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A importância da diversidade de idéias nas comissões de ética para análise de projetos de pesquisa

EDITORIAL

Newton Kara-Junior

Professor colaborador, livre-docente e professor de pós-graduação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP. Membro do Comitê de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa do Hospital das Clínicas da FMUSP e da Comissão de Ética da Faculdade de Medicina da USP

Com a evolução da medicina que, nas últimas décadas, tem sido lastreada pela prática baseada em evidências, em que decisões clínicas são norteadas por resultados de estudos científicos e não mais apenas pela experiên-cia e percepção de profissionais renomados, tem-se observado, progressivamente, maior interesse por parte de instituições voltadas para o ensino e para a assistência médica, estimulando a realização de estudos clínicos (1).

Em instituições preferencialmente ligadas à pesquisa, a motivação do corpo docente para realização de pesquisas clínicas também tem sido crescente, em grande parte devido a interesses de progressão acadêmica, fomentos governamentais, patrocínios privados e pressões do programa de pós-graduação(2).

Concomitante aos progressos na medicina, as relações pessoais e sociais também vêm evoluindo rapidamente. A preocupação e o respeito com os indivíduos menos favorecidos e/ou vulneráveis têm recebido especial atenção em todas as decisões que envolvem pessoas. Conceitos e práticas que em um passado recente eram considerados normais, muitas vezes, nos dias de hoje, podem ser vistos como exploratórios ou desumanos.

Com o objetivo de regular os limites do que pode ser considerado ética e moralmente correto na execução de estudos científicos, envolvendo seres humanos, as Comissões de Ética em Pesquisa Institucionais também estão se aprimorando para acompanhar e viabilizar o progresso da medicina, sem deixar de observar a evolução das relações interpessoais(3, 4).

O conhecimento da psicologia humana ensina que, em um grupo de trabalho criado para traçar diretrizes e formar opiniões, para que as decisões sejam tomadas com moderação e justiça, em geral, é perigoso deixar que pessoas com características e interesses semelhantes sejam as únicas participantes. Constatou-se que, na ausência de opiniões divergentes, a radicalização de algumas idéias pode ser percebida como normal, fenômeno conhecido como polarização de opiniões. É por esta razão que colegiados, idealmente, devem ser heterogêneos e compostos por membros de todas as partes envolvidas e, preferencialmente, dotados de visões divergentes, mesmo que esta atitude possa levar a discussões complexas, geralmente, com ausência de consenso e com consequente morosidade na tomada de decisões. Porém, nesse modelo, em que o debate é estimulado e o consenso é questionado, a tendência passa a ser a de que opiniões radicais se anulem e o bom senso e a justiça prevaleçam (5, 6).

Como membro da Comissão de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, inicialmente estranhei a composição do grupo de trabalho, formada por, além de médicos pesquisadores, representantes dos sujeitos de pesquisa, advogado, assistente social, padre, psicólogo, farmacêutico, biólogo, enfermeira e outros. A princípio, não compreendia a relevância de discutir aspectos predominantemente médicos com profissionais de tantas áreas, algumas delas sem nenhuma relação direta com o tema.

Contudo, durante as discussões de certos temas, percebi como aquela pluralidade ideológica e cultural é importante. Assuntos que, sob minha perspectiva, lastreada por crenças e conceitos adquiridos na limitada experiência de vida individual e enviesada por objetivos específicos, seriam de simples e lógica decisão, muitas vezes revelavam-se complexos e polêmicos. E, eventualmente, após ouvir todas as partes, até mudei minha opinião. Assim, entendi como é importante valorizar as percepções de pessoas com características, formações, prioridades e experiências diversas.

Nesse contexto, constata-se que até a dedução lógica pode ser relativa, pois tomar uma decisão lógica vai depender da bagagem sócio-cultural de cada pessoa. Assim, o que é lógico para um, pode não ter sentido para outro. Para raciocinar, é necessário possuir conhecimento. Nesse caso, aquele que é mais bem informado (mais experiente) terá subsídios adicionais para basear seu raciocínio. Da mesma forma, é necessário saber interpretar as informações, sendo que a interpretação, em geral, é subjetiva e relacionada com crenças e formações individuais. É por isso que existe o dito popular: "cada cabeça, uma sentença, a cada momento".

Portanto, para avaliar adequadamente determinada questão, é importante considerar percepções diferentes. Não é fácil aceitar pontos de vista divergentes, mas, se nos esforçarmos para, ao menos, tentar entender o sentido de posições antagônicas, em um colegiado onde nenhum dos membros possui interesse pessoal na questão, muitas vezes o resultado será uma lição reflexiva. Lição reflexiva de como funciona o mundo e de como pensam as pessoas, além da possibilidade da tomada de decisões justas e perfeitas, que pode ser aplicada de forma mais abrangente.

Desta forma, permitir que um grupo formado somente por pesquisadores decida o que é ou não correto em experimentos científicos com seres humanos, por mais bem intencionados que sejam os integrantes, as avaliações provavelmente serão tendenciosas e privilegiarão os investigadores e não os investigados, por mais lógico e justo que as decisões possam parecer ao grupo.

É, por esse motivo, que, em geral, se prefere, em defesas de tese de doutorado, compor uma comissão julgadora, misturando professores com linhas de pesquisa semelhantes ao do candidato e acadêmicos de outra subespecialidade. Isso porque a tendência é o super-especialista valorizar aspectos muito específicos do projeto e o avaliador, que não é especialista na área, pode ou não concordar com conceitos que podem ser inaceitáveis sob outro ponto de vista, embora possam parecer normais para aquela subespecialidade.

O raciocínio também é válido na formação de comissões científicas para elaboração de temas de aulas para congressos. Caso a comissão seja composta predominantemente por super-especialistas, a tendência é de que o programa científico formulado seja de nível avançado, pois esta é a realidade dos elaboradores e, se questionados, provavelmente, alegarão que, em sua experiência, este é o nível de aula que a platéia, a qual eles mantêm contato, deseja assistir. O problema está no conceito de "em sua experiência", pois, embora a decisão possa ser correta, em se considerando seus pares, a realidade é que um encontro científico, em geral, é formado por congressistas dotados de conhecimento técnico heterogêneo. Esta distorção pode ser solucionada, por exemplo, com a formação de uma comissão científica composta por super-especialistas, generalistas e especialistas em ensino para residentes. Esta é a garantia de que todos os interesses serão considerados, pois diferentes percepções serão expostas. Neste caso, provavelmente as discussões para definição dos temas serão mais longas, muitas vezes sem consenso, porém o resultado será mais justo sob a perspectiva das diversas partes envolvidas.

Voltando à discussão sobre a Comissão de Ética em Pesquisa, a principal preocupação dos avaliadores é com a integridade dos sujeitos de pesquisa, os quais assumem posição vulnerável na relação médico-paciente, pois na condição de doentes, dificilmente negariam solicitação da equipe médica para participar de estudos científicos. Assim, a missão da Comissão é a de associar a necessidade de progresso da medicina baseada em evidências com a preservação dos sujeitos de pesquisa. E uma das garantias de que todos os pontos de vista serão considerados é a pluralidade de percepções e opiniões entre os integrantes da Comissão.

  • 1. Kara-Junior N. A democratização do conhecimento médico e seus desafios. Rev Bras Oftalmol. 2013;72(1): 5-7.
  • 2. Chamon W. Paixão, publicação, promoção e pagamento: quais "Ps" motivam os cientistas?. Arq Bras Oftalmol. 2012; 75(2):381-2.
  • 3. Rocha EM. Ética em publicações científicas: um trabalho de todo dia - a busca do valor absoluto no mundo relativizado. Arq Bras Oftalmol. 2010; 73(3):217-8.
  • 4. Muccioli C. Dantas PE, CamposM, Bicas HE. Relevância do Comitê de Ética em Pesquisa nas publicações científicas. Arq Bras Oftalmol. 2008;71(6):773-4.
  • 5. Lois CB, Tavares RS. Direito, deliberações coletivas e limites da racionalidade: uma análise dos fenômenos das cascatas sociais e polarização grupal. Rev Argumenta. 2010;(13):155-67.
  • 6. Cavazza N. Psicologia das atitudes e das opiniões. São Paulo: Edições Loyola; 2008.
  • A importância da diversidade de idéias nas comissões de ética para análise de projetos de pesquisa

    The importance of diversity of ideas in ethics commissions for analysis of research projects
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Nov 2013
    • Data do Fascículo
      Out 2013
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