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Notas sobre o papel das classes médias e do aparelho de estado nas sociedades em desenvolvimento

ARTIGOS

Notas sobre o papel das classes médias e do aparelho de estado nas sociedades em desenvolvimento* * Publicado originalmente na revista L'Homme et la Société, n. 24/25, 186-207, 1972, sob o título Notes sur le système du sous-développement, le rôle de l'État et le concept de classes moyennes modernes; traduzido por M.Th. da Costa Albuquerque e revisto pelo autor.

J. A. Guillon-Albuquerque

Professor-Doutor em Ciências Políticas do Departamento de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo

Os acontecimentos recentes da Argentina e do Chile chamam a atenção para a perplexidade dos sociólogos e cientistas políticos diante da interpretação a ser dada às camadas médias urbanas latino-americanas, às suas orientações, condutas e atitudes. Basicamente, essa interpretação oscila entre a noção clássica de pequena burguesia e a idéia de classes médias modernas. Neste trabalho, procuraremos mostrar a impossibilidade de se situar uma camada social dentro do sistema social englobante, através do mero apelo a uma concepção ontológica da sociedade e dos grupos que a compõem, sem levar-se em conta a maneira particular segundo a qual se organiza a produção econômica em cada sociedade dada. E que não se pode compreender esse modo de organização da produção econômica, nos países ditos subdesenvolvidos, sem fazer apelo a uma tipologia da colonização, isto é, um instrumento de análise da maneira como a economia européia articulou-se à economia dos países colonizados. Mais particularmente, insistimos sobre o papel fundamental desempenhado pelas formas do Estado nessa articulação.

Após um exame dos pressupostos do conceito de classes médias modernas - que não tem outro objetivo senão o de demonstrar seu caráter normativo e residual - em que se procura mostrar a vinculação, em última análise, dessa noção à teoria weberiana das origens do capitalismo, tenta-se apresentar as bases para uma tipologia dos modos de organização da produção econômica nos países colonizados, no período da primeira expansão do capitalismo. Em seguida, esboça-se uma análise do papel desempenhado pelo Estado nesses tipos de formação social, o que permite situar, no caso que nos interessa mais de perto - o da América Latina - uma nova conceituação das camadas médias urbanas.

Finalmente, tenta-se aplicar esta reformulação do conceito a um caso concreto, levantando-se a hipótese de uma reinterpretação do que foi a aliança populista, com base na maneira de encarar as camadas médias urbanas que propomos no corpo do artigo.

O conceito de classes médias modernas é um conceito residual e normativo. Não se trata, portanto, de um conceito no sentido estrito. É residual, porque não se pode situar seu objeto - as camadas médias da população urbana - no sistema de classes, segundo os mesmos critérios que servem para situar os outros elementos do sistema. Além disso, o aspecto residual é também revelado pelo adjetivo modernas, que serve para distinguir este setor da população das antigas classes médias: a pequena burguesia, por um lado e, por outro, os notáveis das sociedades agrárias. E por meio deste termo que o aspecto normativo se introduz também no conceito. A idéia de classes médias modernas refere-se à idéia de classes modernizadoras, de classes que estão na origem da industrialização.

O aspecto normativo é, portanto, ligado ao caráter residual do conceito, e deriva do papel geralmente atribuído às classes médias na análise da industrialização dos Estados Unidos. As práticas econômicas, os valores e as qualidades psicológicas das classes médias modernas americanas são tidos como fatores que produziram a industrialização e desempenharam o papel de modelo para o conjunto da sociedade. Para que isto seja verdade é preciso que esta classe tenha aparecido num momento determinado - recente - da história, e que seja uma nova classe: moderna. A diferenciação histórica das populações urbanas - a burguesia no sentido primitivo do termo - em setores distintos da atividade econômica, bem como em setores diversos do sistema social é incompatível com a idéia de classes médias modernas. Se a industrialização é tida como tendo sido iniciativa exclusiva das classes médias modernas americanas, estas últimas não podem, no espírito dos teóricos das classes médias, ter tido a mesma origem que as burguesias agrárias do Sul dos Estados Unidos.

A hipótese de uma diferenciação da pequena burguesia emigrada para a América em burguesia agrária, burguesia financeira e burguesia industrial (classes médias modernas) é, efetivamente, incompatível com a idéia de um sistema de valores, de práticas e de qualidades psicológicas ontologicamente ligadas a esta camada social portadora de modernidade.

Nos países em desenvolvimento onde existe uma população urbana importante, as camadas médias desta população freqüentemente exercem um tipo de atividade comparável, ou então se definem segundo um sistema de valores semelhante, ou, ainda, têm origem social (pequena burguesia emigrada) idêntica às atividades, valores e origens das classes médias americanas. Jamais, no entanto, nestas camadas médias urbanas dos países subdesenvolvidos, estas três características são ao mesmo tempo idênticas às características outrora reunidas nos Estados Unidos.

A conotação normativa do conceito revela-se, assim, como o resultado desta confusão formal que consiste em definir um conceito, ao mesmo tempo, pelas variáveis independentes e dependentes, sem fazer alusão à intervenção de variáveis contextuais.

O papel empresarial desempenhado pelas classes médias é, justamente, uma variável dependente, um explanandum. A variável independente - explanans - é a origem social, ou o sistema de valores desta população, ou os dois; nas três hipóteses, a variável independente não basta para explicar o papel empresarial - não é, portanto, suficiente para constituir um explanans - a não ser que se leve em consideração o contexto. A variável contextual é, neste caso, o tipo de imigração que depende, por sua vez, do tipo de colonização.1 1 É necessário acrescentar uma dificuldade suplementar, o tipo de atividade econômica de um setor da população seria outra coisa que não o papel econômico por ela desempenhado? Em outras palavras, é o tipo de atividade econômica das classes médias modernas outra coisa do que seu papel empresarial? De fato, um dos elementos do explanandum encontra-se, também, no explanans, o que certos teóricos estruturalistas chamam de papel especular de um elemento teórico.

Compreendemos, assim, que o conceito de classes médias modernas não é um conceito mas toda uma teoria; e uma teoria incompleta, não generalizável que podemos resumir da seguinte maneira:

a) são os valores que produzem a história;

b) são os valores de classe média (ascéticos?) que produzem e orientam a industrialização;

c) (esta proposição não é baseada num contexto científico, mas está "no ar") uma só classe média histórica engloba essas três variáveis (tipo de atividade econômica, tipo de sistema de valores, papel empresarial) e só ela pode ainda hoje produzir e orientar a industrialização, onde ainda não se efetivou. Trata-se, evidentemente, da exportação de valores de classe média, exportação subentendida (o que quer que se diga ou se pense) por todo projeto de cooperação técnica (por mais bem intencionado que se queira ser).

Reconhece-se facilmente nas duas primeiras proposições (a e b) os mesmos pressupostos da teoria de Weber sobre as origens do capitalismo. Como a teoria Weberiana é a fonte clássica de todas as tentativas mais ou menos bem sucedidas de explicação das condutas empresariais, também não é difícil reconhecer aí os pressupostos das teorias de Schumpeter, de Moore, Kerr e outros.

Não se trata de resumir estas teorias para demonstrar o fundamento da redução que aqui fazemos. Entretanto, vamos tentar justificar brevemente a pertinência das duas primeiras proposições no quadro destas teorias citando exemplos precisos.

Quando Weber tenta demonstrar a legitimidade com que o protestantismo ascético encobre certas condutas capitalistas, especifica: "dava (ao homem de negócios burguês) a segurança reconfortante de que a distribuição desigual dos bens deste mundo era uma deferência especial da Providência Divina que, através destas diferenças - assim como na Sua Graça pessoal - buscava objetivos secretos, desconhecidos dos homens" (Weber, M. The protestant ethic and the spirit of capitalism, Londres, Unwin University, tradução de T. Parsons, 1968, p. 177). Em seguida, o autor analisa a progressão desta idéia, progressão que acompanha sua secularização: "Calvino afirma que a massa dos trabalhadores não obedece a Deus a não ser que permaneça pobre; donde se conclui que as massas só trabalham forçadas pela necessidade; a que se acrescentam as teorias capitalistas referentes à produtividade dos baixos salários" (op. cit., p. 177).

Se bem que Weber constate que os "puritanos queriam trabalhar por vocação (ao passo que) nós somos forçados a fazê-lo" (p. 181), não conclui que os valores (o espírito) do ascetismo legitimam uma prática já corrente. Pelo contrário, este "traço ascético fundamental do modo de vida da classe média" (p. 180) é, para ele, uma "conduta racional baseada na idéia da vocação (que) nasceu (...) do espírito ascético cristão" (180).

O conjunto dos elementos reunidos por Weber permite concluir tanto pela determinação das condutas pelos valores ("conduta racional... nascida... do espírito") quanto pela legitimação das condutas por um discurso social ("dando-lhe a reconfortante segurança"). Se o autor mantém a primeira hipótese, é por ela ser pressuposta desde o começo. É esse pressuposto que nós exprimimos na primeira proposição: "são os valores que fazem a história".

A primeira vista, parece mais difícil reduzir a teoria de Schumpeter às mesmas proposições, tendo em vista que este autor pretende restringir-se ao domínio econômico, tratando o desenvolvimento econômico como um tipo de mudança endógena.2 2 Schumpeter, J. A. The theory of economic development. Cambridge, Mass., Havard University Press, 1955, p. 61-3. Todas as referências à teoria de Schumpeter provêm desta obra; indicaremos, daqui por diante, a página entre parênteses. Além do mais, Schumpeter começa negando qualquer papel criador aos indivíduos, no sistema econômico (p. 27), tratando a produção como resposta a um sistema de necessidades (p, 11-2) e o ato econômico como um comportamento guiado pelo hábito (empirically familiar, p. 26).

Como não se trata de resumir a teoria da inovação empresarial de Schumpeter, mas de demonstrar a pertinência de sua redução às proposições introduzidas, assinalaremos somente os pontos de articulação entre a teoria funcional do fluxo econômico (production follows needs, p. 12) e a teoria da inovação empresarial.

Estes pontos de articulação são três:

a) o desenvolvimento é a combinação de novos meios de produção, o que transfere a iniciativa econômica do consumidor ao produtor (p. 65);

b) a inovação exige condutas mais racionais e mais conscientes do que as do consumidor ou do capitalista (p, 79-80 e 85);

c) a racionalidade da conduta empresarial é incompatível com o sistema de necessidades/desejos que comanda o fluxo econômico (p. 90-93).

Estes três pontos convergem no sentido de justificar a hipótese da existência de um tipo humano particular, vocacionado ao exercício da função empresarial. Schumpeter não hesita em levantar a hipótese de uma distribuição normal deste tipo em toda população culturalmente homogênea (p. 81-2). Entretanto, a hipótese do tipo humano tem por efeito afastar a idéia de uma classe empresarial; assim sendo, como poderíamos, ainda, justificar a existência de uma ligação entre a teoria de Schumpeter e as teorias sobre as classes médias modernas?

Três pontos de articulação permitem, ainda aqui, estabelecer a passagem de uma teoria a outra. Em primeiro lugar, a possibilidade de combinar novos meios de produção não supõe a propriedade desses bens, mas sim a possibilidade de exercer um controle sobre os mesmos. Se o empresário não é ele mesmo proprietário, é-lhe necessário, contudo, certa credibilidade diante dos organismos de financiamento (p. 68-71); isto exclui do papel empresarial as massas trabalhadoras em geral, com exceção daqueles indivíduos que já percorreram, ao menos em parte, a estreita senda da mobilidade vertical. Em segundo lugar, as motivações das classes superiores e dos capitalistas em particular (capitalistas no sentido de Schumpeter) são opostas às do empresário, e é daqueles que a inovação econômica sofre as mais fortes resistências (p. 87). Em terceiro lugar, na medida em que a inovação é correlativa de uma conduta racional e consciente, os conhecimentos podem substituir a iniciativa econômica (p. 85-6). Desse modo, a iniciativa do desenvolvimento econômico deve ser esperada, não das classes superiores ou inferiores (primeiro e segundo pontos de articulação) mas de uma camada intermediária. Esta camada média é formada, por um lado, pela parte das classes médias tradicionais que monopolizam certo tipo de saber (terceiro ponto de articulação), ou em conseqüência da mobilidade. Ora, a idéia de nova classe média encobre justamente estas duas possibilidades: ou se trata de uma nova camada originária das classes médias tradicionais, distinguindo-se destas últimas pelo domínio de um novo savoir-faire econômico; ou então, trata-se de uma nova camada e, neste caso, a mobilidade que está na origem dessa nova camada deve ser compreendida nos dois sentidos - mobilidade vertical para o alto ou para baixo, e imigração.3 3 Lipset apresenta um excelente resumo das teorias que ligam a existência de uma camada que detém o monopólio da iniciativa econômica à heterogeneidade cultural provocada pela imigração. Lipset, S.M. Elites, education and entrepreneurship in Latin America. In: Lipset, S.M. & Solari, A. (eds.). Elites in Latin America. N. York, Oxford University Press, 1967.

Observada com atenção, a tipologia mais completa das elites industrializadoras é apenas um comentário exaustivo da teoria de Schumpeter, comentário especificado pela referência feita ao contexto. Estamo-nos referindo à tipologia de Kerr, Dunlop, Harbison e Myers.4 4 Industrialism and industrial man. Londres, Heinemann, 1962. Os números entre parênteses indicam a página e referem-se todos a esta edição.

A idéia dos autores, de buscar a iniciativa da mudança não mais na massa dos trabalhadores, mas nas elites industrializadoras (The seeds of future, p. 8) refere-se à hipótese de que estas minorias são destinadas à conquista da sociedade através da superioridade dos novos meios de produção, por elas introduzidos ou controlados (p. 47). A alusão à teoria de Schumpeter é bastante clara. Além disso, qualquer que seja o tipo de elite trata-se, para esses autores, de minorias (ver a idéia de distribuição normal do tipo empresarial), minorias que não pertencem à classe dominante tradicional, mas a uma subcultura (p. 48) ou a uma minoria religiosa ou nacional (p. 55).

De fato, somente o grupo que corresponde mais exatamente ao tipo de industrialização da Inglaterra e dos Estados Unidos merece ser chamado pelos autores de middle-classes (cf. nossa proposição c). Todavia, a composição da elite propriamente dita compreende, essencialmente, em todos os tipos - middle-classes, intelectuais revolucionários, administradores coloniais, líderes nacionalistas - setores das classes médias ditas tradicionais (p. 50). Só surge um problema a respeito do quinto tipo: a elite aristocrática (dynastic elite). Não obstante, os autores são forçados, ainda aí, a assinalar que este tipo de elite compreende uma minoria existente no interior da classe dominante tradicional e, no máximo, as camadas aliadas à elite tradicional, quer dizer, em última análise, as classes médias tradicionais. Esta minoria é realista e sofre as maiores resistências por parte da elite tradicional (p. 52-5), o que nos leva ao segundo e terceiro pontos da articulação entre a teoria de Schumpeter e a teoria sobre as classes médias modernas.

Realmente, esta teoria é incompleta apesar de suas diferentes formulações porque não leva em consideração o contexto de colonização. Nisto revela-se a sua limitação: em cada tipo de colonização dada encontraremos atividades econômicas diversas e sistemas de valores particulares associados à origem da industrialização. Na América Latina, tipo de colonização diferente daquele que teve lugar nos Estados Unidos, tanto a burguesia agrária como a burguesia financeira ligada à economia de exportação estão na origem do processo de industrialização; esse fato não pode ser explicado pela teoria em questão.

A dificuldade que se encontra na definição do conceito de classes médias é comum a toda tentativa de tratar teoricamente um conceito isolado. De fato, um conceito é sempre definido dentro de uma teoria. Seu alcance teórico é-lhe dado pela sua função dentro da teoria, e não por uma correspondência qualquer com um objeto real. Evitaremos estas dificuldades indicando inicialmente a teoria na qual o conceito de classes médias pode ganhar sentido. Indicaremos brevemente os traços essenciais desta teoria, a do sistema do subdesenvolvimento. Faremos, então, especialmente, alusão ao papel representado pelo Estado, o que nos ajudará a definir o conceito de classes médias urbanas.5 5 Trata-se do conceito de classes médias urbanas no sistema do subdesenvolvimento. É aqui, aliás, que o conceito pode ter uma utilidade qualquer na explicação do processo de industrialização. Nas sociedades industriais e pós-industriais, as classes médias modernas têm outra origem ou, mesmo, desempenham outro papel.

Antes de fazê-lo, é preciso lembrar que a noção de "novas classes médias" toma, em Wright Mills, um sentido bem distante daquele das teorias sobre as classes médias modernas. Para Mills, a antiga classe média era composta essencialmente de empresários, ao passo que a nova classe média perdeu toda iniciativa econômica. Neste sentido, sua análise do fenômeno do White collars é finalmente bem próxima da que proporemos aqui. Entretanto, veremos que, se os elementos da análise são os mesmos, a interpretação de conjunto é diferente.

1. TIPO DE COLONIZAÇÃO E PAPEL DO ESTADO

A empresa colonizadora pode ser interpretada como um processo de criação e de ampliação de um mercado de produtos-mercadorias. (Uma mercadoria pode servir ao consumo, à troca e à acumuação, sendo estritamente equivalente à moeda.) É sob este aspecto que a colonização nos interessa e também pelo fato de que é contemporânea da industrialização. As formas transitórias de produção econômica que precederam a grande indústria - a manufatura, por exemplo - são impensáveis fora de um sistema econômico dentro do qual existe um mercado para mercadorias.

O tipo de organização industrial da produção pode ser definido em função de dois elementos:

a) o trabalho individual é estritamente intercambiável e equivalente a seu valor em moeda;

b) do ponto de vista de sua forma de produção, bem como do seu modo de utilização, os meios de produção (instrumentos e objeto da produção) são coletivos.

Este sistema de produção caracteriza-se por sua tendência à hegemonia, isto é, a organização industrial da produção tende a substituir a todo e qualquer outro tipo de organização econômica:

a) acaparando o mercado;

b) atraindo para sua engrenagem os produtores que constituem a mão-de-obra de outros tipos de produção;

c) reproduzindo-se cada vez que um novo objeto passa a ser mercadoria, e cada vez que é preciso ou possível tornar um objeto qualquer mercadoria.

Esses três modos de reprodução hegemônica do tipo industrial de organização da produção formam um sistema que se fecha ao generalizar-se: cada um desses modos reforça os dois outros. Nos países de antiga industrialização esses três modos de reprodução operam desde o início da industrialização,6 6 Um ou outro desses modos pode, perfeitamente, desempenhar, em dado momento, um papel dominante: a industrialização da produção científica e a transformação, em mercadoria, dos lazeres (e, brevemente, do próprio ar que respiramos), são exemplos do terceiro modo de reprodução que parece desempenhar papel determinante nas sociedades industriais de hoje. cuja condição prévia é a expansão do mercado de mercadorias.

O desencadeamento desses três modos de reprodução, dentro de uma sociedade, assegura ao setor industrial desta sociedade um papel predominante sobre os setores não-industriais da economia. Entretanto, o papel dominante desempenhado pela organização industrial da produção apresenta uma característica complementar: a condição para que a indústria desempenhe esse papel dominante sobre os setores não-industriais da produção é a dominação do conjunto da economia pelo setor financeiro.

Se definimos a organização industrial como a utilização de meios coletivos de produção, sua condição de possibilidade é a existência de um mercado de capitais. De fato, a inovação tecnológica e a inovação organizacional (exigências de qualquer emprego de meios coletivos de trabalho) não são, contudo, suficientes para a instauração da indústria. É ainda necessário que se possa dispor, fora do circuito de consumo, de mercadorias que são fruto do trabalho coletivo acumulado. É, portanto, indispensável um mercado de capitais no qual se encontre a fonte para o financiamento das inovações tecnológicas e organizacionais, isto é, a instalação de meios coletivos de trabalho. O setor financeiro exerce, desse modo, uma função de controle sobre a utilização da inovação: somente a inovação financiada é utilizada; nem toda inovação é efetivamente industrializada. Em suma, a inovação tecnológica e organizacional, quando assumida sob o modo industrial de produção, cai sob o controle do setor financeiro.7 7 O papel dominante desempenhado pelo setor financeiro não caracteriza, a nosso ver, uma simples fase do sistema de produção de tipo industrial. As observações seguintes, de Marx, referem-se à primeira metade do século XIX: "Não era a burguesia que reinava sob Louis-Philippe, mas uma fração da mesma: banqueiros, reis da Bolsa, reis da estrada de ferro, proprietários de minas de carvão e de ferro, proprietários de florestas, e a parte da propriedade fundiária a eles ligada (...). A burguesia industrial propriamente dita, fazia parte da oposição oficial"... Marx, K. As lutas de classe na França (1848-1850). Tradução francesa, paris, Ed. Sociales, 1967, p. 38.

O tipo de colonização, que é nosso objeto de estudo apresentará variações pertinentes para nossa análise, segundo o modo de reprodução da organização industrial predominante em cada caso; entretanto, o papel desempenhado pelo setor financeiro será sempre predominante, sua composição não sendo muito diferente do que Marx descrevia em 1848.8 8 Ver a nota precedente.

Um primeiro tipo de colonização é o que se caracteriza por uma competição ao nível do mercado. Existe, em cada país colonizado desse modo, um mercado constituído, e é nesse mercado (de especiarias, no sentido primitivo do termo) que o país colonizador exerce, primeiramente, seu papel dominante. Acaparar esse mercado e desempenhar nele o papel dominante é um dos modos de reprodução do setor industrial do próprio país colonizador.

A colonização torna-se presente na sociedade colonizada sem alterar fundamentalmente o conjunto da sociedade; acrescenta dois novos setores econômicos, perfeitamente compatíveis com a sociedade tal qual ela existe: um setor financeiro e um setor de import-export (os compradores). Estes setores tendem a se confundir entre si e, sobretudo, a confundir-se com o setor financeiro do país colonizador.

Não se pode esquecer que um setor industrial começa a existir e se reproduz acaparando o mercado já existente. Entretanto, este setor industrial situa-se alhures, na metrópole.

Este tipo de colonização é característico das regiões da Ásia, onde existiam sociedades capazes, no início, de entrar em competição com o colonizador ao nível do intercâmbio comercial.

Um segundo tipo de colonização é o das regiões em que não havia mercado constituído, mas que dispunham, ao contrário, de riquezas naturais, assim como de uma população que podia ser atraída para a produção de tipo industrial.9 9 De tipo industrial: o país colonizado instaura um tipo de produção que utiliza a organização coletiva do trabalho, e meios coletivos de produção; trata-se tanto de minas como de plantations. Estabelece-se aí uma competição ao nível da produção. A reprodução do setor industrial colonizador faz-se através da mão-de-obra dos outros setores de produção existentes no lugar, em geral a agricultura e a pecuária. Este setor industrial faz parte, de fato, da economia do país colonizador. O setor financeiro que aí se constitui é igualmente parte integrante da economia da metrópole. As sociedades locais guardam seu tipo próprio de organização social e sua economia, pelo menos enquanto todos os seus membros não são recrutados para o setor de produção colonial.

Neste tipo de colonização, as transformações que a região sofre são, ao mesmo tempo, mais fundamentais e mais exteriores se comparadas às do primeiro tipo. Um setor industrial e financeiro se estabelece in loco, além de uma burocracia e um aparelho de Estado. Entretanto, se no primeiro tipo o setor de import-export e o setor financeiro de origem exógena são integrados na economia local, só o setor industrial mantém-se ausente. No segundo caso, os setores acrescentados à economia local são extraterritoriais; a mão-de-obra do setor de produção colonial, a burocracia nativa (quando existe) e o aparelho de Estado constituem-se e reproduzem-se fora das sociedades existentes na região.10 10 Cf. Coquéry-Vidrovitch, C. De l'impérialisme britannique à l'impérialisme contemporain, In: L'Homme et la Société, n. 18, p. 61-90, 1970.

O terceiro tipo de colonização existe nas regiões onde um mercado ainda não é constituído, nem é possível atrair mão-de-obra autóctone para o setor de produção colonial. Neste caso, toda a organização econômica e social é de um tipo novo, e não é possível a coexistência dos colonizadores com os povos preexistentes.11 11 Estes são caçados e exterminados quando se revela a impossibilidade de utilização de sua mão-de-obra. Um novo tipo de sociedade se cria no vazio deixado pelas sociedades autóctones, ou às suas fronteiras. As seguintes observações de Marx são particularmente esclarecedoras a este respeito: "Na pessoa do escravo, o instrumento de produção é diretamente pilhado. Porém, a produção do país em cujo proveito o instrumento é tomado, deve ser organizada de maneira a permitir o trabalho escravo ou (como na América do Sul, etc.) é necessário que se crie um modo de produção conforme à escravidão" (grifo nosso). Marx, K. Introdução à crítica da economia política. Contribuições à crítica da economia política. Tradução francesa, Paris, Ed. Sociales, 1957, p. 162-3.

Dois casos bem diferente são, então, possíveis. No primeiro, as condições de exploração de produtos coloniais são decisivas: formam-se grandes empresas de exploração colonial com a mão-de-obra importada.12 12 O tipo de atividade agrícola de certas sociedades africanas era perfeitamente compatível com a integração de sua mão-de-obra na produção colonial. Os índios americanos, com exceção das grandes civilizações pré-colombianas, pelo contrário, desenvolviam tipos de atividade econômica incompatíveis com o trabalho escravo ou livre, tais como as metrópoles aí o instauraram. A mão-de-obra devia, portanto, ser importada. No segundo caso, quando não existem produtos coloniais, a nova sociedade organiza-se a partir dos três modos de reprodução da economia industrial. Apesar das dessemelhanças culturais que a distinguem da antiga metrópole, é o mesmo tipo de sociedade que se reproduz. É o caso de uma parte das colônias da América do Norte; a outra, que se constituiu no Sul e que explorava produtos coloniais, é representativa do primeiro caso.

Estes dois tipos de economia coexistem no seio dos Estados Unidos, uma reproduzindo-se no interior e a outra, da qual o setor industrial é ausente (a do Sul), reproduzindo-se em função da antiga metrópole. A solução desse conflito foi nos Estados Unidos mais precoce e mais radical do que na maior parte dos países subdesenvolvidos que se depararam com esse tipo de problema, por ocasião da crise de 1929: já em meados do século XIX, a Guerra Civil fez com que a região exportadora de produtos coloniais mudasse de interlocutor. A partir da Guerra de Secessão, é o setor industrial do Norte e não mais o da metrópole européia que desempenha o papel dominante sobre a economia do Sul.

O caso das regiões destinadas à exploração de produtos coloniais interessa-nos mais particularmente, pois permite revelar certos traços comuns a todos os tipos de colonização. É o caso mais difundido na América Latina: não há, no início da colonização, nem mercado a acaparar nem mão-de-obra para atrair, somente o terceiro modo se reproduz. Metais preciosos e estratégicos, couro, açúcar, frutas, constituem a economia de ciclos dos primeiros séculos de colonização; é a monoprodução, predominante desde então até hoje.

No início, esta reprodução do tipo industrial de organização da produção faz-se a partir e em função da economia metropolitana. Não se instaura nenhum mercado nem existe mão-de-obra exterior ao setor que se reproduz (café, açúcar, minas); a reprodução apenas neste modo e nestas condições não assegura a constituição de uma sociedade, mas de um "pedaço" de sociedade, de um único setor econômico. A análise da economia açucareira no Nordeste brasileiro ilustra o processo de formação de uma sociedade a partir deste tipo de colonização. A análise deste processo de formação mostrará, ademais, o papel estratégico desempenhado pelo Estado na criação da sociedade.

Naquela região, a tecnologia da indústria do açúcar, bem como a exportação eram controladas pelos portugueses. Mas o financiamento e a comercialização na Europa eram, por sua vez, controlados pelos holandeses. Podemos simplificar o problema desprezando o fato de que o controle da importação de mão-de-obra africana era compartilhado entre os portugueses e os ingleses. Utilizando capitais holandeses e adquirindo, assim, os engenhos, os portugueses organizavam a produção do açúcar na base do trabalho escravo. O produto era transportado para Lisboa e de lá embarcado em navios holandeses que se ocupavam da comercialização.

Esta operação de transporte entre os portos brasileiros e o porto de Lisboa é muito mais importante do que pode parecer à primeira vista. Assegura à metrópole política a única possibilidade de desempenhar um papel econômico na totalidade do processo. Sem esta operação, que simbolizava a soberania portuguesa, a economia açucareira teria passado inteiramente para o controle daqueles que já detinham o financiamento e a comercialização - o que de fato não tardou a acontecer, ainda que por breve período.

De fato, no fim do século XVI e início do século XVII, a coroa de Portugal cai nas mãos de espanhóis e o pacto se rompe: excluídos do jogo, os holandeses ocupam o Nordeste brasileiro e vêm, assim, a controlar a totalidade das operações da economia açucareira, desde o financiamento até a comercialização.13 13 Desde então, outras companhias das Índias refizeram, pelas mesmas razões, a mesma operação militar e econômica na América Latina. A partir do século XIX, entretanto, uma classe dominante interna já constituída impedia estes grupos econômicos de gerenciar, ao mesmo tempo, a sociedade e a economia colonial. Nestes casos mais recentes o aparelho de Estado interno deve ser mantido e se é obrigado a recorrer ao golpe de Estado (América Latina) ou então, à secessão (África).

Este fato mostra claramente o papel desempenhado pela soberania do Estado metropolitano neste tipo de colônia; constituir a sociedade a partir de um único setor econômico extraterritorial, impedir o controle direto do setor industrial dominante sobre o setor colonial, assegurar a existência de uma classe dominante interna, eis alguns dos aspectos diferentes de um mesmo papel representado por uma única estrutura: o aparelho de Estado colonial.

Notemos que este aparelho de Estado era necessário aos portugueses porque lhes faltava um setor financeiro autônomo e não dispunham de um setor industrial que pudesse dominar a reprodução da economia colonial.

O exemplo da invasão holandesa é interessante porque o Príncipe de Nassau não chegou a Recife como soberano, mas como chefe de empresa (Companhia das Índias Ocidentais), embora com poderes de governo.

2. PAPEL DO ESTADO E CAMADAS MÉDIAS URBANAS

Em todos estes tipos de colonização, o Estado é essencialmente intermediário entre a economia colonial e a sociedade colonizadora. É necessário, devido à ausência de um setor industrial predominante in loco. O Estado é a presença desta ausência. Garante, além disso, que esta presença permanecerá ausente, único meio de assegurar a existência de uma classe dominante interna.

A primeira colonização consistia, essencialmente - do ponto de vista econômico - na expansão de um mercado de mercadorias.14 14 Ver, a esse respeito, Ch. Palloix, em seu artigo publicado em L'Homme et la Société, n. 15, p. 103-38, 1970, especialmente o resumo das teses, p. 135-6. Os primeiros colonizadores exauriram-se nesta tarefa. A segunda colonização já é fruto do impulso do setor industrial. Este impulso obriga os primeiros colonizadores a construir um aparelho de Estado, e obriga as classes dominantes internas, no início do século XIX, a escolher entre a antiga metrópole (tornada simplesmente metrópole política) e a sua própria sobrevivência como classes dominantes internas, dotando-se de um Estado nacional.

Os movimentos de independência latino-americanos são, evidentemente, contemporâneos da Revolução Americana e da Revolução Francesa. Não eram os revolucionários brasileiros do fim do século XVII conhecidos como os "franceses"? Não obstante, não se pode superestimar o papel desempenhado pela influência ideológica liberal-burguesa nos movimentos de independência. As classes que conduziram o movimento de independência na América Latina eram burguesas no sentido de que sua supremacia política era assegurada por sua supremacia econômica; pelo fato de que seu predomínio econômico exercia-se no próprio processo de produção; pela organização do trabalho, sob o modo industrial, por eles imposta nas colônias. Não eram burgueses no sentido de uma população urbana que se opusesse ao feudalismo; não viviam nas cidades (abandonadas ao aparelho de Estado), e não havia feudalismo a combater.

A ideologia liberal-burguesa que acompanha os movimentos de independência não era, contudo, inteiramente sem propósito, não era adotada arbitrariamente. Em primeiro lugar, porque se tratava de um movimento conduzido pela burguesia (ou melhor, pela fração da burguesia existente in loco). Em segundo lugar, porque a forma liberal do Estado nacional, eliminando o monopólio das antigas metrópoles sobre a exportação, reduzia parte dos custos de comercialização dos produtos coloniais, aumentando a parte das classes dominantes internas no produto social. Ao mesmo tempo, o imperialismo inglês mudava de intermediário (os Estados nacionais tomando o lugar dos Estados colonizadores) e assegurava a comercialização a partir dos portos coloniais; além disso, enquanto os Estados nacionais existissem, impedia-se aos ingleses de controlar a totalidade do processo: a produção propriamente dita ficava sob controle nacional, acrescentava-se um setor financeiro, doravante constituído in loco.

Desta forma, desde o início da colonização na América Latina, a constituição de um aparelho de Estado sui-generis é indispensável ao funcionamento do sistema. A originalidade deste aparelho de Estado vem do fato de que ele não é, ao contrário das colônias inglesas, emanação direta da sociedade que comanda o processo colonial.

Também não é, ao contrário das colônias da Ásia, originário da própria sociedade colonizada. Os aparelhos de Estado coloniais português e espanhol na América Latina, que se desenvolveram suficientemente a ponto de se converterem em Estados nacionais, foram soluções originais exigidas pelo tipo particular de economia colonial que ali se instaurou.

O aparelho de Estado colonial (o setor local do aparelho de Estado metropolitano) constitui-se lá onde pode desempenhar um papel de intermediário, nos portos. Todo o hinterland é deixado ao controle das autoridades naturais, isto é, os dirigentes da produção (seria preciso lembrar que a burguesia é a única classe dirigente cuja autoridade natural provém do fato de organizar e dirigir a produção econômica?).

Este papel essencialmente exterior dos Estados coloniais e, posteriormente, dos Estados nacionais latino-americanos produziu muita desarticulação no sistema social, o que explica as dificuldades de análise e as aberrações do gênero "sociedades dualísticas", "feudalismo ligado à exportação de matérias-primas" etc.

O papel político interno representado pela burguesia, tendo tomado formas semelhantes à clientela, fez pensar num tipo de sociedade feudal que teria existido na América Latina, no início da colonização. Uma pequena burguesia ter-se-ia, pouco a pouco, formado com os notáveis rurais emigrados para os centros de exportação, apossando-se do aparelho de Estado; e, favorecida pela crise mundial de 1929, constituindo-se em "modernas classes médias", teria iniciado o processo de industrialização. As crises políticas, tão características destes países, seriam a confirmação do conflito existente entre essa classe modernizadora e as classes feudais. Nada é mais clássico, nada é mais falso.

Primeiramente, não há feudalismo nem clientela à base de trabalho escravo. A economia feudal é, por definição, autárquica, e não poderia basear-se na exportação maciça nem na monoprodução. O papel econômico desempenhado pelas classes feudais é-lhes assegurado por seu papel político (ou, se se prefere, jurídico, religioso, místico; em uma palavra, simbólico). Ora, o papel econômico desempenhado pelas burguesias latino-americanas tradicionais é assegurado por sua função técnica de organizadores da produção, e pela apropriação dos meios de produção. Apenas sua competição (ou aliança, o que vem a dar no mesmo) com as classes industriais e financeiras metropolitanas é que é assegurada por seu papel político, através dos Estados nacionais.15 15 De outra maneira, o caudilhismo posterior à independência não teria nenhum sentido. Por que senhores feudais lutariam para adquirir o controle do aparelho de Estado, deixando, ao contrário, o poder real nas mãos dos senhores locais? Na verdade, não é da competência do Estado o poder político interno, mas sim, a função de intermediário e o controle da exportação. Sem exercer nenhum controle econômico ou político sobre a produção, os caudilhos e os grupos que lhes eram ligados obtinha o direito de desempenhar, através do aparelho de Estado, um papel econômico fundamental.

Em segundo lugar, não há notáveis rurais que emigrem, pouco a pouco para as cidades, pelo menos no período em questão. A colonização fez-se, na América Latina, a partir do litoral que viria a ser, mais tarde, zona urbana. São, ao contrário, os notáveis urbanos (cuja função é essencialmente ligada ao aparelho de Estado) que emigram para o campo: funcionários de todo tipo, padres, contabilistas; sem falar nos doutores que vão em busca de casamento no seio da burguesia rural.

Em terceiro lugar, a população urbana constituiu-se, desde o início, numa população com funções essencialmente urbanas e jamais foi outra coisa. Aristocratas e pequenos burgueses de origem metropolitana ocupados no aparelho de Estado colonial, reproduziram-se pouco a pouco rompendo toda ligação com suas classes sociais de origem. Sua reprodução fez-se inteiramente no interior da burocracia de Estado e da burocracia privada, constituída na época da independência. Não existe pequena burguesia, no sentido clássico do termo, no seio da qual as burocracias pudessem recrutar seus efetivos. De fato, o artesanato e a manufatura foram proibidos às colônias na maior parte do período colonial. Estas atividades (ou melhor, a parte destas atividades que não deixava de existir por causa das proibições), bem como o pequeno comércio, eram exercidos por escravos. Padres, tabeliães, burocratas de todos os gêneros, alocavam seus escravos (e os alugavam, às vezes) a estas tarefas menos nobres.

A particularidade destas camadas médias urbanas - tornadas médias em conseqüência da crise das exportações, com a emigração para a cidade da mão-de-obra rural e com a industrialização - é devida a dois fatos distintos, mas ligados entre si. Já observamos que suas origens sociais, aristocracia e pequena burguesia metropolitana, bem como os burgueses locais arruinados perdem a eficácia própria, pois essa população urbana renova-se no interior de si mesma, e não no seio das classes sociais de origem. Ao contrário, nos países colonizadores da época, a burocracia de Estado e a administração privada recrutam-se ainda hoje no seio de classes sociais que desempenham, por outro lado, um papel econômico ou político definido e ainda vigente.

A este fato está ligado o segundo: as camadas médias urbanas da América Latina, enquanto grupo social com função específica, jamais desempenharam papel direto na produção econômica. Seu papel é essencialmente político, o de produtores políticos do Estado. E, na medida em que é o Estado que nesses países constitui a sociedade a partir de um setor econômico incompleto e não-autônomo, o papel que lhes cabe é, de certa forma, o de produtores políticos da sociedade.16 16 Quanto à função não-econômica das camadas médias na América Latina, ver weffort, F. C. Le populisme dans la politique brésiliense. In: Le Temps Modernes, n. 257, p. 624-49, 1967, especialmente p, 629; ver, também, do mesmo autor, Classes populares e política. Tese de doutoramento, São Paulo, FFL, USP, 1968, p. 45 e seg. mimeogr. ; e Duarte, N. A ordem privada e a organização política nacional. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1966

Não se pode, portanto, esperar que as orientações das camadas médias urbanas da América Latina sejam da mesma natureza das classes médias americanas ou dos restos de pequena burguesia européia. Não se pode encontrar, nas camadas médias urbanas da América Latina, referência a um modelo próprio de produção econômica. O modelo de produção do camponês de parceria, do pequeno burguês, do trabalhador industrial podem explicar o tipo de reivindicações e orientações que caracterizam essas classes. Entretanto, no que toca às camadas médias urbanas latino-americanas, as reivindicações próprias deste grupo, bem como sua participação nos diferentes movimentos sociais, não podem ser compreendidas a partir de um modelo de produção, aliás, ausente de sua experiência. É possível, pelo contrário, compreendê-lo a partir do papel político que lhes cabe, assim como em função de uma análise de sua relação ao trabalho.

Relação ao trabalho vem a ser um trabalho coletivo; os meios de trabalho (instrumentos e objeto) são apropriados coletivamente, tanto do ponto de vista técnico como do ponto de vista jurídico (pelo Estado). Desse modo, as reivindicações de controle coletivo das atividades do Estado podem perfeitamente aparecer ou serem aceitas sem resistência por este grupo. É, aliás, o que explica a pouca resistência que estas camadas opuseram à estatização de boa parte da economia, e à política assistencial dos Estados latino-americanos, políticas que marcaram os últimos 40 anos, das quais estas camadas médias (muito mais do que os trabalhadores) beneficiaram-se em primeiro lugar.

No entanto, sua resistência manifesta-se - e nisto as camadas médias aliam-se às classes dirigentes - quando surge a ameaça, para o Estado, de ter que dividir seu poder com as burocracias não-estatais (partidos políticos, sindicatos, etc.). Foi, de fato, o que produziu a adesão das camadas médias aos movimentos que puseram fim aos regimes populistas na Argentina e no Brasil.

No entanto, na medida em que, na sua experiência de trabalho, reconhecem-se como produtores coletivos do Estado, é dificilmente compreensível de que maneira poderiam surgir reivindicações de controle individual da produção econômica. A ausência de tais orientações e reivindicações no meio das camadas médias urbanas não deveria, portanto, ter provocado tanto espanto em tantos economistas e sociólogos do desenvolvimento.

Pelo contrário, o papel político desempenha do por estes grupos na construção do Estado e da sociedade pode explicar suas orientações para o desenvolvimento. Realmente, durante a crise da economia de exportação, o Estado viu-se obrigado a desempenhar a fundo seu papel de intermediário. Passa a ser, assim, o único negociador da crise face às classes dominantes do exterior, assumindo pela primeira vez um papel econômico e político interno.

Os efeitos da crise fazem-se sentir, sobretudo, de duas maneiras: emigração maciça da mão-de-obra rural e impossibilidade de satisfazer às importações que constituíam o essencial do mercado urbano. Abandonado a si mesmo, o processo só poderia conduzir a duas saídas. O mercado urbano, inflado pela chegada maciça de trabalhadores rurais, esgotaria até o último tostão das rendas da exportação, dada a "deterioração dos preços".17 17 Esta expressão é utilizada aqui num sestido não-teórico; admitimos que ela desloca o problema da desigualdade do intercâmbio e seguimos, neste caso particular, as teses introduzidas por Ch. palloix em seu artigo: La question de l'échange inégal - une critique de l'économie politique. In: L'Homme et la Société, n. 18, p. 5-33, 1970. A economia de exportação tenderia a desaparecer, na medida em que todas as suas rendas teriam de ser destinadas ao mercado urbano; com ela desapareceria o mercado urbano, à míngua de rendas (ligadas, como se sabe, à exportação).

A segunda saída seria o abandono do mercado urbano à sua própria sorte. Entretanto, isto não estancaria a decadência do setor de exportação. A população urbana cresceria ainda mais, e não se sabe qual seria o resultado da mistura explosiva de uma população urbana privada de seu consumo, com uma população imigrada procurando trabalho inexistente. Ora, o controle dos portos, das cidades, era o trunfo principal das classes ligadas à exportação. Desse modo, mesmo se supusermos que as classes urbanas, tendo mantido o controle do aparelho de Estado, não tentassem desviar a crise em seu próprio proveito, a liquidação das classes ligadas à exportação seria certa e próxima: sem a proteção do aparelho do Estado, a economia de exportação cairia, cedo ou tarde, sob o controle direto das metrópoles industrializadas.18 18 Este caso não é pura hipótese: nos países onde a solução de industrialização não pôde ser tentada, as classes dominantes internas desapareceram ou foram obrigadas a dividir o essencial de suas tarefas com grandes companhias estrangeiras. A América Central nos dá numerosos exemplos semelhantes.

Na verdade, o Estado manteve seu papel de intermediário e negociou junto aos interlocutores externos as soluções da crise (Argentina, Brasil, México), ou puseram-se a fazê-lo nos últimos 10 anos (Chile, Peru). Esta negociação consistiu essencialmente no seguinte: expropriação de uma parte das rendas do setor de exportação, financiamento de um setor industrial local, bloqueio das importações e manutenção do mercado interno, graças à inflação.19 19 Cf. Furtado, Celso. Dialética do desenvolvimento. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1964; ver também Martins, L. L'épuisement d'un modèle de changement social: la crise du développementisme au Brésil. In: Balandier, G. (ed.). Sociologie des mutations. Paris, Anthropos, 1970, p. 451-62.

Este projeto de desenvolvimento e de liquidação dos resíduos da colonização (conhecido, desde os anos 50 como desenvolvimentismo) beneficia, em primeiro lugar, o novo setor industrial. Por esta razão é a este grupo que se atribui, geralmente, a iniciativa do projeto. A dificuldade está em que este grupo não existia ainda enquanto fração de classe autônoma, e formou-se, de fato, no processo de realização de um projeto que o precede. Além do mais, o grupo social industrializador - com exceção dos que tiveram origem na própria burocracia de Estado, que são, portanto, posteriores à iniciativa estatal em matéria de industrialização - é originário do setor de exportação e mantêm-se, em todo caso, ligado ao mesmo setor financeiro.20 20 Cf. Cardoso, F. H. Empresário industrial e desenvolvimento industrial no Brasil. Rio de Janeiro, Instituto de Ciências Sociais, UFRJ, 1966. Nesse caso, ou este grupo ganha uma autonomia com relação à sua classe de origem e torna-se uma fração de classe - mas, nessa hipótese, não se pode comprender a falta peculiar de autonomia interna das burguesias industriais latino-americanas, nem sua aliança privilegiada contínua com as burguesias tradicionais - ou então, a burguesia industrial não tem nenhuma autonomia com relação à burguesia tradicional - mas, neste caso, não se pode compreender os conflitos que opuseram o Estado desenvolvimentista às burguesias tradicionais, conflitos que constituem o pano de fundo da fase populista do desenvolvimento latino-americano.

A solução encontrada para superar estas explicações contraditórias consiste na distinção entre, de um lado, a burguesia industrial, à qual faltaria uma consciência de classe e, do outro, os ideólogos da burguesia industrial.21 21 Cf. Cardoso, F. H. Entrepreneurial elites. In: Lipset, S.M. & Solari, A. (eds.). Elites in Latin America, N. York, Oxford University Press, 1967. De onde vêm estes ideólogos - essencialmente os políticos e altos funcionários que forjaram o projeto desenvolvimentista e conduziram o movimento populista? Já eram ideólogos das burguesias tradicionais? Então, de que maneira se "reciclaram"? Se não o eram, como então se constituíram, arautos de uma classe ainda inexistente?

Pode-se introduzir novas hipóteses se, ao contrário, for possível interpretar o papel das camadas médias urbanas de acordo com sua função política, tendo-se em conta a relativa autonomia do aparelho de Estado com relação à classe dirigente. É a este grupo, relativamente autônomo com relação à burguesia tradicional, que cabe a iniciativa do desenvolvimento. Ele consegue dar ao Estado a iniciativa e o predomínio no setor industrial,22 22 Ainda hoje, apesar das tentativas conscientes em contrário, num país como o Brasil, o Estado está na origem de mais da metade dos investimentos industriais. se bem que o projeto desenvolvimentista se proponha expressamente a favorecer a iniciativa privada. A criação de um setor industrial privado - embora de constituição bem fraca - provoca a ilusão da existência de uma burguesia industrial nacional, que teria tomado a frente na coalizão populista.

Na verdade, essa coalizão pode ser interpretada como uma aliança entre as classes urbanas: camadas médias e trabalhadores rurais transformados ou se transformando em operários. Tal coalizão exerce a supremacia política, o que permite ao mesmo tempo equilibrar a supremacia econômica da burguesia agrária, e garantir a sobrevivência de um setor industrial, pelo menos em um primeiro momento.

A lógica do populismo deveria conduzir à expropriação progressiva do setor de exportação, e à extensão do mercado industrial ao campo. A análise do programa chamado de reformas de base do último dos governos populistas - o de João Goulart no Brasil - mostra exatamente estas tendências. Ora, os beneficiários diretos desta política seriam, em primeiro lugar, os setores industriais nacionais. Se se faz a hipótese de que a coalizão populista era dirigida pela burguesia industrial nacional, ou por seus arautos, não se pode compreender por que eles propõem e ao mesmo tempo recusam uma política concebida de acordo com seus próprios interesses.

Se, ao contrário, interpreta-se o populismo como uma coalizão dirigida pelas camadas médias urbanas, pode-se compreender seu fracasso. Incapaz de definir um modelo próprio de produção sobre o qual pudesse basear seu projeto societal, este grupo crê estar a serviço de uma classe imaginária, quando, na verdade, cria uma espécie de capitalismo de Estado.

De fato, a industrialização progressiva beneficiava, secundariamente, as camadas médias e o operariado urbano e, a longo prazo, os trabalhadores rurais. Significava também uma autonomia crescente e uma mobilização cada vez maior do movimento operário. É a importância crescente do setor operário na coalizão populista e a ameaça de mobilização das massas rurais que provocam a queda da coalizão, e não a ênfase posta na industrialização.23 23 Sobre o novo caráter tomado pela crise, ver Weffort, F. C. op. cit. 1968; a propósito da homogeneidade da nova coalizão, ver Las Casas, R. D. de. L'Etat autoritaire - essai sur les formes actuelles de domination impérialiste. In: L'Homme et la Société, n. 18, p. 99-111, 1970. Na verdade, com o fim do populismo a industrialização não estancou, mas foi acelerada; e mesmo as tendências à estatização da economia mantiveram-se constantes ou se aguçaram. A mudança radical repercutiu sobretudo no estado de mobilização e de agitação das classes urbanas. Se excluímos as conseqüências da opção por uma expansão industrial baseada na diversificação do mercado urbano - que não é objeto deste estudo - a característica principal dos regimes pós-populistas seria a de vetar qualquer tentativa de recondução de uma coalizão de tipo populista e, em geral, de qualquer aliança baseada na mobilização e na agitação das classes urbanas, provando assim que as classes dirigentes podem manter o ritmo de expansão industrial sem serem forçadas a mobilizar as massas urbanas para neutralizar a burguesia agrária; o que, de certo modo, põe em questão a idéia que está por trás de todas as interpretações do populismo.

Se a insuficiência de um conceito forjado para explicar o desenvolvimento, revela-se na sua impossibilidade de desempenhar o papel que se lhe atribui, é no contexto do desenvolvimento que é necessário experimentar todo novo conceito destinado a substituir o primeiro. Por isso fomos levados a basear-nos, ao mesmo tempo, na teoria do subdesenvolvimento e, especialmente, no papel desempenhado pelo Estado nos países subdesenvolvidos. A análise que efetuamos, desse duplo ponto de vista, mostrou-nos porque é impossível dar um conteúdo rigoroso ao conceito de "classes médias modernas", se nos contentamos em comentar as hipóteses levantadas a propósito da pequena burguesia ou da burguesia industrial.

Atribuir um conteúdo rigoroso ao conceito de classes médias modernas exige que se defina a relação ao trabalho predominante no seio das novas camadas urbanas. No caso latino-americano, vimos que essa relação ao trabalho não pode ser compreendida fora de uma organização social do trabalho de tipo industrial. Em outras palavras, estas camadas médias são incorporadas a uma organização do trabalho na qual objeto e instrumento de produção são coletivos e em que o trabalho é quantitativamente intercambiável.24 24 Apesar de utilizar termos diferentes, cremos que a análise de C. W. Mills leva a estas conclusões. Cf. White collares. Tradução francesa: Maspero, Paris, 1966, passim.

Se é verdade que as reivindicações de uma categoria social relevam da relação ao trabalho predominante no seio dessa população, é teoricamente inconcebível interpretar as reivindicações e condutas das camadas médias urbanas - em uma palavra, sua ação - nos mesmos termos em que se interpretam reivindicações e condutas da pequena burguesia ou de camponeses de parceria. Todavia, não é suficiente definir a relação ao trabalho para compreender o conjunto de reivindicações de uma categoria social. É ainda necessário saber o lugar onde se realiza esta relação ao trabalho (em nosso caso: o aparelho de Estado) assim como sua função societal (em nosso caso: a produção política da sociedade). Mais ainda, se o conceito de "classes médias modernas", tal qual o definimos no início deste trabalho, recobre de fato uma teoria, é impossível substituí-lo por um conceito isolado: é necessário pensar este novo conceito num novo quadro teórico.

Em todas as sociedades desenvolvidas, camadas cada vez mais numerosas da população incorporam-se a uma organização social do trabalho de tipo industrial.25 25 Certos autores chamam "sociedade pós-industrial" o conjunto deste processo, chamando a atenção para aspectos - no entanto, secundários - desta incorporação maciça da mão-de-obra na organização de tipo industrial, tais como o papel predominante da informação, o caráter intelectual do trabalho, etc. As novas orientações destas camadas sociais vão depender, não somente dessa nova relação ao trabalho, mas também do lugar onde ela se exerce. Desse modo, é preciso distinguir:

a) os setores onde o novo modo de organização da produção substitui um outro (por exemplo, a industrialização tardia da agricultura européia);

b) os setores em que antes predominavam instituições consideradas não-produtivas (a universidade em geral e a pesquisa científica em particular; os lazeres);

c) os setores criados aparentemente ex-nihilo pela sociedade pós-industrial (a informática, a engenharia ambiental etc.);26 26 Se pensamos nos sátrapas (olhos e ouvidos do rei), constatamos que o tratamento da informação não é tão recente quanto se pretende. O que é novo é a transformação do seu resultado em mercadoria.

d) os setores precocemente incorporados à organização industrial do trabalho e tardiamente incorporados à produção econômica (o caso das camadas médias urbanas da América Latina).

Em cada um desses casos, a relação ao trabalho que define as novas classes médias é condição necessária mas não suficiente para explicar o conjunto de novas orientações e reivindicações. Por exemplo, no caso da universidade, parece evidente que as novas orientações encontraram grandes dificuldades para exprimir-se em um meio ainda marcado pela antiga relação ao trabalho. A simultaneidade de tipos de relação ao trabalho encontrada hoje em toda instituição universitária, torna possível, entre outras coisas, a expressão das novas reivindicações nos termos das antigas orientações. Referindo-nos ao movimento de maio de 68 em Paris, e aos movimentos que abalaram as universidades européias, observamos que raramente os novos trabalhadores intelectuais reivindicaram um controle da jornada de trabalho ou da própria qualificação, mas reclamarão a manutenção de seu "papel crítico". Este papel crítico, no entanto, nada mais é do que o subproduto da antiga relação ao trabalho, e a universidade não se encontra mais em condições de assegurá-lo, já que é cada vez menos uma instituição guardiã de valores e cada vez mais um conjunto de empresas produtoras de valores (mercantis).

Outro exemplo da especificidade do setor em que se instaura a nova relação ao trabalho é o caso das camadas médias urbanas latino-americanas. Sua incorporação precoce na organização de tipo industrial poupa-lhes a simultaneidade de diferentes relações ao trabalho. Isto explica, em parte, a homogeneidade das orientações desenvolvimentistas que tornaram possível a coalizão populista. Além disso, sua incorporação tardia no domínio da produção econômica poupa-lhes o processo de diferenciação pelo nível de renda, diferenciação que, nos países desenvolvidos, encobre a identidade entre a relação ao trabalho das "novas" classes médias e da "antiga" classe operária.

De qualquer maneira, é a relação ao trabalho que desempenha o papel decisivo na determinação das orientações de uma categoria social. A incorporação progressiva e maciça das camadas não-operárias na organização industrial do trabalho tenderá a provocar a conjunção das orientações e reivindicações, qualquer que seja o setor. E essas orientações, certamente, não serão as mesmas da pequena burguesia.

  • * Publicado originalmente na revista L'Homme et la Société, n. 24/25, 186-207, 1972,
  • 2 Schumpeter, J. A. The theory of economic development. Cambridge, Mass., Havard University Press, 1955, p. 61-3.
  • 4 Industrialism and industrial man. Londres, Heinemann, 1962.
  • 7 O papel dominante desempenhado pelo setor financeiro não caracteriza, a nosso ver, uma simples fase do sistema de produção de tipo industrial. As observações seguintes, de Marx, referem-se à primeira metade do século XIX: "Não era a burguesia que reinava sob Louis-Philippe, mas uma fração da mesma: banqueiros, reis da Bolsa, reis da estrada de ferro, proprietários de minas de carvão e de ferro, proprietários de florestas, e a parte da propriedade fundiária a eles ligada (...). A burguesia industrial propriamente dita, fazia parte da oposição oficial"... Marx, K. As lutas de classe na França (1848-1850). Tradução francesa, paris, Ed. Sociales, 1967, p. 38.
  • 11 Estes são caçados e exterminados quando se revela a impossibilidade de utilização de sua mão-de-obra. Um novo tipo de sociedade se cria no vazio deixado pelas sociedades autóctones, ou às suas fronteiras. As seguintes observações de Marx são particularmente esclarecedoras a este respeito: "Na pessoa do escravo, o instrumento de produção é diretamente pilhado. Porém, a produção do país em cujo proveito o instrumento é tomado, deve ser organizada de maneira a permitir o trabalho escravo ou (como na América do Sul, etc.) é necessário que se crie um modo de produção conforme à escravidão" (grifo nosso). Marx, K. Introdução à crítica da economia política. Contribuições à crítica da economia política. Tradução francesa, Paris, Ed. Sociales, 1957, p. 162-3.
  • 14 Ver, a esse respeito, Ch. Palloix, em seu artigo publicado em L'Homme et la Société, n. 15, p. 103-38, 1970, especialmente o resumo das teses, p. 135-6.
  • 16 Quanto à função não-econômica das camadas médias na América Latina, ver weffort, F. C. Le populisme dans la politique brésiliense. In: Le Temps Modernes, n. 257, p. 624-49, 1967, especialmente p, 629; ver, também, do mesmo autor, Classes populares e política. Tese de doutoramento, São Paulo, FFL, USP, 1968, p. 45 e seg. mimeogr.
  • ; e Duarte, N. A ordem privada e a organização política nacional São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1966
  • *
    Publicado originalmente na revista
    L'Homme et la Société, n. 24/25, 186-207, 1972, sob o título Notes sur le système du sous-développement, le rôle de l'État et le concept de classes moyennes modernes; traduzido por M.Th. da Costa Albuquerque e revisto pelo autor.
  • 1
    É necessário acrescentar uma dificuldade suplementar, o tipo de atividade econômica de um setor da população seria outra coisa que não o papel econômico por ela desempenhado? Em outras palavras, é o tipo de atividade econômica das classes médias modernas outra coisa do que seu papel empresarial? De fato, um dos elementos do
    explanandum encontra-se, também, no
    explanans, o que certos teóricos
    estruturalistas chamam de papel especular de um elemento teórico.
  • 2
    Schumpeter, J. A.
    The theory of economic development. Cambridge, Mass., Havard University Press, 1955, p. 61-3. Todas as referências à teoria de Schumpeter provêm desta obra; indicaremos, daqui por diante, a página entre parênteses.
  • 3
    Lipset apresenta um excelente resumo das teorias que ligam a existência de uma camada que detém o monopólio da iniciativa econômica à heterogeneidade cultural provocada pela imigração. Lipset, S.M. Elites, education and entrepreneurship in Latin America. In: Lipset, S.M. & Solari, A. (eds.).
    Elites in Latin America. N. York, Oxford University Press, 1967.
  • 4
    Industrialism and industrial man. Londres, Heinemann, 1962. Os números entre parênteses indicam a página e referem-se todos a esta edição.
  • 5
    Trata-se do conceito de classes médias urbanas no sistema do subdesenvolvimento. É aqui, aliás, que o conceito pode ter uma utilidade qualquer na explicação do processo de industrialização. Nas sociedades industriais e
    pós-industriais, as classes médias modernas têm outra origem ou, mesmo, desempenham outro papel.
  • 6
    Um ou outro desses modos pode, perfeitamente, desempenhar, em dado momento, um papel dominante: a industrialização da produção científica e a transformação, em mercadoria, dos lazeres (e, brevemente, do próprio ar que respiramos), são exemplos do terceiro modo de reprodução que parece desempenhar papel determinante nas sociedades industriais de hoje.
  • 7
    O papel dominante desempenhado pelo setor financeiro não caracteriza, a nosso ver, uma simples fase do sistema de produção de tipo industrial. As observações seguintes, de Marx, referem-se à primeira metade do século XIX: "Não era a burguesia que reinava sob Louis-Philippe, mas
    uma fração da mesma: banqueiros, reis da Bolsa, reis da estrada de ferro, proprietários de minas de carvão e de ferro, proprietários de florestas, e a parte da propriedade fundiária a eles ligada (...). A
    burguesia industrial propriamente dita, fazia parte da oposição oficial"... Marx, K.
    As lutas de classe na França (1848-1850). Tradução francesa, paris, Ed. Sociales, 1967, p. 38.
  • 8
    Ver a nota precedente.
  • 9
    De
    tipo industrial: o país colonizado instaura um tipo de produção que utiliza a organização coletiva do trabalho, e meios coletivos de produção; trata-se tanto de minas como de
    plantations.
  • 10
    Cf. Coquéry-Vidrovitch, C. De l'impérialisme britannique à l'impérialisme contemporain,
    In: L'Homme et la Société, n. 18, p. 61-90, 1970.
  • 11
    Estes são caçados e exterminados quando se revela a impossibilidade de utilização de sua mão-de-obra. Um
    novo tipo de sociedade se cria no vazio deixado pelas sociedades autóctones, ou às suas fronteiras. As seguintes observações de Marx são particularmente esclarecedoras a este respeito: "Na pessoa do escravo, o instrumento de produção é diretamente pilhado. Porém, a produção do país em cujo proveito o instrumento é tomado, deve ser organizada de maneira a permitir o trabalho escravo ou
    (como na América do Sul, etc.) é necessário que se crie um modo de produção conforme à escravidão" (grifo nosso). Marx, K. Introdução à crítica da economia política.
    Contribuições à crítica da economia política. Tradução francesa, Paris, Ed. Sociales, 1957, p. 162-3.
  • 12
    O tipo de atividade agrícola de certas sociedades africanas era perfeitamente compatível com a integração de sua mão-de-obra na produção colonial. Os índios americanos, com exceção das grandes civilizações pré-colombianas, pelo contrário, desenvolviam tipos de atividade econômica incompatíveis com o trabalho escravo ou
    livre, tais como as metrópoles aí o instauraram. A mão-de-obra devia, portanto, ser importada.
  • 13
    Desde então, outras companhias das Índias refizeram, pelas mesmas razões, a mesma operação militar e econômica na América Latina. A partir do século XIX, entretanto, uma classe dominante interna já constituída impedia estes grupos econômicos de gerenciar, ao mesmo tempo, a sociedade e a economia colonial. Nestes casos mais recentes o aparelho de Estado interno deve ser mantido e se é obrigado a recorrer ao golpe de Estado (América Latina) ou então, à secessão (África).
  • 14
    Ver, a esse respeito, Ch. Palloix, em seu artigo publicado em
    L'Homme et la Société, n. 15, p. 103-38, 1970, especialmente o resumo das teses, p. 135-6.
  • 15
    De outra maneira, o caudilhismo posterior à independência não teria nenhum sentido. Por que
    senhores feudais lutariam para adquirir o controle do aparelho de Estado, deixando, ao contrário, o poder real nas mãos dos senhores locais? Na verdade, não é da competência do Estado o poder político interno, mas sim, a função de intermediário e o controle da exportação. Sem exercer nenhum controle econômico ou político sobre a produção, os caudilhos e os grupos que lhes eram ligados obtinha o direito de desempenhar, através do aparelho de Estado, um papel econômico fundamental.
  • 16
    Quanto à função não-econômica das camadas médias na América Latina, ver weffort, F. C. Le populisme dans la politique brésiliense. In:
    Le Temps Modernes, n. 257, p. 624-49, 1967, especialmente p, 629; ver, também, do mesmo autor,
    Classes populares e política. Tese de doutoramento, São Paulo, FFL, USP, 1968, p. 45 e seg. mimeogr. ; e Duarte, N.
    A ordem privada e a organização política nacional. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1966
  • 17
    Esta expressão é utilizada aqui num sestido não-teórico; admitimos que ela desloca o problema da desigualdade do intercâmbio e seguimos, neste caso particular, as teses introduzidas por Ch. palloix em seu artigo: La question de l'échange inégal - une critique de l'économie politique. In:
    L'Homme et la Société, n. 18, p. 5-33, 1970.
  • 18
    Este caso não é pura hipótese: nos países onde a solução de industrialização não pôde ser tentada, as classes dominantes internas desapareceram ou foram obrigadas a dividir o essencial de suas tarefas com grandes companhias estrangeiras. A América Central nos dá numerosos exemplos semelhantes.
  • 19
    Cf. Furtado, Celso.
    Dialética do desenvolvimento. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1964; ver também Martins, L. L'épuisement d'un modèle de changement social: la crise du développementisme au Brésil. In: Balandier, G. (ed.).
    Sociologie des mutations. Paris, Anthropos, 1970, p. 451-62.
  • 20
    Cf. Cardoso, F. H.
    Empresário industrial e desenvolvimento industrial no Brasil. Rio de Janeiro, Instituto de Ciências Sociais, UFRJ, 1966.
  • 21
    Cf. Cardoso, F. H. Entrepreneurial elites. In: Lipset, S.M. & Solari, A. (eds.).
    Elites in Latin America, N. York, Oxford University Press, 1967.
  • 22
    Ainda hoje, apesar das tentativas conscientes em contrário, num país como o Brasil, o Estado está na origem de mais da metade dos investimentos industriais.
  • 23
    Sobre o novo caráter tomado pela crise, ver Weffort, F. C. op. cit. 1968; a propósito da homogeneidade da nova coalizão, ver Las Casas, R. D. de. L'Etat autoritaire - essai sur les formes actuelles de domination impérialiste. In:
    L'Homme et la Société, n. 18, p. 99-111, 1970.
  • 24
    Apesar de utilizar termos diferentes, cremos que a análise de C. W. Mills leva a estas conclusões. Cf.
    White collares. Tradução francesa: Maspero, Paris, 1966, passim.
  • 25
    Certos autores chamam "sociedade pós-industrial" o conjunto deste processo, chamando a atenção para aspectos - no entanto, secundários - desta incorporação maciça da mão-de-obra na organização de tipo industrial, tais como o papel predominante da informação, o caráter
    intelectual do trabalho, etc.
  • 26
    Se pensamos nos sátrapas (olhos e ouvidos do rei), constatamos que o tratamento da informação não é tão recente quanto se pretende. O que é novo é a transformação do seu resultado em mercadoria.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Abr 1974
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