, as políticas sociais propostas por governos de esquerda no Chile, em Lagos e Bachelet, foram restringidas, considerando as diferentes abordagens que os membros da coalizão governante tinha, frente à política social. Ainda que PS e PPD desejassem benefícios mais abrangentes e generosos, o DC era mais conservador, restringindo e diluindo as propostas originais dos dois primeiros.
  • 7
    Se existe interesse em analisar a mudança em arrecadação de um ano para outro, sob o argumento de que as variáveis dependentes propostas são estáticas e não capturam, efetivamente, mudanças na política tributária, no apêndice, apresentam-se os mesmos modelos, mas com variáveis dependentes que se referem às diferenças em arrecadação de cada país no ano t e t - 1. Os coeficientes estimados têm a mesma relação apresentada no corpo principal do trabalho, entre política tributária e partidarismo.
  • [Artigo traduzido]

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Feb 2022

Histórico

  • Recebido
    07 Abr 2021
  • Aceito
    15 Nov 2021
Fundação Getulio Vargas Fundaçãoo Getulio Vargas, Rua Jornalista Orlando Dantas, 30, CEP: 22231-010 / Rio de Janeiro-RJ Brasil, Tel.: +55 (21) 3083-2731 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: rap@fgv.br