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Eros e civilização

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Jorge Mitre

Eros e civilização

Por Herbert Marcuse. 5 ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1972.

A questão central que Marcuse procura desvendar é a possibilidade de uma civilização não-repressiva. Ele parte do axioma de Freud segando o qual toda civilização funda-se sobre a repressão dos instintos, mostrando como ela se origina tanto no indivíduo como na espécie. Mostra como a história da civilização e do progresso é a história da repressão e como a filosofia ocidental ao enfatizar a razão em detrimento da sensualidade, serviu como lógica da dominação. Ao longo do processo de repressão há sempre a volta do reprimido (dominação-rebelião-dominação). É a memória que o homem tem de seu passado, é a herança arcaica do ego individual, que preserva o conteúdo reprimido e está sempre em luta pela plena glorificação perdida.

No contexto da personalidade ou da estrutura psíquica do indivíduo o conteúdo instintivo é representado pelo id. O ego é formado a partir do id e sua função é adaptar o indivíduo à realidade. Assim temos a passagem do princípio de prazer para o princípio de realidade (da ordem instintiva para a racional). O superego surge da dependência da criança em relação aos seus pais. Tem portanto um conteúdo reacionário. Pressiona o ego na adaptação à realidade.

Em nossa civilização o princípio de realidade é denominado por Marcuse de princípio de desempenho, significando sua forma histórica específica de repressão e dominação. Aduz ainda o conceito de mais-repressão (divisão hierárquica do trabalho, controle público da existência privada, etc.) para designar as instituições de perpetuação da dominação.

Todo esse mecanismo tem a finalidade de reprimir os instintos, sobretudo a sexualidade, porque se largados a si mesmos, inverteriam a ordem social e o homem não dominaria a escassez. Foi por causa da escassez que se iniciou a dominação.

Hoje a dominação (desempenho) está firmemente estabelecida nas instituições e controles da civilização industrial e a repressão não só é mais intensificada como também adquiriu um caráter impessoal (correspondente à organização monopolista e ao declínio da família como agência de educação). Se num primeiro momento a dominação ou repressão foi necessária para que o homem se libertasse da escassez, atualmente ele já possui os meios de eliminá-la: há, portanto, um interesse na dominação pela dominação.

Entretanto, se os instintos manifestam-se segundo o princípio de desempenho, sofrem modificações históricas. E se o processo histórico propender para tornar as instituições obsoletas haverá modificações nos instintos. Marcuse não vê isso em termos de utopia mas do princípio de realidade estabelecido contraposto ao princípio de prazer. As forças capazes de conduzir historicamente essa transformação para uma sociedade não-repressiva seriam as forças conscientes que se mantêm livres do princípio de realidade (intelectuais, artistas, etc.). Permanece, porém, que "a imagem de uma diferente forma de realidade surgiu como expressão da verdade de um dos processos mentais básicos; essa imagem contém a perdida unidade entre o universal e o particular, assim como a integral gratificação dos instintos pela reconciliação entre os princípios de prazer e de realidade" (p. 137).

Marcuse procura nos mitos de Orfeu e Narciso (contra Prometeu) o símbolo para um novo princípio de realidade não-repressivo em que a ordem não se baseie na dominação, em que a sexualidade se expanda realizando-se através de ligações duradouras. A fantasia assume uma nova dignidade diante da razão ao procurar a liberdade. Ao ver a possibilidade de libertação dos instintos Marcuse propõe uma modificação na equação de Freud de "repressão instintiva-labor socialmente útil-civilização" para "libertação instintiva-labor socialmente útil-civilização". "Sugerimos que a repressão instintiva predominante resultou não tanto da necessidade de esforço laboral, mas da organização específica do trabalho, Imposta pelos interesses de dominação; essa repressão era substancialmente mais-repressão. Por conseqüência, a eliminação da mais-repressão tenderia per se a eliminar não a atividade laboral, mas a organização da existência humana como instrumento de trabalho. Sendo assim, a emergência de um princípio de realidade não-repressivo modificaria, mas não destruiria, a organização social do trabalho; a libertação de Eros poderia criar novas e duradouras relações de trabalho" (p. 143).

Uma vez libertado do trabalho alienado, o homem poderá desenvolver suas potencialidades não permitidas numa organização repressiva. O conflito entre o indivíduo e a sociedade daria lugar ao livre jogo de uma vida onde o particular e o universal convergiriam harmonicamente. O teste para isso está na sexualidade; isto é, se tais instintos "puderem em virtude de sua própria dinâmica e sob condições existenciais e sociais mudadas gerar relações eróticas duradouras entre indivíduos maduros" (p. 175).

O que faz o homem procurar tal ordem é a memória, que o guia na procura do tempo perdido. Entretanto, "o relembrar não constitui uma arma verdadeira, a menos que seja traduzido em ação histórica" (p. 201).

A abordagem de Freud é evolutiva e biológica. Há um ciclo de dominação-rebelião-dominação para o qual Freud acredita não haver saída. A cada ato de libertação (morte do pai, rei, etc.) há o aparecimento de um sentimento de culpa que é ¡ntrojetado e leva o libertado a ser por sua vez o novo dominador. No nível social Marcuse mostra como às revoluções seguiram-se restaurações (p. 92). Na perspectiva marxista isto é historicamente contestado. Isaac Deutscher, por exemplo, em A revolução inacabada, mostra que a Revolução Russa não sofreu restauração e que esse fato não tem precedentes na História das Revoluções (não nega, é claro, certos desvios e quebras na continuidade revolucionária) O processo, revolucionário russo, segundo ele, não foi revertido depois de 50 anos de lutas. A Revolução Chinesa também até agora, se bem que sua experiência seja curta, tem caminhado sem reversão. A perspectiva marxista enfatiza mais a contradição entre os meios de produção e as relações de produção, enquanto a psicanálise coloca tal dinâmica numa base instintiva (biológica). O marxismo propõe uma saída histórica para a liberdade. As transformações sociais são produtos das contradições da própria sociedade que sofre a ação do homem ao mesmo tempo que o faz. A psicanálise, segundo Marcuse, coloca a libertação em processos inconscientes, de onde provém a fantasia (retorno do reprimido) que criaria a utopia. Esta assume a dignidade da liberdade e é validada politicamente. Ora, o marxismo não aceita a utopia. Marcuse é então levado a condicionar o valor da utopia ao seu poder de transformação histórica. Só assim é que, a nosso ver, sua proposição adquire valor, uma vez que interfere na história e na política.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 1974
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