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Revisão sistemática e a necessidade de condutas oftalmológicas baseadas em evidências

A tomada de decisões em saúde é um desafio diário na vida do médico oftalmologista. Cada vez mais, pacientes, operadoras e gestores públicos e privados nos exigem condutas baseadas nas melhores evidências científicas disponíveis, buscando a certeza de procedimentos seguros e efetivos. Tais respostas surgem continuamente na literatura e manter-se atualizado em todas as áreas do conhecimento oftalmológico é uma tarefa árdua, que exige um tempo nem sempre disponível aos médicos, os quais têm sua agenda cada dia mais preenchida por um excesso de atividades.

Além disso, realizar novos estudos buscando a solução de uma questão, pode ser um processo lento, caro e demandar recursos estruturais e profissionais nem sempre acessíveis. As revisões sistemáticas surgiram justamente com a intenção de proporcionar à comunidade médica e científica respostas objetivas a perguntas claramente formuladas, sem a necessidade da nova realização de estudos clínicos. A análise qualitativa neutra de estudos já publicados e a metodologia pré-definida diminuem expressivamente a ocorrência de vieses e transformam a revisão sistemática em padrão-ouro na obtenção de evidência rápida e disponível, para a tomada de condutas e elaboração de políticas em saúde.

O primeiro passo para a realização de uma revisão sistemática é a formulação clara de uma pergunta relacionada a uma questão relevante à prática clínica. Uma das formas preconizadas é conhecida pelo acrônimo PICO)11 Scott RW, Murphy AL. Ask, and ye shall retrieve. Evidence-Based Med. 1998; 3(4): 100-1., formado por P de paciente ou população, I de intervenção ou indicador, C de comparação ou controle e O de "outcome", que na língua inglesa significa desfecho clínico, resultado, ou por fim, a resposta que se espera encontrar nas fontes de informação científica22 Nobre MR, Bernardo WM, Jatene FB. [Evidence based clinical practice. Part 1-well structured clinical questions]. Rev Assoc Med Bras (1992). 2003;49(4):445-9. Portuguese.. Por exemplo: "O consumo de vitamina C reduz o risco de catarata?".

No caso acima, o "P" corresponde à população exposta ao risco de desenvolvimento de catarata, o "I" à suplementação ou consumo dietético elevado de vitamina C, o "C" a não utilização desse suplemento (uso de placebo) ou ao consumo dietético em níveis baixos da vitamina e o "O" ao risco de desenvolvimento de catarata. Essa definição clara de uma questão permite a construção de uma estratégia de busca ampla, porém objetiva, a qual será a estrutura para a pesquisa em bases de dados como Cochrane Central Register of Controlled Trials (CENTRAL), Medline, Embase, Lilacs e dados não publicados (busca cinzenta, que abrange desde artigos em revistas não científicas até trabalhos apresentados em congressos). Desse modo, consegue-se recuperar a maior quantidade de estudos referentes à questão levantada presentes na literatura mundial, os quais serão submetidos à análise crítica quanto à elegibilidade para inclusão e qualidade da informação (Figura 1).

Figura 1
Exemplo de metodologia para a recuperação de artigos a serem incluídos em um estudo de revisão sistemática e meta-análise33 Wei L, Liang G, Cai C, Lv J. Association of vitamin C with the risk of age-related cataract: a meta-analysis. Acta Ophthalmol. 2016; 94(3), e170.. Pode-se observar que a definição clara dos critérios para inclusão e exclusão de artigos foi capaz de transformar um número inicial elevado de resultados em uma quantidade menor de estudos a serem levados em conta na revisão e análise estatística.

Quadro 1
Grading of Recommendations Assessment, Development and Evaluation (GRADE)44 Guyatt GH, Oxman AD, Vist GE, Kunz R, Falck-Ytter Y, Alonso-Coello P, Schünemann HJ; GRADE Working Group. GRADE: an emerging consensus on ratingquality of evidence and strength of recommendations. BMJ. 2008;336(7650):924-6.

Progressivamente, os outros níveis de qualidade apresentam conclusões com probabilidade crescente de mudança após a realização de novos estudos e, no nível "Muito Baixa", qualquer recomendação é apenas hipotética.

Em muitos casos, embora bem conduzidos e desenhados, o número de pacientes alocados em apenas um estudo, aliado à magnitude do efeito e/ou à variação de resposta, é incapaz de fornecer uma resposta estatisticamente significante à questão levantada. Para solucionar tal problema, as revisões sistemáticas podem contar com a meta-análise: o agrupamento e análise estatística de resultados de estudos diferentes, porém, com metodologia e características semelhantes.A meta-análise abaixo mostra que o resultado de estudos analisados individualmente nem sempre associado é capaz de demonstrar o uso de vitamina C como fator protetor para o desenvolvimento de catarata, com alguns estudos a apontando inclusive como fator de risco na verdade. O agrupamento dos dados dos diversos estudos permite uma síntese (Figura 2) que permite afirmar que há evidência do efeito protetor da vitamina C em relação ao desenvolvimento de catarata.

Figura 2
Imagem ilus trativa (forest plot) do resultado de um estudo de meta-análise3 demostrando na análise agregada ou global (diamante) a vitamina C como fator protetor relativo ao desenvolvimento de catarata senil (OR: 0,70 - IC 95% 0,56 a 0,88), apesar de estudos como Vitale55 Vitale S, West S, Hallfrisch J,Alston C, Wang F, Moorman C, ET AL.. Plasma antioxidants and risk of cortical and nuclear cataract. Epidemiology. 1993;4(3):195-203. e Taylor66 Taylor A, Jacques PF, Chylack LT Jr, Hankinson SE, Khu PM, Rogers G, et al. Long-term intake of vitamins andcarotenoids and odds of early age-related cortical and posterior subcapsular lensopacities. Am J Clin Nutr. 2002;75(3):540-9. se considerados individualmente, apresentarem odds ratio >1, ou seja, vitamina C como fator de risco55 Vitale S, West S, Hallfrisch J,Alston C, Wang F, Moorman C, ET AL.. Plasma antioxidants and risk of cortical and nuclear cataract. Epidemiology. 1993;4(3):195-203.,66 Taylor A, Jacques PF, Chylack LT Jr, Hankinson SE, Khu PM, Rogers G, et al. Long-term intake of vitamins andcarotenoids and odds of early age-related cortical and posterior subcapsular lensopacities. Am J Clin Nutr. 2002;75(3):540-9..

Este é um exemplo do que pode ser obtido com a revisão sistemática e com a meta-análise dos estudos publicados até o momento. É uma área que merece atenção e incentivo, para que se faça a síntese do melhor conhecimento médico disponível, tornando-o mais acessível a mais colegas.

Em tempos nos quais exige-se dos médicos, paradoxalmente, precisão diagnóstica e terapêutica aliada a custobenefício, torna-se imperativa a realização de revisões sistemáticas e meta-análises, que produzam orientações às condutas oftalmológicas de maneira clara, objetiva, atualizada e baseada na melhor evidência científica disponível na literatura.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Scott RW, Murphy AL. Ask, and ye shall retrieve. Evidence-Based Med. 1998; 3(4): 100-1.
  • 2
    Nobre MR, Bernardo WM, Jatene FB. [Evidence based clinical practice. Part 1-well structured clinical questions]. Rev Assoc Med Bras (1992). 2003;49(4):445-9. Portuguese.
  • 3
    Wei L, Liang G, Cai C, Lv J. Association of vitamin C with the risk of age-related cataract: a meta-analysis. Acta Ophthalmol. 2016; 94(3), e170.
  • 4
    Guyatt GH, Oxman AD, Vist GE, Kunz R, Falck-Ytter Y, Alonso-Coello P, Schünemann HJ; GRADE Working Group. GRADE: an emerging consensus on ratingquality of evidence and strength of recommendations. BMJ. 2008;336(7650):924-6.
  • 5
    Vitale S, West S, Hallfrisch J,Alston C, Wang F, Moorman C, ET AL.. Plasma antioxidants and risk of cortical and nuclear cataract. Epidemiology. 1993;4(3):195-203.
  • 6
    Taylor A, Jacques PF, Chylack LT Jr, Hankinson SE, Khu PM, Rogers G, et al. Long-term intake of vitamins andcarotenoids and odds of early age-related cortical and posterior subcapsular lensopacities. Am J Clin Nutr. 2002;75(3):540-9.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2016
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