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Celso Furtado, os Diários intermitentes e o Brasil: as memórias de um intelectual público

Celso Furtado, “Diários intermitentes” and Brazil: the memories of a public intellectual

FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-20021. ed. São PauloCompanhia das Letras2019448 p

RESUMO

A presente resenha aborda os diários pessoais de Celso Furtado. Esses diários cobrem a sua vida dos 17 até seus 82 anos, sendo importantes para reafirmar não apenas a coerência ética do autor, mas para aclarar o sentido nuclear de seu pensamento enquanto intelectual e homem público. Nesse sentido, trata-se de uma obra com potencial para abrir caminhos para releituras e novas interpretações do pensamento furtadiano.

PALAVRAS-CHAVE:
Celso Furtado; memórias; intelectual público

ABSTRACT

This review covers Celso Furtado’s personal diaries. These diaries cover his life from 17 to 82 years of age, being important to reaffirm not only the author’s ethical coherence, but to clarify the core meaning of his thinking as an intellectual and public man. In this sense, it is a work with the potential to open paths for reinterpretations and new interpretations of furtadian thought.

KEYWORDS:
Celso Furtado; memoirs; public intellectual

Os “diários” são produtos da modernidade (LIMA; SANTIAGO, 2010LIMA, Nádia; SANTIAGO, Ana. O diário íntimo como produto da cultura moderna. Arq. bras. psicol., Rio de Janeiro, v. 62, n. 1, p. 22-34, abr. 2010. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672010000100004&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 2 nov. 2020.
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). Produtos característicos que ao serem divulgados ao público recolocam as individualidades sempre em novos e renovados processos de reavaliação e reposicionamento. Isso porque não se pode desprezar o que as facetas íntimas podem revelar sobre a essência e os fundamentos que caracterizam o diarista. É nesse sentido que esse precioso material inédito que compõe os Diários intermitentes tem um lugar muito especial na obra de Celso Furtado, sendo um importante complemento aos três volumes que integram a sua obra autobiográfica2 2 Os três volumes de autobiografia são: A fantasia organizada (1985), A fantasia desfeita (1989) e Os ares do mundo (1991). Esses três volumes integram a edição definitiva republicada em 2014 com o título Obra autobiográfica (2014). e dando um tom distinto, mais intimista e, certamente, mais desvelador em sua faceta memorialista. É então uma obra que abre caminho para releituras e novas interpretações do pensamento furtadiano.

Os Diários intermitentes: 1937-2002, conjuntamente aos seis volumes dos Arquivos Celso Furtado3 3 Faço referência às publicações: Arquivos Celso Furtado 1 - Ensaios sobre a Venezuela: subdesenvolvimento com abundância de divisas (2008); Arquivos Celso Furtado 2 - Economia do desenvolvimento: curso ministrado na PUC em 1975 (2009); Arquivos Celso Furtado 3 - O Nordeste e a saga da Sudene (2009); Arquivos Celso Furtado 4 - O Plano Trienal e o Ministério do Planejamento (2011); Arquivos Celso Furtado 5 - Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura (2012); Arquivos Celso Furtado 6 - Anos de formação - 1938-1948 (2014). publicados recentemente, sem dúvida são obras que revelam muito do ser humano, do humanista, do ético homem público que foi Furtado. Mas, sobretudo, aclaram a coerência de fundo de sua obra, o sentido nuclear de seu pensamento e, principalmente, um projeto de republicanização do país que compreendeu todo o seu esforço como intelectual público e como ator político.

Encontramos em seus diários muito de suas disputas, de suas lutas travadas ao longo de sua vida, lastreamos neles suas frustrações e conquistas, sonhos, realizações, tristezas e alegrias. Como um autor longevo de grande fôlego, e absolutamente relevante no plano nacional e internacional, podemos reconstituir a partir dos seus diários os momentos-chave da história política brasileira, que compreendem os anos finais do primeiro governo Vargas até o fim do governo Fernando Henrique Cardoso, perpassando as administrações Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, João Goulart (Jango), a ditadura civil-militar e o governo José Sarney. Do mesmo modo, é possível reconstituir historicamente fatos cruciais da conjuntura internacional ao longo dos 65 anos abrangidos por sua obra memorialista.

Nesse sentido, seus diários estão repletos de análises, impressões, diagnósticos e, ainda, opiniões muito pessoais sobre o caráter de algumas figuras públicas que conviveram com ele durante sua vida, dentre elas: Villa-Lobos, Raúl Prebisch, Juscelino Kubitschek, Roberto Campos, Josué de Castro, Tancredo Neves, José Serra, Mário Covas, Leonel Brizola, Ulysses Guimarães, Waldir Pires, dom Helder Câmara, Roland Corbisier, Fernand Braudel, dentre outros.

Trata-se de uma bela publicação, que, além de desvelar a intimidade intelectual de um grande pensador, está repleta de imagens de documentos oficiais, documentos pessoais, fotografias de páginas manuscritas dos diários originais, cartas, fotos de Furtado junto a várias personalidades políticas, manchetes de jornais, artigos etc. Todas essas ilustrações incluídas na edição dão um sabor diferente e tornam a leitura dos Diários ainda mais rica e prazerosa.

Os diários furtadianos foram denominados “intermitentes” por conterem hiatos que fogem à estética regular de um diário. Rosa Freire d’Aguiar, idealizadora e organizadora do livro, ressalta que os diários eram para Furtado o lugar no qual ele assinalava, quando o tempo e o motivo eram adequados, aquilo de mais relevante ele havia fixado naquele momento em específico. Ela afirma que os diários foram para Furtado um lugar de diálogo com ele mesmo.

Realizada esta breve apresentação da obra, passemos então aos dez capítulos que compõem os Diários intermitentes. O primeiro texto, “João Pessoa e Recife, 1937-1939”, nos conta o período final de estudos no Liceu Paraibano, em João Pessoa, sua jornada para conseguir o certificado de reservista do exército, sua mudança para Recife, onde cursou o pré-jurídico no Ginásio Pernambucano, e sua volta para João Pessoa, abrangendo ainda o período de estudos no Instituto de Educação.

Esses anos de formação revelam muitas leituras - Platão, Schopenhauer, Marx, Weber e outros mais -, bem como deixam explícito o gosto pela literatura que o acompanhara durante toda a vida. Nesse momento o autor conta ter lido O guarani e Diva, de José de Alencar, Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba, de Machado de Assis, Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, e Joseph Fouché: retrato de um homem político, de Stefan Zweig.

Esse capítulo indica a sua primeira experiência como professor. Como um dos destaques do Centro Estudantil do Liceu Paraibano, Celso Furtado foi designado para lecionar geografia e história na periferia de João Pessoa no ano de 1937. Sabemos ainda, que incentivado pela Cruzada Nacional da Educação4 4 Essa campanha foi criada por Getúlio Vargas em 1932 e incentivava estudantes e professores a organizar cursos de alfabetização de adultos. criada por Getúlio Vargas, Furtado alfabetizou adultos dando aulas noturnas no quintal da casa de seus pais. Comparece ainda uma passagem premonitória relevante: Furtado, em 20 de agosto de 1938, registra a ideia de escrever uma história da civilização brasileira.

O segundo texto, “Rio de Janeiro, 1940-1946”5 5 Esse texto, em função da organização editorial, exclui o período no qual Celso Furtado participa da Segunda Guerra Mundial em 1945. , registra o intenso período em que residiu na capital do Brasil. No Rio de Janeiro cursou Direito na Faculdade Nacional de Direito, trabalhou como jornalista na redação da Revista da Semana e como assistente de revisor no Correio da Manhã. No Rio foi também servidor público no Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp) - após prestar concurso -, e cursou o Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR) durante dois anos. Trata-se de um momento muito extenuante para o jovem Furtado, ele relata que alguns dias chegou a trabalhar por até 15 horas. Todavia, é também um rico período de descobertas culturais. Furtado relata as suas várias idas aos concertos, dos quais selecionava os gratuitos, já que a sua condição financeira não lhe permitia pagar por esse prazer cultural. Quando ocorriam os concertos com figuras e obras “imperdíveis”, lutava para “juntar o dinheiro necessário para aproveitar” (p. 59). Percebemos que Furtado compreendeu desde cedo o valor da cultura para a formação e a felicidade humana. Nesse período conheceu Villa-Lobos, a quem admirava.

Em abril de 1942 Furtado faz a sua primeira visita a Ouro Preto, encantando-se pela cidade, pelos tipos locais e curiosidades dali. Durante a sua estadia ele escreve: “Tem-se a impressão de que se recuou no mínimo duzentos anos. Eu me esqueci de que há guerra no mundo, de que há misérias, de que há muito para fazer, de que há homens que sofrem a vida inteira, só porque não se lhes permite trabalhar no seu verdadeiro lugar; esqueci tudo” (p. 60).

Nesse capítulo comparecem pela primeira vez as primeiras linhas sobre política. Furtado critica a atuação dos parlamentares na Assembleia - “estão desinteressados ou divorciados da realidade brasileira” (p. 72) -, bem como critica a carência e a pauperização dos serviços públicos no Rio de Janeiro - a angustiante falta de água e a deficiência dos transportes. Seu interesse pelo planejamento já estava presente, desejava ir à França, à Suíça e à União Soviética para estudar planificação econômica e social.

O terceiro capítulo, “A guerra na Itália, 1945”, descreve o período em que Furtado esteve na Europa como oficial do Exército na Segunda Guerra Mundial. Nas suas palavras: “A guerra é essencialmente duas coisas: trabalho e destruição” (p. 83). Servindo na Itália, Furtado analisa que o fascismo corrompeu a moralidade da Nação, fragmentando-a de tal modo que ela perdeu o seu sentido de coletividade. Nosso autor descreve que durante a guerra esteve em Nápoles, Roma, Milão e Paris. Visitou ainda duas cidades que o encantaram bastante: Pompeia - segundo Furtado (p. 83), “um espetáculo indescritível” - e Florença - “aqui foi queimado Savonarola, [...] morou Dante, [...] está o túmulo de Maquiavel...”6 6 Esses lugares e os convívios ali experimentados certamente inspiraram o seu primeiro livro, De Nápoles a Paris: contos da vida expedicionária, de 1946. . São páginas muito reflexivas, nas quais ele questiona a razão da sua existência e busca encontrar para si um plano de vida. Furtado confessa seu desejo - e vocação pessoal - para escrever sobre “política, administração, ciências sociais” (p. 88).

O quarto capítulo, “Paris, 1947-1948”, cobre a ida de Furtado à França para cursar o doutorado em economia e a volta para o Brasil. Essas páginas também trazem um balanço do trabalho de recuperação da economia inglesa, bem como da vida em Londres. Do mesmo modo, traz um relato da vida política e cotidiana na capital da França no pós-guerra, descrevendo as dificuldades da reconstrução, que passavam pelo controle diário do consumo de alimentos pelo governo e pela relação salário-custo de vida dos cidadãos franceses - momento lido por ele como o “mais agudo de sua grande crise social” (p. 98).

Durante seus estudos em Paris, Furtado teve vários professores ilustres, como René Courtin (um dos fundadores do jornal Le Monde) e o notável economista François Perroux. Do mesmo modo, assistiu no Institut d’Études Politiques a cursos de grandes figuras do pensamento marxista7 7 Furtado (p. 97) relata ter comprado nesse período toda a bibliografia essencial marxista em francês, bem como as obras filosóficas e políticas completas de Marx (16 volumes), obras de Engels (17 volumes), parte das obras econômicas de Marx e ainda 30 volumes de obras de crítica ao marxismo. - Jean Baby e Auguste Cornu -, do célebre historiador da política Jean-Jacques Chevallier e de Charles Morazé, integrante importante da Escola dos Annales8 8 Segundo João Antonio de Paula (2019, p. 1076) o Institut d’Études Politiques contribuiu para que Furtado tivesse uma “sólida formação em economia política, história econômica, economia social comparada e estatística econômica.” . Ele chega a destacar que o trabalho de pesquisa na França era construído “dentro do método histórico e fundado numa imensa erudição” (p. 93). Furtado cursou o doutorado em economia sob orientação de Maurice Byé na Faculté de Droit et des Sciences Économiques da Universidade de Paris. Encontramos um relato orgulhoso da sua defesa de tese - “atravessei o boulevard Saint-Michel [...] montado numa nuvem” (p. 117) -, não apenas pelos elogios e honras concedidos pela banca, mas também pela discussão detida e atenciosa que a tese suscitou.

Mesmo distante e profundamente envolvido em seus estudos, Furtado não deixou de ter preocupação com o Brasil. Ele revela ter comprado um rádio Philips de quatro válvulas, no qual ouvia a Hora do Brasil para se inteirar do dia a dia do país. Há belos relatos de sua viagem à Tchecoslováquia e à Bósnia - Iugoslávia -, passando pela Alemanha e Hungria, tendo como destino o Festival Mundial da Juventude, que ocorreu em Praga, em agosto de 1947. Antes de retornar a Paris, essa viagem ainda teve uma estadia de alguns dias em Londres. Furtado visita então a London School of Economics.

O quinto capítulo, “América Latina, 1951-1958”, revela que, ao voltar ao Brasil, inicia-se um período intenso, de muito trabalho: no Dasp, na revista Conjuntura Econômica, na Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), no Grupo Misto Cepal-BNDE9 9 Esses trabalhos serviram de base para o Plano de Metas do governo JK. , empreitada que dá a Furtado a oportunidade de conhecer a realidade latino-americana. Encontramos relatos de suas viagens à Costa Rica, Bolívia, Panamá, Venezuela, México, Equador, Brasil, e também à França, Turquia e Inglaterra. Furtado também pontua sobre seu período na King’s College da Universidade de Cambridge entre 1957-1958 - onde escreveu Formação econômica do Brasil (1959) e lecionou seminários para estudantes já graduados em economia.

O sexto capítulo, “Brasil, 1958-1964”, traz talvez o que de mais importante e singular encontramos nos Diários: a vida e a atuação política de Celso Furtado antes do golpe civil-militar de 1964. Nessa seção temos o relato do incansável trabalho político de convencimento realizado por Furtado em prol da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). É apresentada por ele toda a articulação política para a criação e aprovação da entidade, bem como o jogo político articulado pelos governadores do Nordeste, pelos deputados e pela presidência da república, e ainda a sua repercussão na opinião pública10 10 Durante o duro processo de aprovação da Sudene, que, como sabemos, se deu em um período de radicalização política, circulou entre os deputados uma ficha policial que apresentava Furtado como agente da Internacional Comunista. Ele relata que as calúnias eram constantes, sendo chamado ora de comunista, ora de agente de Wall Street. Nesse momento Furtado se recusou a concorrer ao cargo de governador de seu estado natal, pois, segundo ele, isso poderia atrapalhar a sua empreitada de unir o Nordeste. . Como lócus importante de poder no Nordeste, a Igreja também mereceu nota em seus diários, sobretudo, no que diz respeito à profunda transformação que a Sudene buscava realizar. Furtado externou a preocupação da Igreja com a atuação do governo JK no Nordeste, sendo até mesmo sabatinado no primeiro Encontro dos Bispos do Nordeste em 1959 em Natal. Há inclusive uma instigante e dura nota sobre dom Helder Câmara na qual Furtado classificou a sua personalidade como sendo de um autêntico tartufo e demagogo11 11 É importante ressaltar que, embora houvesse o reconhecimento da importância da Sudene por parte de alguns bispos do Nordeste, dom Helder não se posicionou a favor da sua criação. Cabe, no entanto, uma consideração sobre a percepção e julgamento de Celso Furtado sobre dom Helder. Em sua autobiografia, especificamente em A fantasia desfeita, embora ainda seja perceptível uma reticência de Furtado em relação à figura de Dom Helder, há o reconhecimento em pelo menos duas passagens do seu apoio à empreitada da Sudene no Nordeste - ver Furtado (2014, p. 240; p. 250). Talvez o tempo e o distanciamento do seu trabalho no governo Kubitschek tenham contribuído para que Furtado tivesse um julgamento mais favorável de dom Helder Câmara em sua autobiografia. (p. 155).

Furtado revela que, além dos latifundiários e coronéis do Nordeste, dois outros setores faziam forte oposição a sua figura: primeiro, os cafeicultores, sobretudo, pela crítica de Furtado à falácia do confisco cambial que era defendido e disseminado por esse setor; e, segundo, pela indústria automobilística, que conhecia a defesa de Furtado de uma legislação que regulasse a remessa de lucros para fora do país.

Confirmando sua relevância e seu prestígio nesse período, encontramos passagens importantes nas quais Furtado descreve várias conversas no Palácio Laranjeiras12 12 Juscelino Kubitschek não quis residir no Palácio do Catete após o suicídio de Getúlio Vargas em 1954. O Palácio Laranjeiras foi então residência oficial da presidência, sendo ocupado por Juscelino Kubitschek até 1960, quando foi inaugurado o Palácio da Alvorada em Brasília. com o presidente Juscelino Kubitschek - muitas vezes reservadas e em tom confidente13 13 Essas conversas nos permitem recuperar as dificuldades e problemas enfrentados durante o governo JK. - e com figuras que faziam parte da cúpula do governo, nas quais foram discutidas com ele a reforma cambial, a balança de pagamentos, o preço do café e as negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI) sobre o plano de estabilização monetária14 14 Questão de grande polêmica no final da década de 1950 que gerou grandes embates públicos entres os denominados monetarista e estruturalistas. .

Furtado também escreve uma interessante análise político-partidária do Brasil até o início dos anos 196015 15 Ao longo dos Diários percebemos que Furtado era um arguto analista de contextos e conjunturas. - com a constatação de que o jogo político esteve sempre à direita. Do mesmo modo, há um diagnóstico dos limites das “forças nacionalistas” a partir da dissecação da figura de Roland Corbisier, das disputas internas no ISEB e da crítica à falta de uma orientação para a ação dos fundamentos metafísicos do nacionalismo de Guerreiro Ramos. É um momento em que a admiração intelectual nutrida por Roberto Campos vai ganhando um tom crítico cada vez mais forte, sobretudo, no seu conservadorismo16 16 Ver por exemplo o duro desabafo de Furtado sobre Campos com relação a uma questão da Revista Econômica Brasileira (p. 170-171). , na sua submissão aos interesses do FMI e na sua ortodoxia (neo)liberal17 17 Furtado associa Roberto Campos ao neoliberalismo - “Campos representa o neoliberalismo” (FURTADO, 2019, p. 165) -, chegando a afirmar que “[...] entre a posição dele e a do velho Gudin já não existe diferença perceptível.” carente de “[...] uma crítica em profundidade” (FURTADO, 2019, p. 163). Furtado faz uma forte crítica à ideia ortodoxa da crença no automatismo do mercado e também à corrente monetarista. Essas páginas expressam uma categórica furtadiana: o subdesenvolvimento não é apenas econômico, o problema do subdesenvolvimento é político muito mais que econômico - afirmação que comparece em seus diários como também defendida por Arthur Lewis. Daí ele escreve após uma palestra ministrada em Tel Aviv, que “[...] uma efetiva política de desenvolvimento pressupõe a conquista dos centros de decisão” (FURTADO, 2019, p. 200). Essa categórica fica clara quando Furtado descreve a estratégia do “approach indireto” que é aplicado pela Sudene em seu trabalho no Nordeste18 18 Sobre a estratégia do “approach indireto", ver p. 207-209. . Furtado deixa claro que o problema da região era político. Ele questiona de forma argumentativa: quem faz a política? Como é feita? Para quem a política era feita no Nordeste? E é justamente a partir do redirecionamento do lócus do poder que Celso Furtado conduz as transformações nas estruturas socioeconômicas do Nordeste - a própria industrialização da região visava constituir “uma fonte autônoma de poder fora da agricultura”19 19 Furtado revela ao final desse capítulo que a lógica de ação da Sudene era primeiro constituir um outro polo de poder com a industrialização no Nordeste, para em seguida abordar a fundo a questão agrária. As reformas de bases propostas posteriormente no Plano Trienal, dentre elas a reforma agrária, corroboram o seu argumento. . De maneira triste, mas certo do papel importante que cumpriu a Sudene sob o seu comando, o capítulo se encerra com uma passagem que informa sobre o decreto de intervenção militar da Sudene em 27 de abril de 1964. Inicia-se então o seu exílio20 20 O nome de Furtado comparece no AI-1, tendo cassado os seus direitos políticos e civis e sendo demitido do Dasp. Furtado só retornou ao Brasil quase vinte anos depois. .

O capítulo “Exílio, 1964-1983” reverbera em suas páginas o sentimento de fracasso. Sentimento que advém da derrota do projeto democrático pelo autoritarismo excludente, não apenas no Brasil, mas também no Chile. Esse texto traz um triste relato do autor sobre o golpe ocorrido no Chile, balanços críticos sobre o Dasp, sobre o marxismo no Brasil21 21 Furtado conclui que o marxismo não chegou a penetrar no Brasil como uma “escola de pensamento” (p. 256) e que aqui “o marxismo era muito mais uma arma de denúncia do que um instrumento para abordar a realidade e elevar o nível de reflexão sobre esta. Indubitavelmente ele elevava a consciência crítica e apontava para uma reflexão a partir de problemas substantivos. Mas a sua própria ortodoxia, a censura mais ou menos velada que destilava da ‘linha do partido’, castrava a imaginação criadora dos seus seguidores” (p. 257-258). e sobre a atuação da Sudene sob sua direção22 22 Furtado relembra a ação política desempenhada pelo trabalho da Sudene, que, apesar de operar dentro da ordem social estabelecida, produziu um papel relevante na transformação das estruturas de poder que dominavam o Nordeste. Segundo ele, essa luta política empreendida pela Sudene agia em detrimento do poder dos latifundiários abrindo espaço inclusive para o empoderamento das Ligas Camponesas, dos camponeses e trabalhadores urbanos. e também no regime militar. Já em 1976 Celso Furtado identifica uma série de contradições que levariam ao esgotamento do regime militar no Brasil, e a partir daí vai apontando as inúmeras dificuldades que a hegemonia autoritária e concentradora de renda traria ao país - entraves econômicos, sociais, culturais, mas, sobretudo, políticos23 23 Furtado, que entendia que a ação política sem a consciência do que se objetivava para o país como nação era extremamente deletéria no fim da ditadura civil-militar brasileira, chega a escrever: “Melancólico espetáculo que dão os economistas, perdidos em dimensões tecnicistas sobre a ‘coerência do pacote’, quando o que interessa são os fins, aonde vamos. [...] Por toda a parte domina um clima de corrupção e de inconsistência com respeito aos interesses das maiorias” (p. 264)). Furtado relata que o Brasil se distanciara por demais do que fora pensado para o país e das lutas de sua geração. . Esse capítulo nos permite mapear a sua jornada no exílio24 24 Com exceção dos três meses que residiu no Chile, logo que foi exilado, que não comparecem nos diários. : New Haven25 25 Furtado foi professor da Universidade Yale e Colúmbia nesse período. , Paris - onde residiu por largo tempo -, Cambridge, Caracas, Puerto La Cruz, Cidade do México, Buenos Aires, Recife, São Paulo, Rio de Janeiro, João Pessoa, Kyoto, Adis Abeba (Etiópia), Ulan Bator (Mongólia) e China.

O retorno à vida política brasileira26 26 O retorno à vida política rendeu inclusive uma sondagem para disputar o cargo de senador ou governador na Paraíba. Furtado havia recebido anistia política em 1979. - que aumentou o trânsito constante entre a França e o Brasil -, a partir de 1982, é marcado pela descrença em várias figuras que se dispunham a tomar as rédeas dos centros de decisão do país. Muitos políticos da Arena - partido de sustentação da ditadura -, vendo o esfacelamento do sistema de dominação autoritário, literalmente estavam trocando de lado27 27 Furtado estava convencido de que era necessária uma renovação dos quadros políticos. . Por isso Furtado tinha dúvidas se o sistema político teria “capacidade” para fazer as mudanças necessárias, pois para ele o “desenvolvimento político está intimamente ligado à própria essência de transformação da sociedade” (p. 276).

Algo que não poderia ficar de fora desta resenha, já que a sua faceta amorosa íntima não comparece em nenhuma outra passagem de sua obra autobiográfica, é o breve, mas apaixonado reconhecimento de Celso Furtado do forte impacto que Rosa28 28 Rosa Freire d’Aguiar é responsável pela reedição de várias obras de Furtado, publicação de textos inéditos, organização dos seis volumes dos Arquivos Celso Furtado, organização dos Diários intermitentes e das correspondências (ainda no prelo por causa pandemia da covid-19). Além disso, foi responsável pela curadoria e organização do arquivo privado e da biblioteca pessoal de Celso Furtado, sendo figura central para a consolidação do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. trouxe para a sua vida. Nas suas palavras, Rosa contribuiu para que ele redescobrisse “o maravilhoso das coisas simples. Que coisas belas se redescobrem e se reencontram, esquecidas ou perdidas que estavam. O tempo recupera espessura e solidez” (p. 265). Reencontrar o amor e estar apaixonado era algo que Furtado não esperava nesse momento da sua vida - foi uma bela surpresa. Esse capítulo termina com uma belíssima análise memorialista de Josué de Castro e sua obra mais importante, Geografia da fome.

O capítulo “Redemocratização, 1984-1985” é riquíssimo, sobretudo, por trazer os bastidores do processo político em torno da construção do consenso para a eleição indireta sob a égide de Tancredo Neves, bem como os trabalhos da Comissão para o Plano de Ação do Governo (Copag), que foi responsável por elaborar as ações para os primeiros 100 dias do governo Tancredo, e as disputas por cargos e posições-chave no governo federal e ainda as disputas eleitorais nos estados e nas capitais. Várias figuras que tiveram papel relevante nas discussões e rumos do país comparecem no convívio com Celso Furtado, dentre eles: os economistas João Manuel Cardoso de Mello, Luiz Gonzaga Belluzzo, Luciano Coutinho, Maria da Conceição Tavares, Dércio Munhoz, José Serra, Carlos Lessa, entre outros; os políticos Ulysses Guimarães, Fernando Henrique Cardoso, Renato Archer, José Gregori, Waldir Pires, Severo Gomes, Pedro Simon, Euclides Scalco, Franco Montoro, Jarbas Vasconcellos, Miguel Arraes, Roberto Gusmão, Fernando Gasparian, Edgar Amorim etc. Outras figuras relevantes, de forma indireta, também comparecem nas páginas desse denso texto, dentre elas: Lula, Delfim Netto, Leonel Brizola, Paulo Maluf, Olavo Setubal, Dilson Funaro, Dirceu Pessoa e outros mais.

Celso Furtado nos apresenta uma crítica e lúcida análise do caráter da Aliança Democrática. E revela também uma campanha de intrigas - articulada dentro e fora do PMDB (partido ao qual se filiara em agosto de 1981) -, que visava inviabilizar o nome de Celso Furtado para qualquer cargo-chave no governo Tancredo Neves29 29 Essas intrigas são frutos da sua ativa vida política no período, na elaboração de programas, campanhas eleitorais, conferências e debates. Sua postura firme sobre a questão da dívida externa, da inflação e em defesa da recuperação da soberania nacional no plano internacional era vista de forma negativa pelos interesses financeiros, locais e internacionais constituídos. . De forma modesta, Furtado escreve: “Meu único trunfo é o nome nacional que tenho, a confiança que inspiro a muita gente como alguém que reúne competência e honestidade e não está ligado a grandes interesses econômicos” (p. 293) - o que lhe dava credibilidade diante da opinião pública. Furtado via como absolutamente necessário superar o projeto de “modernização” autoritário e excludente, sobretudo, pois um dos resultados deletérios do regime militar - profundamente corrupto - foi produzir “o descrédito do Estado como instrumento de engenharia social” (p. 322). Ao confirmar a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral em 15 de janeiro de 1985, Celso Furtado relata: “Senti-me recompensado dos esforços e lutas de 20 anos” (p. 306). Era também uma vitória sua o processo de redemocratização do Brasil.

O capital político de Furtado foi utilizado pelo governo eleito. Celso foi nomeado por José Sarney - que havia assumido a presidência com a morte de Tancredo Neves - embaixador do Brasil junto à Comunidade Econômica Europeia. Novamente Furtado se instalaria na Europa, agora em Bruxelas. Como embaixador, há uma passagem que revela muito da sua posição intelectual. Furtado revela ter discordado em uma reunião do Centro de Desenvolvimento da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) da visão neoliberal Reagan-Thatcher, que havia se tornado hegemônica no centro do capitalismo. Segundo ele o grande entrave era a forte tendência dessa ortodoxia a relegar as dimensões social e nacional “em benefício de uma mítica ‘razão de mercado’” (p. 326). O texto é finalizado com o relato de um encontro entre Celso Furtado e Fernand Braudel.

O penúltimo capítulo, “Ministério da Cultura, Constituinte, 1986-1988”, nos permite perceber o incansável trabalho político-partidário e ministerial realizado por Furtado. Nesse período de grande articulação político-partidária - sobretudo, ao lado de Ulysses Guimarães -, Furtado revela as concessões que fez no intuito de garantir a reconstitucionalização e democratização do Brasil. Era necessário fazer o que fosse preciso, já que ele analisava que as forças antiprogressistas e de manutenção do statu quo continuavam atuando e tendo um forte peso na política nacional30 30 Nas palavras de Furtado (p. 334): “Agora tudo é mais claro porque essa cortina de fumaça ideológica se dissipou. Tudo é transparente: a tentativa de redistribuição de renda, o esforço de reforma agrária, o ensaio de independência vis-à-vis dos interesses financeiros internacionais, as veleidades de autonomia no campo da informática - a revolta é contra tudo isso. Trata-se de restabelecer o statu quo ante e acabar de vez com as veleidades reformadoras surgidas na fase da confrontação com o autoritarismo militar”. . Furtado relata também as disputas internas no PMDB, que culminaram no seu racha antes da votação do texto da Constituinte, surgindo dessa dissidência o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB)31 31 O texto traz inclusive uma conversa com Fernando Henrique Cardoso, que lhe confidencia a intenção dele e de alguns dissidentes de fundar um novo partido para fazer oposição ao PMDB - oposição que segundo Cardoso estava monopolizada por Brizola. Isso ocorreu em 1988. Cardoso, Franco Montoro e Mário Covas tornaram-se as lideranças do PSDB naquele momento. . O autor narra ainda os entraves partidários do governo Sarney e as dificuldades do processo da Constituinte. Acompanhada in loco por Celso Furtado, tem-se uma ampla visão dos bastidores do processo da Constituinte32 32 Furtado foi membro da Comissão de Estudos Constitucionais presidida pelo senador Afonso Arinos, contribuindo na elaboração do projeto da nova Constituição. . Argutamente, ele observa a força míope da mídia sobre os temas centrais, a discussão em torno da descentralização dos recursos, bem como o dissenso sobre as questões de tempo de mandato e sobre parlamentarismo ou presidencialismo. Esse período aponta inúmeras discussões, análises e conselhos sobre os desafios do Plano Cruzado, da dívida externa e da inflação. Celso Furtado era constantemente consultado pelo presidente Sarney e pelas várias figuras que ocuparam postos-chave na condução da política econômica no período. O texto ainda relata o incansável e frutífero trabalho de organização do Ministério da Cultura. Sua gestão cria a primeira legislação brasileira de incentivos fiscais à cultura, trabalhando em novas formas de descentralizar e democratizar a política cultural no país33 33 Como nos informa Rosa Freire d’Aguiar, logo no primeiro ano o Ministério da Cultura realizou 5 mil projetos culturais em todo o país e dobrou o orçamento dedicado à cultura. .

O último capítulo, “Balanços, sínteses, 1988-2002”, tem início com a autoconsciência da sua tarefa intelectual: produzir ideias que servissem à nova geração. Cobrindo o final de sua trajetória, além de balanços sobre a sua vida, esse capítulo traz várias sínteses de temas abordados por ele. Furtado escreve então sobre o papel da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) - que foi sendo paulatinamente erodida -, sobre os males da modernização periférica ao patrimônio cultural e ecológico, sobre a institucionalidade política e governabilidade do país, sobre a vulgarização da teoria da dependência - numa dura crítica à teoria da dependência. Do mesmo modo, em defesa do Estado nacional, Furtado realiza uma forte crítica ao processo de globalização - para ele, um desenvolvimento apoiado na transnacionalização do sistema de decisão poderia conduzir à atrofia das instituições políticas guardiãs dos direitos fundamentais do homem (p. 411). Furtado reitera em seus diários a defesa do desenvolvimento ancorado no mercado interno brasileiro em oposição a uma política de abertura indiscriminada - que segundo Furtado resultaria na marginalização crescente de parcelas da população através do aumento considerável do desemprego e do subemprego. Ele inclusive mapeia alguns aspectos que corroboraram para um declínio paulatino da hegemonia dos Estados Unidos desde os anos 1980.

No contexto do referendo de 1993, Celso Furtado defende para o caso brasileiro a república e o parlamentarismo como sistema de governo. No mesmo período, há uma passagem importante que reflete uma posição do autor ao longo de toda a sua vida: a defesa de uma verdadeira “política econômica pública”. Esse último texto traz uma forte crítica ao governo de Fernando Henrique Cardoso, com destaque para o feroz processo de liquidação do patrimônio nacional e de sua atuação frente à crise do câmbio em 199934 34 Furtado avalia que Cardoso aceitou qualquer risco de dano à economia do país para garantir a reeleição. . Essa crítica leva o autor a defender a necessidade da luta por uma reestruturação do sistema financeiro internacional. Por fim, uma reflexão sobre a centralidade da luta pela nossa soberania nacional para a garantia do autogoverno e de nossa autonomia encerra os Diários intermitentes.

Finalizamos esta resenha ressaltando que nossas questões fundamentais enquanto nação cruzam a trajetória de vida do relevante homem público e intelectual público que foi Celso Furtado. Daí a indiscutível importância dessa obra, sobretudo, por seus diários contarem a história da sua luta pela republicanização do Brasil, a luta pela construção de uma verdadeira república democrática.

Referências

  • FURTADO, Celso. De Nápoles a Paris: contos da vida expedicionária. Rio de Janeiro: Zelio Valverde, 1946.
  • FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1959.
  • FURTADO, Celso. Contos da vida expedicionária / A fantasia organizada. 1 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Record, 1997.
  • FURTADO, Celso. Ensaios sobre a Venezuela: subdesenvolvimento com abundância de divisas. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado de Política para o Desenvolvimento, 2008. (Arquivos Celso Furtado 1).
  • FURTADO, Celso. Economia do desenvolvimento: curso ministrado na PUC em 1975. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado de Política para o Desenvolvimento, 2009. (Arquivos Celso Furtado 2).
  • FURTADO, Celso. O Nordeste e a saga da Sudene (1958-1964). Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado de Política para o Desenvolvimento, 2009. (Arquivos Celso Furtado 3).
  • FURTADO, Celso. O Plano Trienal e o Ministério do Planejamento. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado de Política para o Desenvolvimento, 2011. (Arquivos Celso Furtado 4).
  • FURTADO, Celso. Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado de Política para o Desenvolvimento, 2012. (Arquivos Celso Furtado 5).
  • FURTADO, Celso. Anos de formação - 1938-1948: o jornalismo, o serviço público, a guerra, o doutorado. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado de Política para o Desenvolvimento, 2014. (Arquivos Celso Furtado 6).
  • FURTADO, Celso. Obra autobiográfica. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
  • LIMA, Nádia; SANTIAGO, Ana. O diário íntimo como produto da cultura moderna. Arq. bras. psicol., Rio de Janeiro, v. 62, n. 1, p. 22-34, abr. 2010. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672010000100004&lng=pt&nrm=iso Acesso em: 2 nov. 2020.
    » http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672010000100004&lng=pt&nrm=iso
  • PAULA, João Antonio de. Cultura e desenvolvimento: 100 anos de Celso Furtado, um intelectual cosmopolita. Nova Economia, Belo Horizonte, v. 29, n. E, 2019, p. 1075-1089.
  • 2
    Os três volumes de autobiografia são: A fantasia organizada (1985), A fantasia desfeita (1989) e Os ares do mundo (1991). Esses três volumes integram a edição definitiva republicada em 2014 com o título Obra autobiográfica (2014).
  • 3
    Faço referência às publicações: Arquivos Celso Furtado 1 - Ensaios sobre a Venezuela: subdesenvolvimento com abundância de divisas (2008); Arquivos Celso Furtado 2 - Economia do desenvolvimento: curso ministrado na PUC em 1975 (2009); Arquivos Celso Furtado 3 - O Nordeste e a saga da Sudene (2009); Arquivos Celso Furtado 4 - O Plano Trienal e o Ministério do Planejamento (2011); Arquivos Celso Furtado 5 - Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura (2012); Arquivos Celso Furtado 6 - Anos de formação - 1938-1948 (2014).
  • 4
    Essa campanha foi criada por Getúlio Vargas em 1932 e incentivava estudantes e professores a organizar cursos de alfabetização de adultos.
  • 5
    Esse texto, em função da organização editorial, exclui o período no qual Celso Furtado participa da Segunda Guerra Mundial em 1945.
  • 6
    Esses lugares e os convívios ali experimentados certamente inspiraram o seu primeiro livro, De Nápoles a Paris: contos da vida expedicionária, de 1946.
  • 7
    Furtado (p. 97) relata ter comprado nesse período toda a bibliografia essencial marxista em francês, bem como as obras filosóficas e políticas completas de Marx (16 volumes), obras de Engels (17 volumes), parte das obras econômicas de Marx e ainda 30 volumes de obras de crítica ao marxismo.
  • 8
    Segundo João Antonio de Paula (2019, p. 1076) o Institut d’Études Politiques contribuiu para que Furtado tivesse uma “sólida formação em economia política, história econômica, economia social comparada e estatística econômica.”
  • 9
    Esses trabalhos serviram de base para o Plano de Metas do governo JK.
  • 10
    Durante o duro processo de aprovação da Sudene, que, como sabemos, se deu em um período de radicalização política, circulou entre os deputados uma ficha policial que apresentava Furtado como agente da Internacional Comunista. Ele relata que as calúnias eram constantes, sendo chamado ora de comunista, ora de agente de Wall Street. Nesse momento Furtado se recusou a concorrer ao cargo de governador de seu estado natal, pois, segundo ele, isso poderia atrapalhar a sua empreitada de unir o Nordeste.
  • 11
    É importante ressaltar que, embora houvesse o reconhecimento da importância da Sudene por parte de alguns bispos do Nordeste, dom Helder não se posicionou a favor da sua criação. Cabe, no entanto, uma consideração sobre a percepção e julgamento de Celso Furtado sobre dom Helder. Em sua autobiografia, especificamente em A fantasia desfeita, embora ainda seja perceptível uma reticência de Furtado em relação à figura de Dom Helder, há o reconhecimento em pelo menos duas passagens do seu apoio à empreitada da Sudene no Nordeste - ver Furtado (2014, p. 240; p. 250). Talvez o tempo e o distanciamento do seu trabalho no governo Kubitschek tenham contribuído para que Furtado tivesse um julgamento mais favorável de dom Helder Câmara em sua autobiografia.
  • 12
    Juscelino Kubitschek não quis residir no Palácio do Catete após o suicídio de Getúlio Vargas em 1954. O Palácio Laranjeiras foi então residência oficial da presidência, sendo ocupado por Juscelino Kubitschek até 1960, quando foi inaugurado o Palácio da Alvorada em Brasília.
  • 13
    Essas conversas nos permitem recuperar as dificuldades e problemas enfrentados durante o governo JK.
  • 14
    Questão de grande polêmica no final da década de 1950 que gerou grandes embates públicos entres os denominados monetarista e estruturalistas.
  • 15
    Ao longo dos Diários percebemos que Furtado era um arguto analista de contextos e conjunturas.
  • 16
    Ver por exemplo o duro desabafo de Furtado sobre Campos com relação a uma questão da Revista Econômica Brasileira (p. 170-171).
  • 17
    Furtado associa Roberto Campos ao neoliberalismo - “Campos representa o neoliberalismo” (FURTADO, 2019, p. 165) -, chegando a afirmar que “[...] entre a posição dele e a do velho Gudin já não existe diferença perceptível.”
  • 18
    Sobre a estratégia do “approach indireto", ver p. 207-209.
  • 19
    Furtado revela ao final desse capítulo que a lógica de ação da Sudene era primeiro constituir um outro polo de poder com a industrialização no Nordeste, para em seguida abordar a fundo a questão agrária. As reformas de bases propostas posteriormente no Plano Trienal, dentre elas a reforma agrária, corroboram o seu argumento.
  • 20
    O nome de Furtado comparece no AI-1, tendo cassado os seus direitos políticos e civis e sendo demitido do Dasp. Furtado só retornou ao Brasil quase vinte anos depois.
  • 21
    Furtado conclui que o marxismo não chegou a penetrar no Brasil como uma “escola de pensamento” (p. 256) e que aqui “o marxismo era muito mais uma arma de denúncia do que um instrumento para abordar a realidade e elevar o nível de reflexão sobre esta. Indubitavelmente ele elevava a consciência crítica e apontava para uma reflexão a partir de problemas substantivos. Mas a sua própria ortodoxia, a censura mais ou menos velada que destilava da ‘linha do partido’, castrava a imaginação criadora dos seus seguidores” (p. 257-258).
  • 22
    Furtado relembra a ação política desempenhada pelo trabalho da Sudene, que, apesar de operar dentro da ordem social estabelecida, produziu um papel relevante na transformação das estruturas de poder que dominavam o Nordeste. Segundo ele, essa luta política empreendida pela Sudene agia em detrimento do poder dos latifundiários abrindo espaço inclusive para o empoderamento das Ligas Camponesas, dos camponeses e trabalhadores urbanos.
  • 23
    Furtado, que entendia que a ação política sem a consciência do que se objetivava para o país como nação era extremamente deletéria no fim da ditadura civil-militar brasileira, chega a escrever: “Melancólico espetáculo que dão os economistas, perdidos em dimensões tecnicistas sobre a ‘coerência do pacote’, quando o que interessa são os fins, aonde vamos. [...] Por toda a parte domina um clima de corrupção e de inconsistência com respeito aos interesses das maiorias” (p. 264)). Furtado relata que o Brasil se distanciara por demais do que fora pensado para o país e das lutas de sua geração.
  • 24
    Com exceção dos três meses que residiu no Chile, logo que foi exilado, que não comparecem nos diários.
  • 25
    Furtado foi professor da Universidade Yale e Colúmbia nesse período.
  • 26
    O retorno à vida política rendeu inclusive uma sondagem para disputar o cargo de senador ou governador na Paraíba. Furtado havia recebido anistia política em 1979.
  • 27
    Furtado estava convencido de que era necessária uma renovação dos quadros políticos.
  • 28
    Rosa Freire d’Aguiar é responsável pela reedição de várias obras de Furtado, publicação de textos inéditos, organização dos seis volumes dos Arquivos Celso Furtado, organização dos Diários intermitentes e das correspondências (ainda no prelo por causa pandemia da covid-19). Além disso, foi responsável pela curadoria e organização do arquivo privado e da biblioteca pessoal de Celso Furtado, sendo figura central para a consolidação do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.
  • 29
    Essas intrigas são frutos da sua ativa vida política no período, na elaboração de programas, campanhas eleitorais, conferências e debates. Sua postura firme sobre a questão da dívida externa, da inflação e em defesa da recuperação da soberania nacional no plano internacional era vista de forma negativa pelos interesses financeiros, locais e internacionais constituídos.
  • 30
    Nas palavras de Furtado (p. 334): “Agora tudo é mais claro porque essa cortina de fumaça ideológica se dissipou. Tudo é transparente: a tentativa de redistribuição de renda, o esforço de reforma agrária, o ensaio de independência vis-à-vis dos interesses financeiros internacionais, as veleidades de autonomia no campo da informática - a revolta é contra tudo isso. Trata-se de restabelecer o statu quo ante e acabar de vez com as veleidades reformadoras surgidas na fase da confrontação com o autoritarismo militar”.
  • 31
    O texto traz inclusive uma conversa com Fernando Henrique Cardoso, que lhe confidencia a intenção dele e de alguns dissidentes de fundar um novo partido para fazer oposição ao PMDB - oposição que segundo Cardoso estava monopolizada por Brizola. Isso ocorreu em 1988. Cardoso, Franco Montoro e Mário Covas tornaram-se as lideranças do PSDB naquele momento.
  • 32
    Furtado foi membro da Comissão de Estudos Constitucionais presidida pelo senador Afonso Arinos, contribuindo na elaboração do projeto da nova Constituição.
  • 33
    Como nos informa Rosa Freire d’Aguiar, logo no primeiro ano o Ministério da Cultura realizou 5 mil projetos culturais em todo o país e dobrou o orçamento dedicado à cultura.
  • 34
    Furtado avalia que Cardoso aceitou qualquer risco de dano à economia do país para garantir a reeleição.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    01 Dez 2020
  • Aceito
    08 Fev 2021
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