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Avanços em substâncias viscoelásticas na facoemulsificação

Charles Kelman realizou as primeiras cirurgias de facoemulsificação (FACO) na câmara posterior, porém, preocupado em popularizar rapidamente o domínio da técnica, optou por luxar a catarata para a câmara anterior na qual, sem substância viscoelástica (SVE), o risco potencial de danos ao endotélio era presente o tempo todo.1Ambrósio R Jr, Crema A. Tratado Brasileiro de Catarata e Cirurgia Refrativa. In: História da cirurgia de catarata. São Paulo: Cultura Médica, Guanabara Koogan; 2014.

Em meados dos anos oitenta, com o aperfeiçoamento dos facoemulsificadores, a introdução das lentes intraoculares (LIO) dobráveis e das SVE, a utilização da capsulotomia curvilínea contínua e a emulsificação do núcleo do cristalino dentro do saco capsular, a técnica da FACO passou a ter importantes vantagens e grande aceitação pelos pacientes.2Temporini ER, Kara-Junior N, Holzchuh N; Kara-Jose N. Popular beliefs regarding the treatment of senile cataract. Rev Saúde Pública. 2002;36(3):343-9.,3Marback RF, Temporini ER, Kara-Junior N. Emotional factors prior to cataract surgery. Clinics. 2007;62(4):433-8.

As SVE foram originalmente descritos para o uso em cirugia de catarata por Miller e Stegmann em 1980. A primeira SVE disponível no mercado era composto por hialuronato de sódio 1% (Healon), lançado pela Pharmacia no mesmo ano.4Balazs EA, inventor; Biotrics, Inc, assignee. Ultrapure hyaloronic acid and the use thereof. US patent 4. 141 973. October 17, 1979. Suas principais funções são a manuntenção do volume da câmara anterior, especialmente durante a confecção da capsulorrexe e a protecão endotelial durante a FACO. Pode-se citar ainda a capacidade das SVE em ampliar a midríase intraoperatória, romper sinéquias, inibir a formação de radicais livres, fragmentar núcleos moles (visco-fratura), facilitar o implante e/ou explante da LIO, servir como barreira mecânica contra a perda vítrea ou hemorragia, auxiliar na retirada de fragmentos nucleares e restos corticais (viscoexpressão) e até de facilitar a visualização da câmara anterior durante a cirurgia, quando usada sobre a córnea (lente positiva). É fundamental para o cirurgião de catarata conhecer as propriedades das diferentes SVE disponíveis, suas vantagens e desvantagens, para que o produto adequado seja selecionado para cada caso. Muitas vezes, o ideal é combinarmos em diferentes etapas da FACO as caraterísticas dos dois tipos de soluções (coesivos e dispersivos).A técnica consagrada de soft shell, descrita por Arshinoff em 1999, combina um viscoelástico de baixa viscosidade (dispersivo) com uma solução de alta viscosidade (coesivo), em uma camada externa e interna, respectivamente.5Arshinoff SA. Dispersive-cohesive viscoelastic soft shell technique. J Cataract Refract Surg. 1999;25(2):167-73. A utilização de apenas um tipo de solução durante toda a cirurgia, torna improvável a combinação de diferentes propriedades físicas em um único agente.

Os viscoelásticos são soluções aquosas compostos por longas cadeias de polímeros naturais como hialurato de sódio, hidroxipropilmetilcelulose (HPMC) e sulfato de condroitina. Os viscoelásticos podem ser classificadas de acordo com suas propriedades físicas (ou reológicas) em coesivas ou dispersivas.

As soluções coesivas apresentam alto peso molecular e longas cadeias moleculares (alta viscosidade), de maneira que formam uma massa compacta na câmara anterior, facilitando a manuntencão do espaço (e pressurização) durante a FACO. Devido a esse comportamento, são facilmente removidos ao final da cirurgia, porém, são mais propensos a aumentar a pressão intraocular (PIO) por obstruir a malha trabecular.6Espíndola RF, Castro EFS, Santhiago MR, Kara-Junior N. A clinical comparison between DisCoVisc and 2% hydroxypropylmethylcellulose in phacoemulsification: a fellow eye study. Clinics. 2012;67(9):1059-1062

As soluções dispersivas apresentam baixo peso molecular e pequenas cadeias moleculares (baixa viscosidade) o que permite elevada aderência tissular. Essas soluções revestem e protegem melhor os tecidos (especialmente o endotélio) durante a FACO. Sua principal desvantagem é a remoção mais trabalhosa ao final da cirurgia, pois eles ficam mais fragmentados, sendo aspirados em "pedaços", porém, tendem a aumentar menos a PIO que os viscoelásticos coesivos.6Espíndola RF, Castro EFS, Santhiago MR, Kara-Junior N. A clinical comparison between DisCoVisc and 2% hydroxypropylmethylcellulose in phacoemulsification: a fellow eye study. Clinics. 2012;67(9):1059-1062

A escolha da SVE depende da experiência do cirurgião, do caso cirúrgico e dos recursos disponíveis. O uso de mais de uma solução viscoelástica durante a cirurgia, embora seja ideal na maioria dos casos, eleva o custo final do procedimento. Pode não ser a realidade da maioria dos cirugiões e médicos em treinamento no Brasil, dispor de vários tipos de SVE para cada caso. A utilização de uma boa técnica cirúrgica, adequados instrumentais cirúrgicos e facoemulsificadores, podem minimizar a falta da diversidade de soluções disponíveis.

Em último levantamento realizado no Brasil em 2009, a HPMC foi a SVE mais utilizada pelos cirurgiões brasileiros (60,8%).7Santhiago MR, Gomes BAF, Gaffree FFP, Varandas VS, Filho AAC. Tendências evolutivas dos cirurgiões de catarata presentes no IV congresso brasileiro de catarata e cirurgia refrativa. Rev Bras Oftalmol. 2009;68(1):13-7. Provavelmente pelo baixo custo desse agente dispersivo e sua ampla utilização pelos convênios e Sistema Único de Saúde (SUS). Em contrapartida, ao analisarmos práticas de cirurgiões americanos e canadenses, a maioria utiliza o DuoVisc (39%) seguido de DisCoVisc (16%).8Sorensen T, Chan CC, Bradley M, Braga-Mele R, Olson RJ. A comparison of cataract surgical practices in Canada and the United States. Can J Ophthalmol. 2012;47(2):131-9. Em último levantamento da Academia Americana de Catarata de Cirurgia Refrativa (ASCRS), 37% utilizavam DuoVisc (Viscoat e ProVisc) e apenas 2% a HPMC.9Leaming DV. Practice styles and preferences of ASCRS members-2003 survey. J Cataract Refract Surg. 2004;30(4):892-900.

O uso de SVE de alta qualidade pode ser decisivo em algumas situações especiais, na qual o máximo controle do ambiente intraoperatório é exigido. Cataratas hipermaduras, casos pediátricos, córnea guttata/distrofia de Fuchs, câmaras rasas, fragilidade zonular, pupilas pequenas e floppy iris syndrome são alguns desses exemplos.7Santhiago MR, Gomes BAF, Gaffree FFP, Varandas VS, Filho AAC. Tendências evolutivas dos cirurgiões de catarata presentes no IV congresso brasileiro de catarata e cirurgia refrativa. Rev Bras Oftalmol. 2009;68(1):13-7.,1010 Kara-Junior N, Santhiago MR, Kawakami A, Carricondo PC, Hida WT. Mini-rhexis for white intumescent cataracts. Clinics. 2009;64(4):309-12. Entendo, que para alguns casos selecionados, os convênios/seguros de saúde e até mesmo o SUS, deveriam disponibilizar uma diversidade maior de SVE para cirurgia. A combinação de diferentes SVE, como realizada pela maioria dos cirurgiões em países desenvolvidos, além de melhorar os resultados refrativos, podem facilitar a técnica cirúrgica e promover uma melhor proteção endotelial, fator importante para a córnea a médio e longo prazos.

Nos últimos anos, muitos avanços vem aprimorando os resultados da FACO. Com o advento da cirurgia assistida por femtosecond laser, os cirurgiões de catarata tem optimizado seus resultados. Estudos mostram que o tratamento prévio do núcleo pelo laser (fratura e "amolecimento"), tem reduzido o tempo de ultrassom necessário na conquista dos fragmentos durante a FACO.1111 Alió JL,Abdou AA, Puente AA, Zato MA, Nagy Z. Femtosecond laser cataract surgery: updates on technologies and outcomes. J Refract Surg. 2014;30(6):420-7. Menor edema corneano no pós-operatório precoce, proporciona uma recuperação visual mais rápida e portanto, benefícios aos pacientes.

Com menores taxas de ultrassom empregadas com o femtosecond laser, alguns autores acenam para a possibilidade do uso de apenas um tipo de SVE durante a cirugia ou até mesmo não utlilizá-las.1212 Dick HB, Gerste RD, Rivera RP, Schultz T. Femtosecond laser-assisted cataract surgery without ophthalmic viscosurgical devices. J Refract Surg. 2013;29(11):784-7. Entretanto, o uso das SVE permanece fundamental para melhorarmos os resultados, mesmo com o uso desta tecnologia. É bom lembrar que outras variáveis podem afetar o endotélio corneano durante a FACO além do tempo de ultrassom. Podemos citar os efeitos biomecânicos da solução salina (turbulência e volume) e o trauma mecânico direto ocasionado pelos instrumentos cirúrgicos, fragmentos nucleares e da LIO. As SVE minimizam os efeitos destes eventos sobre o endotélio, favorecendo córneas mais claras no pós-operatório.

Em suma, o uso das SVE é fator decisivo para o sucesso da FACO e a combinação de diferentes características deveria estar disponível para a maioria dos cirurgiões, especialmente em casos mais desafiadores.

Rodrigo França de Espíndola

Assistente de Cirurgia Refrativa e Aluno do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Ambrósio R Jr, Crema A. Tratado Brasileiro de Catarata e Cirurgia Refrativa. In: História da cirurgia de catarata. São Paulo: Cultura Médica, Guanabara Koogan; 2014.
  • 2
    Temporini ER, Kara-Junior N, Holzchuh N; Kara-Jose N. Popular beliefs regarding the treatment of senile cataract. Rev Saúde Pública. 2002;36(3):343-9.
  • 3
    Marback RF, Temporini ER, Kara-Junior N. Emotional factors prior to cataract surgery. Clinics. 2007;62(4):433-8.
  • 4
    Balazs EA, inventor; Biotrics, Inc, assignee. Ultrapure hyaloronic acid and the use thereof. US patent 4. 141 973. October 17, 1979.
  • 5
    Arshinoff SA. Dispersive-cohesive viscoelastic soft shell technique. J Cataract Refract Surg. 1999;25(2):167-73.
  • 6
    Espíndola RF, Castro EFS, Santhiago MR, Kara-Junior N. A clinical comparison between DisCoVisc and 2% hydroxypropylmethylcellulose in phacoemulsification: a fellow eye study. Clinics. 2012;67(9):1059-1062
  • 7
    Santhiago MR, Gomes BAF, Gaffree FFP, Varandas VS, Filho AAC. Tendências evolutivas dos cirurgiões de catarata presentes no IV congresso brasileiro de catarata e cirurgia refrativa. Rev Bras Oftalmol. 2009;68(1):13-7.
  • 8
    Sorensen T, Chan CC, Bradley M, Braga-Mele R, Olson RJ. A comparison of cataract surgical practices in Canada and the United States. Can J Ophthalmol. 2012;47(2):131-9.
  • 9
    Leaming DV. Practice styles and preferences of ASCRS members-2003 survey. J Cataract Refract Surg. 2004;30(4):892-900.
  • 10
    Kara-Junior N, Santhiago MR, Kawakami A, Carricondo PC, Hida WT. Mini-rhexis for white intumescent cataracts. Clinics. 2009;64(4):309-12.
  • 11
    Alió JL,Abdou AA, Puente AA, Zato MA, Nagy Z. Femtosecond laser cataract surgery: updates on technologies and outcomes. J Refract Surg. 2014;30(6):420-7.
  • 12
    Dick HB, Gerste RD, Rivera RP, Schultz T. Femtosecond laser-assisted cataract surgery without ophthalmic viscosurgical devices. J Refract Surg. 2013;29(11):784-7.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2014
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