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Anestesia no paciente com síndrome do pulmão encolhido: relato de caso

Resumos

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: A incidência de acometimento pulmonar no Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES) pode apresentar-se como uma síndrome denominada Síndrome do Pulmão Encolhido (SPE). De fisiopatologia bastante controversa, a SPE pode induzir dependência da ventilação mecânica. Devido à raridade, o número de publicações é restrito. O objetivo deste relato é apresentar o caso de paciente com SPE, submetida à correção de hérnia incisional sob anestesia peridural torácica. RELATO DO CASO: Paciente hipertensa, obesa e portadora de LES, diagnosticada com SPE há 18 anos. Dependente de oxigênio domiciliar noturno, apresentava dispneia aos pequenos esforços e espirometria com distúrbio ventilatório restritivo grave. Em pós-operatório anterior sob anestesia geral, permaneceu em ventilação mecânica por nove dias com desmame difícil. Submetida à correção de hérnia incisional por três horas sob anestesia peridural torácica, sem qualquer complicação respiratória per ou pós-operatória. CONCLUSÕES: A Síndrome do Pulmão Encolhido é uma doença rara, que exige do anestesiologista conhecimentos prévios, clínico e laboratorial, do paciente. A técnica de anestesia peridural torácica mostrou-se uma opção anestésica satisfatória para esta paciente, com evolução respiratória altamente satisfatória.

ANESTÉSICAS; ANESTÉSICAS; CIRURGIA; COMPLICAÇÕES; SÍNDROMES; TÉCNICAS


JUSTIFICATIVA Y OBJETIVOS: La aparición de la afectación pulmonar en el Lupus Eritematoso Sistémico (LES), puede aparecer como un síndrome denominado: Síndrome del Pulmón Encogido (SPE). De fisiopatología bastante controvertida, la SPE puede inducir a la dependencia de la ventilación mecánica. Debido a su raro aparecimiento, el número de publicaciones es muy pequeño. El objetivo de este relato, es presentar el caso de un paciente con SPE, sometida a la corrección de hernia incisional bajo anestesia epidural torácica. RELATO DEL CASO: Paciente hipertensa, obesa y portadora de LES, diagnosticada con SPE hace 18 años. Dependiente de oxígeno domiciliario nocturno, presentaba disnea a los pequeños esfuerzos y espirometría con disturbio ventilatorio restrictivo grave. En el postoperatorio anterior bajo anestesia general, permaneció en ventilación mecánica por nueve días con destete difícil. Fue sometida a la corrección de hernia incisional durante tres horas bajo anestesia epidural torácica, sin ninguna complicación respiratoria per o postoperatoria. CONCLUSIONES: El Síndrome del Pulmón Encogido es una enfermedad rara que exige del anestesiólogo tener conocimientos previos, clínicos y laboratoriales sobre el paciente. La técnica de anestesia epidural torácica ha sido una opción anestésica satisfactoria para esa paciente, con una evolución respiratoria altamente satisfactoria.

ANESTÉSICAS; ANESTÉSICAS; CIRUGÍA; COMPLICACIONES; SÍNDROMES; TÉCNICAS


BACKGROUND AND OBJECTIVES: The incidence of pulmonary involvement in systemic lupus erythematosus (SLE) may be presented as a syndrome called shrinking lung syndrome (SLS). SLS has quite a controversial pathophysiology, which can induce to a mechanical ventilation dependency. Due to its rarity, there is a limited number of publications on the subject. The objective of this report is to present the case of a patient with SLS who underwent incisional hernia repair under epidural anesthesia. CASE REPORT: Female patient with SLE, hypertensive and obese, diagnosed with SLS 18 years ago. She was dependent on nocturnal oxygen at home, had dyspnea on minimal exertion and spirometry with severe restrictive ventilatory defect. In a previous post-operative period under general anesthesia, she remained on mechanical ventilation for 9 days with difficult weaning. She underwent incisional hernia repair for 3 hours under thoracic epidural anesthesia without any pre- or post-operative respiratory complication. CONCLUSIONS: Shrinking lung syndrome is a rare disease that requires a prior knowledge of the clinical and laboratory history of the patient by the anesthesiologist. The thoracic epidural anesthesia technique proved to be a satisfactory option for this patient, with highly satisfactory respiratory evolution.

Anesthesia; General Surgery; Lupus Erythematosus; Respiratory Muscles; Ventilation/complications


INFORMAÇÕES CLÍNICAS

Anestesia no paciente com síndrome do pulmão encolhido: relato de caso

Silvia Piccolo-DaherI; Edno Magalhães, TSAII

IAnestesiologista

IIMestrado; Professor Adjunto da Universidade de Brasília (UnB); Diretor do Departamento Científico da Sociedade Brasileira de Anestesiologia; Responsável pelo CET/SBA, UnB

Correspondência para Correspondência para: SGAN 608, módulo F Asa Norte 70850080 Brasília, DF, Brasil E-mail: silviapd@gmail.com

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: A incidência de acometimento pulmonar no Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES) pode apresentar-se como uma síndrome denominada Síndrome do Pulmão Encolhido (SPE). De fisiopatologia bastante controversa, a SPE pode induzir dependência da ventilação mecânica. Devido à raridade, o número de publicações é restrito. O objetivo deste relato é apresentar o caso de paciente com SPE, submetida à correção de hérnia incisional sob anestesia peridural torácica.

RELATO DO CASO: Paciente hipertensa, obesa e portadora de LES, diagnosticada com SPE há 18 anos. Dependente de oxigênio domiciliar noturno, apresentava dispneia aos pequenos esforços e espirometria com distúrbio ventilatório restritivo grave. Em pós-operatório anterior sob anestesia geral, permaneceu em ventilação mecânica por nove dias com desmame difícil. Submetida à correção de hérnia incisional por três horas sob anestesia peridural torácica, sem qualquer complicação respiratória per ou pós-operatória.

CONCLUSÕES: A Síndrome do Pulmão Encolhido é uma doença rara, que exige do anestesiologista conhecimentos prévios, clínico e laboratorial, do paciente. A técnica de anestesia peridural torácica mostrou-se uma opção anestésica satisfatória para esta paciente, com evolução respiratória altamente satisfatória.

Unitermos: ANESTÉSICAS, Regional, peridural; CIRURGIA, abdominal; COMPLICAÇÕES, Ventilatória; SÍNDROMES, Lúpus Eritematoso Sistêmico; TÉCNICAS.

INTRODUÇÃO

O Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES) é uma doença autoimune difusa do tecido conjuntivo, caracterizada pela formação de autoanticorpos e complexos imunes, com manifestações clínicas e imunológicas diversas1. O envolvimento pulmonar pode ocorrer de 60% a 80% dos casos2, podendo acometer as vias aéreas superiores, pleura, parênquima e vasos pulmonares, de diferentes formas3. Algumas manifestações pleuro-pulmonares incluem pleurisia, pneumonite, fibrose, hemorragia alveolar, bronquiolite obliterante, hipertensão e tromboembolismo pulmonar. Mais raramente, pode surgir como a Síndrome do Pulmão Encolhido (SPE), uma manifestação rara do LES, caracterizada por dispneia inexplicada, padrão restritivo à espirometria e elevação diafragmática, na ausência de doenças no parênquima pulmonar4.

Apesar da existência de alguns estudos descrevendo a SPE, não há na literatura estudos que considerem o manejo anestésico destes pacientes. O objetivo deste relato é descrever um caso de portadora da SPE, submetida à anestesia peridural torácica para correção de hérnia incisional.

RELATO DE CASO

Mulher de 54 anos a ser submetida à cirurgia de herniorrafia incisional supraumbilical, três meses após cirurgia de adrenalectomia esquerda (incidentaloma).

Diagnosticada com artrite reumatoide há 33 anos e LES há 22, em uso de prednisona (5 mg.d-1). Episódio de infarto agudo do miocárdio há 20 anos, sem sequelas. Há 18 anos, diagnosticada com SPE e, atualmente, dependente de oxigênio domiciliar noturno 2 L.min-1. Apresentava obesidade grau II, hipertensão arterial sistêmica, em uso de propranolol (80 mg.d-1) e diabetes mellitus em uso de acarbose (150 mg.d-1). Utilizava ainda AAS (100 mg.d-1, interrompido há duas semanas) e atorvastatina (20 mg.d-1). Relatava dispnéia aos pequenos esforços. Ex-tabagista há 15 anos, quando fumou 30 maços/ano por 15 anos. Submetida a cirurgias prévias sem complicações anestésicas, exceto após adrenalectomia esquerda, quando apresentou difícil desmame da ventilação mecânica, necessitando de traqueostomia e cuidados em UTI por nove dias.

Ao exame físico, apresentava bom estado geral, lúcida e orientada, afebril, acianótica, anictérica, hidratada e corada. Peso: 90 kg; altura: 1,60 m (IMC = 35 kg.m-2).

Aparelho Respiratório: murmúrio vesicular universalmente audível, com crepitações na base de hemitórax direito. Aparelho Cardiovascular: ritmo cardíaco regular em dois tempos, com bulhas normofonéticas e sem sopros. Pressão arterial: 110x70 mmHg; frequência cardíaca: 64 bpm. Abdômen globoso com anel herniário em região supraumbilical direita de ± 4 cm. Via aérea: Malampatti III, boa abertura bucal (4 cm) com cicatriz de traqueostomia.

O hemograma não mostrou alterações. Gasometria arterial: pH: 7,29, pCO2: 45,2 mmHg, pO2: 49,4 mmHg, HCO3: 20,4. Ecocardiograma: FE: 69%, refluxo regurgitante mitral holossistólico sem repercussão sistêmica. A radiografia de tórax mostrava elevação de hemicúpula diafragmática direita (Figura 1). A tomografia de tórax evidenciava faixas de atelectasia subsegmentar em lobos pulmonares médios e inferiores direitos, espessamento pleural bilateral, elevação de cúpula diafragmática direita e espessamento pericárdico. À espirometria, um distúrbio ventilatório restritivo grave com redução moderada da difusão alvéolo-capilar de oxigênio. Previamente avaliada pelas equipes da cardiologia e pneumologia, sendo liberada para o procedimento. Classificação da ASA: estado físico PS (P) III.


Na sala de operações, foi preparado e testado todo o material de via aérea, inclusive com máscara laríngea disponível. Após realização de venóclise, a paciente foi devidamente monitorizada com pressão arterial não invasiva, saturação de oxigênio, eletrocardiograma e sonda vesical. Apresentava saturação de oxigênio de 94% e após uso de cateter nasal de oxigênio, saturação de 96% a 98%. Foram administrados 2,5 mg de midazolam e 300 mg de hidrocortisona. A paciente foi submetida à anestesia peridural pela técnica de perda da resistência, por punção mediana em T10-T11 e administrada dose teste com 3 mL de lidocaína a 2% com vasoconstritor, sem repercussões hemodinâmicas. O cateter peridural foi posicionado e, em seguida, foram administrados 15 mL de ropivacaína a 0,75% e 50 µg de fentanil. A pressão arterial invasiva foi obtida e uma gasometria arterial foi colhida. A cirurgia transcorreu sem intercorrências. A paciente manteve estabilidade hemodinâmica e sedação adequadas.

Ao final da cirurgia, que durou três horas, foi administrada nova dose peridural de 10 mL de ropivacaína a 0,125%, 2 g de dipirona e 8 mg de ondansetrona por via endovenosa para analgesia pós-operatória e prevenção de náuseas e vômitos. A diurese total foi de 250 mL. A paciente foi encaminhada à Unidade de Terapia Intensiva (UTI) hemodinamicamente estável, acordada, lúcida e cooperativa, recebendo oxigênio sob máscara de Venturi (10 L.min-1) e monitorizada.

Na UTI, permaneceu sem queixas, em uso de dipirona 2 g de 4/4 horas, sem necessidade de outras medicações para dor ou vômitos. Recebeu alta da UTI após 24 horas, quando foi liberada para a enfermaria e obteve alta hospitalar no terceiro dia pós-operatório.

DISCUSSÃO

A patogênese da SPE é controversa3,5. Sugere-se que existe uma fraqueza dos músculos respiratórios, principalmente do diafragma, devido a uma miopatia não relacionada à corticoterapia5. Esta hipótese nem sempre é aceita por alguns pesquisadores, que aventam a restrição da parede torácica como a principal causa6. A maioria dos autores concorda que a SPE é uma entidade heterogênea e se relaciona com múltiplos processos patogênicos5. Seu tratamento permanece empírico e envolve o uso de corticoesteroides, imunosupressores, xantinas e beta-agonista inalatório (devido ao efeito inotrópico positivo dessa substância sobre os receptores beta do músculo diafragmático)2-5,7. Geralmente o prognóstico é bom, com melhora e estabilização do quadro pulmonar; porém, há relato de óbito de paciente que permaneceu dependente de ventilação mecânica, apesar de altas doses de corticoesteróides5.

Nossa paciente apresentava uma espirometria com padrão restritivo e volumes pulmonares reduzidos, na ausência de afecções pleuropulmonares que justificassem a dispneia e oxigenoterapia. A realização da anestesia peridural visou evitar a instituição precoce de ventilação mecânica nesta paciente, possibilitando o ato cirúrgico sob respiração espontânea. Objetivou-se também evitar possível permanência prolongada em ventilação mecânica e controle adequado da analgesia pós-operatória.

Influenciam na decisão sobre a anestesia, o tempo e campo cirúrgicos, além das condições clínicas do paciente. Os efeitos da anestesia peridural sobre a função pulmonar parecem ser benéficos8,9. Tanto anestésicos locais como opioides ajudam a função diafragmática, melhorando volumes e capacidades pulmonares e reduzindo as complicações no pósoperatório9,10. Caso a dispersão do anestésico local alcance raízes cervicais (C5 a C3), a função respiratória pode estar comprometida pelo bloqueio dos nervos intercostais e pelo bloqueio parcial ou total do nervo frênico. As alterações dos volumes e capacidades pulmonares após o bloqueio peridural não devem ser esquecidas, uma vez que alteram diretamente a reserva respiratória.

A ropivacaína é um anestésico local do grupo das pipecolxilididas, destacando-se pela menor intensidade do bloqueio motor e menor potencial para toxicidade cardiovascular, quando comparada à bupivacaína8,9. Sabe-se que o bloqueio peridural torácico com soluções concentradas de bupivacaína provoca redução moderada da capacidade vital e do fluxo inspiratório máximo, devido provavelmente a certo grau de relaxamento dos músculos intercostais8,9. A utilização de soluções menos concentradas de um anestésico local como a ropivacaína pode diminuir a possibilidade de comprometimento significativo da musculatura respiratória9.

Considerando a alta incidência de hipotensão e bradicardia, pelo bloqueio das fibras simpáticas cardioaceleradoras, esta técnica deve ser realizada com extrema cautela. É de vital importância a adequada seleção dos pacientes, rigorosa monitoração das funções vitais e conhecimento da técnica escolhida e suas implicações sobre a fisiologia.

CONCLUSÃO

A Síndrome do Pulmão Encolhido é uma doença rara, cujas particularidades exigem do anestesiologista conhecimentos clínico e laboratorial prévios do paciente. A técnica peridural torácica mostrou-se uma boa opção anestésica para esta paciente, com evolução respiratória altamente satisfatória.

Submetido em 8 de dezembro de 2010.

Aprovado para publicação em 19 de junho de 2011.

Recebido pela Universidade de Brasília (UnB), Brasil.

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  • Correspondência para:

    SGAN 608, módulo F Asa Norte
    70850080 Brasília, DF, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Mar 2012
    • Data do Fascículo
      Abr 2012

    Histórico

    • Recebido
      08 Dez 2010
    • Aceito
      19 Jun 2011
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