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Percepção do paciente portador de glaucoma e os diferentes tipos de tratamento (clínico versus cirúrgico)

RESUMO

Objetivo:

Identificar a percepção dos pacientes sobre o significado de ser portador de glaucoma e a percepção que tem sobre o tratamento clínico ou cirúrgico.

Métodos:

Para a coleta dos dados utilizou-se a pesquisa qualitativa através da estratégia de grupos focais realizados com pacientes em tratamento clínico (grupo 1) e pacientes submetidos à cirurgia antiglaucomatosa (grupo 2). A análise e a interpretação dos resultados foram feitas pela técnica da análise de conteúdo.

Resultados:

O medo da cegueira e a desinformação sobre a doença foram os aspectos negativos mais encontrados com relação a ser portador de glaucoma. O grupo cirúrgico preferiu a situação atual quando comparada à necessidade do uso de medicação. Verificou-se que tanto o glaucoma quanto o seu tratamento impactaram profundamente esses pacientes e que, embora a preocupação com a doença ainda persista, os pacientes operados demonstraram apresentar menos impacto no seu cotidiano. Foram determinantes para a aceitação da indicação da cirurgia a falta de controle da doença e a confiança no médico, sendo esta última considerada um fator primordial nos dois grupos pesquisados, o que aponta para sua importância, independente da decisão tomada pelo paciente na convivência com sua doença.

Conclusão:

Identificaram-se os aspectos negativos mais relevantes com relação ao glaucoma e ao seu tratamento. A confiança na correta indicação do tipo de tratamento, clínico ou cirúrgico, e uma relação sólida entre o paciente e o médico são os fatores determinantes para uma maior tranquilidade dos pacientes em tratamento de glaucoma (clínico ou cirúrgico).

Descritores:
Glaucoma de ângulo aberto/psicologia; Glaucoma de ângulo aberto/terapia; Glaucoma de ângulo aberto/cirurgia; Qualidade de vida

ABSTRACT

Objective:

To identify the meaning and impact on their quality of life of having glaucoma and to understand the patients’ perception on the different types of treatment (medical or surgical).

Methods:

Through a qualitative research, focus groups were conducted with patients in clinical treatment (group 1) and patients who underwent glaucoma surgery in both eyes and were without medication (group 2). The responses were analyzed using the technique of content analysis.

Results:

Fear of blindness and lack of information about the disease were the most cited issues in relation to how it is like to having glaucoma. Medication costs, impact of drops on patients’ daily lives and the side effects were the main points discussed in relation to medical treatment. All patients in the surgical group preferred the current situation (without medication) when compared to the need for chronic use of medication. In the two groups, both glaucoma and its treatment had a profound impact on people, not only from a psychological standpoint, but also affecting their daily lives. Patients operated on for glaucoma appear to have less impact on their daily lives, but the concern about the disease persists.

Conclusion:

We identified the most significant negative aspects of glaucoma and its treatment from patients’ perspectives. Confidence in the correct indication of the type of treatment, clinical or surgical, and a solid relationship between the patient the doctor are determining factors for extra peace of mind of patients being treated for glaucoma.

Keywords:
Glaucoma, open-angle/psychology; Glaucoma, open-angle/therapy; Glaucoma, open-angle/surgery; Quality of life

INTRODUÇÃO

A manutenção e/ou melhoria da qualidade de vida, a um custo aceitável, deve ser encarada como a maior meta do tratamento do glaucoma(11 Dietlein TS, Hermann MM, Jordan JF. The medical and surgical treatment of glaucoma. Dtsch Arztebl Int. 2009; 106(37):597-606.,22 Silva LR, Paula JS, Rocha EM, Rodrigues ML. Fatores relacionados à fidelidade ao tratamento do glaucoma: opiniões de pacientes de um hospital universitário Arq Bras Oftalmol. 2010; 73(2):116-9.). A qualidade de vida está intimamente relacionada com o estágio de dano da função visual do paciente; o impacto psicológico da doença e de seu tratamento; a relação médico-paciente; o custo e os efeitos indesejáveis do tratamento; a independência para realizar tarefas domésticas e de trabalho, tais como dirigir e ler; a inconveniência das aplicações de colírios; e a descrença em sua verdadeira utilidade e eficiência, frutos da desinformação(33 Hong S, Kang SY, Yoon JU, Kang U, Seong GJ, Kim CY. Drug attitude and adherence to anti-glaucoma medication. Yonsei Med J. 2010; 51(2):261-9.

4 Kulkarni SV, Damji KF, Buys YM. Medical management of primary open-angle glaucoma: best practices associated with enhanced patient compliance and persistency. Patient Prefer Adherence. 2008; 2:313-4.

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8 Silva LM, Vasconcellos JP, Temporini ER, Costa VP, Newton-Cara J. Tratamento clínico do glaucoma em um hospital universitário: custo mensal e impacto na renda familiar. Arq Bras Oftalmol. 2002;65(2):299-303.

9 European Glaucoma Society (EGS). Terminology and guidelines for glaucoma. 3a ed. Savona: Dogma; 2008.

10 Severn P, Fraser S, Finch T, May C. Which quality of life score is best for glaucoma patients and why? BMC Ophthalmol. 2008;8:2.
-1111 Lacey J, Cate H, Brodway DC. Barriers to adherence with glaucoma medications: a qualitative research study. Eye (Lond). 2009; 23(4):924-32.).

Para se atingir de maneira adequada e eficiente o objetivo do tratamento do glaucoma, configura-se de fundamental importância a educação do paciente e aconselhamento por parte do médico na busca pelo estabelecimento de um regime terapêutico capaz de transpor as seguintes barreiras: idade, etnia, gênero e classe social(22 Silva LR, Paula JS, Rocha EM, Rodrigues ML. Fatores relacionados à fidelidade ao tratamento do glaucoma: opiniões de pacientes de um hospital universitário Arq Bras Oftalmol. 2010; 73(2):116-9.,44 Kulkarni SV, Damji KF, Buys YM. Medical management of primary open-angle glaucoma: best practices associated with enhanced patient compliance and persistency. Patient Prefer Adherence. 2008; 2:313-4.). Existem, ainda, outros fatores mais subjetivos, que possam servir como barreiras ao tratamento proposto, tais como: valores, crenças e cultura dos pacientes(1111 Lacey J, Cate H, Brodway DC. Barriers to adherence with glaucoma medications: a qualitative research study. Eye (Lond). 2009; 23(4):924-32.,1212 Almeida LD, Machado MC. Atitude médica e autonomia do doente vulnerável. Rev Bioética. 2010;18(1):165-83.).

Basicamente o tratamento do glaucoma é feito através do controle adequado da pressão intraocular e pode ser realizado através de medicamentos (colírios), laser ou cirurgia(1313 Leske MC, Heijl A, Hyman L, Bengtsson B, Komaroff E. Factors for progression and glaucoma treatment: the early manifest glaucoma trial. Curr Opin Ophthalmol. 2004;15(2):102-6.). As diretrizes para tratamento do glaucoma aconselham iniciar o tratamento sempre através de colírios e, classicamente, a cirurgia é deixada para os casos onde o tratamento clínico não está bem indicado (intolerância, custo, baixa aderência e persistência) ou não é suficiente(1414 Nayak B, Gupta S, Kumar G, Dada T, Gupta V, Sihota R. Socioeconomics of long-term glaucoma therapy in India. Indian J Ophthalmol. 2015;63(1):20-4.,1515 Heijl A, Leske MC, Bengtsson B, Hyman L, Bengtsson B, Hussein M; Early Manifest Glaucoma Trial Group. Reduction of intraocular pressure and glaucoma progression: results from the early manifest glaucoma trial. Arch Ophthalmol. 2002;120(10):1268-79.).

Não há evidência na literatura de qual o tipo de tratamento para glaucoma seja preferível por parte dos pacientes. Qual o impacto de ser portador de glaucoma para o paciente? O que ele pensa sobre o tratamento? De que forma encara a possível necessidade da cirurgia e como esta influencia o tratamento? Estes são alguns exemplos de questões que seriam muito difíceis de serem respondidas através de uma metodologia quantitativa. Na literatura médica são praticamente ausentes estudos qualitativos que procuram elucidar as crenças e os valores atribuídos pelos próprios pacientes portadores de glaucoma ao tipo de tratamento (clínico ou cirúrgico) proposto pelo médico.

Este estudo buscou identificar, sob a perspectiva dos pacientes, o significado de ser portador de glaucoma, privilegiando o impacto dessa doença na sua qualidade de vida e a percepção (valores, crenças, medos) que tinham sobre o tipo de tratamento (clínico versus cirúrgico).

MÉTODOS

O método proposto para a realização deste estudo baseiase nos pressupostos da pesquisa qualitativa, onde se trabalha com as noções de significado, crenças, aspirações, motivos, valores e atitudes, visando uma aproximação com o objeto de estudo, conforme proposto por Minayo(1616 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 9a ed. São Paulo: Hucitec; 2006.).

O campo de estudo escolhido foi uma clínica privada especializada em glaucoma, sendo que o projeto de pesquisa teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora (SCMJF), através do Parecer nº 040/2011.

Como estratégia metodológica para coleta de dados, este estudo utilizou grupos focais (discussões e exposições de ideias em grupo) e entrevistas semiestruturadas individuais, quando necessárias, utilizadas para complementar os dados obtidos durante a discussão em grupo.

Os dados clínicos dos pacientes foram obtidos através da análise de seus prontuários médicos e serviram para caracterizar os participantes da pesquisa. Os grupos estudados constituíram-se de pacientes em tratamento clínico (grupo 1) e de pacientes que haviam sido submetidos à cirurgia antiglaucomatosa (grupo 2), sendo que os critérios de inclusão no estudo foram: pacientes maiores de 21 anos, portadores de glaucoma primário de ângulo aberto controlado e em estágio avançado (índice Mean Deviation da campimetria computadorizada < -12,00 dB) em pelo menos 1 olho. No grupo 1 os pacientes estavam em uso contínuo de colírio antiglaucomatoso em ambos os olhos e no grupo 2 haviam sido submetidos à cirurgia em ambos os olhos há pelo menos um ano. Foram excluídos aqueles pacientes que tinham sido operados e que tinham retornado ao uso crônico de colírios antiglaucomatosos, assim como pacientes que não estavam com sua doença considerada controlada pelo médico assistente (tabela 1).

Tabela 1
Características dos participantes da pesquisa

A seleção dos pacientes que preenchiam os critérios de inclusão foi feita através de convites aos mesmos, assim que compareciam a consulta, consecutivamente, até completar o número de 10 pacientes por grupo. Todos os sujeitos da pesquisa leram, concordaram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da SCMJF.

Para a realização do grupo focal, utilizou-se um roteiro de perguntas previamente elaborado, baseado em questões norteadoras (exemplo: Como você lida com o fato de estar com glaucoma? O que você pensa sobre o tratamento? De que forma você encara a necessidade de cirurgia e como esta influencia o tratamento?). As perguntas foram previamente testadas junto a pacientes com as mesmas características dos futuros sujeitos participantes da pesquisa.

As reuniões com os grupos ocorreram em dias diferentes, e a coleta de dados foi interrompida ao se atingir o “ponto de saturação”, ou seja, quando se tornaram recorrentes as informações obtidas durante as dinâmicas de grupos e as entrevistas.

Os debates e entrevistas foram gravados em mídia eletrônica, sendo posteriormente transcritos de forma literal. O conteúdo obtido foi organizado e categorizado, juntamente com os da pesquisa documental, a partir de operacionalização sintetizada em Minayo(1616 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 9a ed. São Paulo: Hucitec; 2006.), que consiste em três etapas: pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados obtidos e interpretação.

Os procedimentos para a análise dos dados tiveram como base a técnica de análise de conteúdo. Por fim, buscou-se relacionar os dados obtidos com o referencial teórico adotado, no sentido de se apreender a percepção dos sujeitos da pesquisa frente à questão central deste trabalho, ou seja, a percepção dos sujeitos pesquisados sobre o glaucoma e seu tratamento.

RESULTADOS

Dos 10 pacientes selecionados para compor a amostra em cada grupo, somente 9 compareceram no dia da reunião. As características de cada um dos participantes estão descritas na tabela 1, sendo que os sujeitos participantes do grupo 1 encontram-se codificados por números (1 a 9), e os do grupo 2 por letras (‘A’ a ‘I’).

O discurso médico e o senso comum contribuem, simultaneamente, para a significação do “estar com glaucoma”, traduzido, de forma unânime, pelo medo da cegueira, mencionado várias vezes pelos sujeitos entrevistados (tabela 2). Alguns pacientes relataram desconhecimento sobre o glaucoma antes de ser diagnosticado com a doença. Falas do tipo: “Assustei por não conhecer” (paciente 1); “Eu nunca tinha ouvido falar em determinada enfermidade” (paciente 1) são exemplos de como o desconhecimento pode gerar um impacto negativo ainda maior no diagnóstico do glaucoma.

Tabela 2
Exemplos de falas sobre o tema "estar com glaucoma"

Os pacientes se referiram à renúncia de atividades que lhe traziam prazer ou que faziam parte da sua rotina como uma mudança de difícil aceitação. Alguns exemplos estão a seguir: “Parei de trabalhar mais cedo do que eu queria. Dirigir, por exemplo, eu sempre quis tirar carteira, mas nunca tive condição” (paciente 6); “Quando eu descobri que eu tinha glaucoma, eu tive que parar de trabalhar e hoje eu não trabalho mais, sabe.....” (paciente 7).

Durante as reuniões dos grupos focais, as falas sobre o uso dos colírios foram recorrentes, mesmo nos pacientes que haviam sido submetidos à cirurgia e não estavam mais os utilizando. A necessidade de uso crônico de colírio gerou discussões fomentadas pela preocupação em dependerem de um medicamento custoso, além do incômodo representado pela mudança de rotina devido aos cuidados envolvidos no correto uso do colírio.

Os pacientes do grupo clínico foram os que mais se expressaram em relação ao custo do tratamento medicamentoso. Todos os pacientes deste grupo foram unânimes ao relatar os problemas relacionados ao uso crônico da medicação. A tabela 3 traz alguns exemplos de falas sobre a percepção dos pacientes sobre a rotina do tratamento crônico com colírios.

Tabela 3
Exemplos de falas sobre as dificuldades e as preocupações com o tratamento clínico do glaucoma

O tratamento farmacológico passa a se constituir em desconforto necessário, de acordo com as falas de todos os pacientes entrevistados. No grupo clínico, a convivência com o colírio é considerada uma dependência da qual reclamam, alegando a preocupação com o esquecimento ou a dificuldade de deslocamento por causa da necessidade da conservação em geladeira de alguns medicamentos. A preocupação com os horários foi dominante, chegando alguns a afirmar que recorrem a recursos os mais diversos e criativos, como o uso de cartazes ou de timer.

No grupo cirúrgico nota-se uma espécie de libertação em relação a tal rotina. Esse grupo demonstrou satisfação com a liberdade que a cirurgia proporcionou, porém persistiu a preocupação com a doença e com a possível necessidade de retorno do uso da medicação.

A tabela 4 apresenta exemplos de falas sobre a percepção dos pacientes a respeito do tratamento cirúrgico do glaucoma. Os efeitos adversos foram lembrados pelos pacientes pertencentes ao grupo cirúrgico, tais como: gosto amargo, visão embaçada após a instilação, olho seco e alergia, confirmados pelos pacientes do grupo clínico, que ainda fazem uso crônico dos mesmos.

Tabela 4
Exemplos de falas sobre a percepção dos pacientes sobre o tratamento cirúrgico

Para os pacientes do grupo de tratamento cirúrgico, a principal motivação para a realização da cirurgia foi a indicação médica, diante da incapacidade do controle do glaucoma somente com a medicação tópica. O medo de ficar cego, mesmo estando em tratamento com colírios, levou os pacientes a aceitarem a indicação cirúrgica como opção válida.

DISCUSSÃO

Na busca pela compreensão do significado de “estar com glaucoma”, devem ser considerados outros aspectos, além dos biológicos, fisiológicos e do tratamento do corpo doente. O portador do glaucoma assimila o que a sociedade lhe oferece em termos de valores, informações, ideais, teorias, construindo a partir desse arsenal sua própria história, tornando-se um ser sóciohistórico-cultural(1717 Cintra FA, Sawaia BB. A significação do glaucoma e a mediacão dos significados de velhice na perspectiva Vygotskiana: subsídios para a educação à saúde. Rev Esc Enferm USP. 2000; 34(4): 339-46.,1818 Vigotsky LS. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes; 1994.).

Frequentemente valoriza-se mais a avaliação visual em si (dados clínicos do exame oftalmológico) do que o impacto da perda visual, ou mesmo a ameaça que essa perda possa ter nas vidas destas pessoas, pois “estar com glaucoma” é o mesmo que não mais ser produtivo, não mais ser independente, se ver diante do desconhecido, situações que o paciente passa a temer. A falta de informação sobre a doença e o medo da cegueira foram temas bastante abordados pelos pacientes deste estudo. “Estar com glaucoma” para alguns pacientes significava a certeza de cegueira e a desinformação se tornava geradora de ansiedade e medo em relação à doença.

A educação sobre a doença se torna importante, não só para o paciente já diagnosticado com a doença, mas também para a população em geral. Uma sociedade mais consciente sobre o glaucoma ajudaria a diminuir o impacto psicológico do “estar com glaucoma”.

O tratamento clínico do glaucoma pode, paradoxalmente, comprometer a qualidade de vida do paciente. Necessidade de uso crônico de medicação, possibilidade de efeitos colaterais, preocupações e ansiedades à respeito da rotina diária do tratamento são alguns exemplos, citados pelos pacientes do presente estudo, a respeito do impacto negativo na qualidade de vida dos pacientes usuários crônicos de colírios. Outro fator não menos importante é o custo do tratamento. Falas do tipo “gota que vale ouro” foram recorrentes durante as entrevistas. A necessidade de sacrificar parte do orçamento familiar também tem um impacto grande, uma vez que o paciente abre mão de atividades consideradas “extras”. Tais atividades, que dependeriam de parte de seu salário, agora comprometido com a medicação, poderiam representar melhoria da mesma qualidade de vida. Neste contexto, incluem-se viagens, alimentação diferenciada, lazer dentre outras.

O glaucoma, com seu curso crônico, exige acompanhamento e tratamento prolongados, aliados a um elevado custo que pode comprometer 25% ou mais da renda familiar do paciente. Um estudo brasileiro apontou que a falta de recursos financeiros foi apontada por 47,6% dos entrevistados como a principal causa da interrupção do tratamento, dificultando a adesão e sendo responsável pela perda do campo visual(88 Silva LM, Vasconcellos JP, Temporini ER, Costa VP, Newton-Cara J. Tratamento clínico do glaucoma em um hospital universitário: custo mensal e impacto na renda familiar. Arq Bras Oftalmol. 2002;65(2):299-303.). As dificuldades em usar o colírio se somam ao custo propriamente dito, uma vez que cada gota perdida deve ser novamente administrada.

Estudos que comparam os diferentes tipos de tratamento do glaucoma utilizando a qualidade de vida como desfecho são raros. Estimulados pela impressão clínica de que pacientes operados de glaucoma teriam uma melhor qualidade de vida do que aqueles em uso crônico de colírios, pesquisadores nos Estados Unidos (Collaborative Initial Glaucoma Treatment Study – CIGTS) randomizaram pacientes recém-diagnosticados com glaucoma para tratamento clínico ou cirúrgico (trabeculectomia). Ambos os grupos apresentaram piores índices de qualidade de vida logo após o diagnóstico. Os índices foram melhorando ao longo do acompanhamento (9 anos), demonstrando que os pacientes tendem a se acostumar com a doença e seu tratamento. Os pacientes do grupo cirúrgico apresentaram discreta piora de qualidade de vida na fase de pós-operatório precoce, ligada diretamente aos efeitos locais da cirurgia. Em longo prazo, os índices de qualidade de vida não apresentaram diferenças(1919 Burr J, Azuara-Blanco A, Avenell A. Medical versus surgical interventions for open-angle glaucoma. Cochrane Database Syst Rev. 2007; (4):CD004399.).

No Brasil, Paletta Guedes et al. identificaram, também através de questionário, que pacientes em estágio inicial de glaucoma apresentavam uma associação entre tratamento cirúrgico e índices mais baixos de qualidade de vida, o que não acontecia para estágios mais avançados da doença. A dimensão mais afetada nestes casos foi a psicológica, levando a crer que ao se indicar uma cirurgia para portadores de glaucoma inicial, o impacto psicológico pode ser grande(2020 Paletta Guedes RA, Paletta Guedes VM, Freitas SM, Chaoubah A. Quality of life of medically versus surgically treated glaucoma patients. J Glaucoma. 2012; 22(5):369-73.).

A questão sobre a preferência do paciente sobre o tipo de tratamento (clínico ou cirúrgico) fica difícil de ser elucidada com pesquisas quantitativas como as citadas anteriormente. O CIGTS não conseguiu responder a esta pergunta e nota-se na pesquisa de Paletta Guedes et al.(2020 Paletta Guedes RA, Paletta Guedes VM, Freitas SM, Chaoubah A. Quality of life of medically versus surgically treated glaucoma patients. J Glaucoma. 2012; 22(5):369-73.) que a escolha do tipo de tratamento pode ter um impacto psicológico não negligenciável em alguns pacientes.

Antes da cirurgia, os pacientes do presente estudo, que haviam sido submetidos ao tratamento cirúrgico tinham sido usuários crônicos de colírio por muito tempo e agora estavam livres deste compromisso. Por isto, eles tinham uma condição única de ter vivido o problema tanto do ponto de vista do tratamento clínico quanto do ponto de vista do tratamento cirúrgico. Quando questionados sobre a preferência entre as duas condições (tratamento clínico versus tratamento cirúrgico), eles foram unânimes em relatar que preferiam a cirurgia, sendo que, apesar do incômodo do uso dos colírios, a confiança na indicação do médico e o bom controle da doença foram os fatores mais importantes para esta opção de tratamento.

A confiança na indicação do tipo de tratamento, clínico ou cirúrgico, e uma relação sólida entre o paciente o médico são os achados mais importantes desta presente pesquisa. Resultado semelhante foi encontrado por Lemaitre et al.(2121 Lemaitre S, Blumen-Ohana E, Akesbi J, Lapalce O, Nordmann JP. Evaluation of preoperative anxiety in patients requiring glaucoma filtration surgery. J Fr Ophtalmol. 2014; (1):47-53.). Em estudo realizado com pacientes portadores de glaucoma que necessitavam de cirurgia filtrante, estes autores encontraram que, tanto a doença quanto o procedimento cirúrgico, são fontes de ansiedade. A relação médico-paciente e a confiança na indicação do tratamento apareceram como peças fundamentais para diminuição da ansiedade pré-operatória relatada pelos pacientes(2121 Lemaitre S, Blumen-Ohana E, Akesbi J, Lapalce O, Nordmann JP. Evaluation of preoperative anxiety in patients requiring glaucoma filtration surgery. J Fr Ophtalmol. 2014; (1):47-53.).

Uma limitação do presente estudo é que a amostra pode não ser representativa para toda a população de portadores de glaucoma primário de ângulo aberto. Este fato é inerente a qualquer pesquisa realizada através de método qualitativo, pois nele a intenção é aprofundar ao máximo a questão a ser respondida e não generalizá-la. O ponto de saturação usado na metodologia qualitativa é um indicativo que uma amostra maior seria desnecessária para atingir o objetivo proposto nesta pesquisa. Uma compreensão profunda dos valores, crenças, preocupações, ansiedades e medos só é possível através de pesquisa qualitativa.

Outra limitação é que os pacientes do grupo cirúrgico podem ter sofrido influência do viés de conduta dos médicos assistentes (tipo de técnica cirúrgica). Ainda como limitação, pode-se relatar o fato de a pesquisa ter sido realizada em um ambiente de clínica privada, o que pode ter influência na percepção dos pacientes. Imagina-se que os valores, crenças e base cultural sejam diferentes entre pacientes que frequentam uma clínica privada e aqueles que são atendidos no ambiente do SUS. Uma outra pesquisa, nos mesmo moldes, com pacientes atendidos pelo sistema público de saúde (SUS) poderia esclarecer esta questão. No entanto, estas limitações não invalidam os presentes resultados.

Concluindo, o glaucoma desperta nos pacientes um sentimento profundo de medo e preocupação não somente com a perda da visão, mas também com o impacto da doença e de seu tratamento no dia a dia. O custo e os efeitos colaterais do tratamento clínico foram os fatores negativos mais relevantes levantados pelos pacientes. Os pacientes do grupo cirúrgico foram unânimes em preferir a cirurgia em relação ao uso crônico de colírios. Pacientes operados de glaucoma parecem apresentar menos impacto negativo no seu cotidiano, porém a preocupação com a doença persiste.

A confiança no médico e na correta indicação do tratamento adequado, seja ele clínico ou cirúrgico, é fator preponderante para uma maior tranquilidade do paciente. O oftalmologista ocupa uma posição privilegiada no que diz respeito à possibilidade de contribuir para a redução da ansiedade do paciente em relação aos procedimentos necessários para sua melhor qualidade de vida.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2015

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2015
  • Aceito
    29 Mar 2015
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