Acessibilidade / Reportar erro

Tuberculose do sistema nervoso central em crianças: 1. Apresentação clínica e laboratorial

Central nervous system tuberculosis in children: 1. Clinical and laboratorial presentation

Resumos

A tuberculose ainda é um problema grave de saúde pública, principalmente em países emergentes, como o Brasil. O acometimento do sistema nervoso central (SNC) pelo Mycobacterium tuberculosis é uma das formas da doença mais temidas na infância, devido à morbi-mortalidade alta que costuma causar. Este estudo teve como objetivo descrever aspectos epidemiológicos, clínicos e laboratoriais de 52 crianças com tuberculose do SNC em um hospital pediátrico terciário. A maioria dos pacientes apresentou idade baixa, estado nutricional precário, contato prévio com doentes, vacinação ausente ou tardia, comprometimento neurológico avançado, alterações quimiocitológicas de líquor compatíveis, assim como os achados de exames de imagem. A recuperação do agente no líquor e outros líquidos corpóreos por pesquisa direta ou cultura ocorreu em 40% dos pacientes. Apesar do perfil clínico-epidemiológico-laboratorial sugestivo e da viabilidade de acesso do paciente a serviço médico, na maioria dos casos o diagnostico foi tardio.

tuberculose; meningoencefalite; sistema nervoso central; crianças; revisão


Tuberculosis still occupies a remarkable place as a worldwide health problem, chiefly in emerging countries, like Brazil. The central nervous system (CNS) involvement by Mycobacterium tuberculosis is one of the most feared features of disease, because of its high morbidity and mortality. This study aimed to describe some epidemiological, clinical and laboratorial aspects of 52 children in a tertiary pediatric hospital with CNS tuberculosis. At diagnosis, the majority of patients showed low age, compromised nutritional status, previous contact with bacillary individuals, delayed or absent immunization, advanced neurological signs and compatible abnormalities in cerebrospinal fluid (CSF) analysis and in radiological findings. The etiologic agent was identified by staining methods or CSF and other fluids culturing in 40% of patients. In most cases, despite of suggestive clinical, epidemiological and laboratorial picture and feasibility of patients access to health care centres, therapy was started lately.

tuberculosis; central nervous system; children


TUBERCULOSE DO SISTEMA NERVOSO CENTRAL EM CRIANÇAS

1. Apresentação clínica e laboratorial

Fernando A. R. de Gusmão Filho11Mestre em Pediatria pela FMUSP, Médico Observador da Unidade de Infectologia; Instituto da Criança (IR), Hospital das Clínicas (HC) , Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP): Mestre em Pediatria pela FMUSP, Médico Observador da Unidade de Infectologia; 2Pós-graduanda (Doutorado) pela FMUSP, Médica-chefe da Unidade de Infectologia; 3Livre Docente em Neurologia pela FMUSP, Médica-chefe da Unidade de Neurologia. 4Doutora em Pediatria pela FMUSP, Médica do Grupo de Epidemiologia Hospitalar. , Heloísa H. de S. Marques21Mestre em Pediatria pela FMUSP, Médico Observador da Unidade de Infectologia; Instituto da Criança (IR), Hospital das Clínicas (HC) , Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP): Mestre em Pediatria pela FMUSP, Médico Observador da Unidade de Infectologia; 2Pós-graduanda (Doutorado) pela FMUSP, Médica-chefe da Unidade de Infectologia; 3Livre Docente em Neurologia pela FMUSP, Médica-chefe da Unidade de Neurologia. 4Doutora em Pediatria pela FMUSP, Médica do Grupo de Epidemiologia Hospitalar. , Maria Joaquina Marques-Dias31Mestre em Pediatria pela FMUSP, Médico Observador da Unidade de Infectologia; Instituto da Criança (IR), Hospital das Clínicas (HC) , Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP): Mestre em Pediatria pela FMUSP, Médico Observador da Unidade de Infectologia; 2Pós-graduanda (Doutorado) pela FMUSP, Médica-chefe da Unidade de Infectologia; 3Livre Docente em Neurologia pela FMUSP, Médica-chefe da Unidade de Neurologia. 4Doutora em Pediatria pela FMUSP, Médica do Grupo de Epidemiologia Hospitalar. , Sônia R. T. da S. Ramos41Mestre em Pediatria pela FMUSP, Médico Observador da Unidade de Infectologia; Instituto da Criança (IR), Hospital das Clínicas (HC) , Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP): Mestre em Pediatria pela FMUSP, Médico Observador da Unidade de Infectologia; 2Pós-graduanda (Doutorado) pela FMUSP, Médica-chefe da Unidade de Infectologia; 3Livre Docente em Neurologia pela FMUSP, Médica-chefe da Unidade de Neurologia. 4Doutora em Pediatria pela FMUSP, Médica do Grupo de Epidemiologia Hospitalar.

RESUMO - A tuberculose ainda é um problema grave de saúde pública, principalmente em países emergentes, como o Brasil. O acometimento do sistema nervoso central (SNC) pelo Mycobacterium tuberculosis é uma das formas da doença mais temidas na infância, devido à morbi-mortalidade alta que costuma causar. Este estudo teve como objetivo descrever aspectos epidemiológicos, clínicos e laboratoriais de 52 crianças com tuberculose do SNC em um hospital pediátrico terciário. A maioria dos pacientes apresentou idade baixa, estado nutricional precário, contato prévio com doentes, vacinação ausente ou tardia, comprometimento neurológico avançado, alterações quimiocitológicas de líquor compatíveis, assim como os achados de exames de imagem. A recuperação do agente no líquor e outros líquidos corpóreos por pesquisa direta ou cultura ocorreu em 40% dos pacientes. Apesar do perfil clínico-epidemiológico-laboratorial sugestivo e da viabilidade de acesso do paciente a serviço médico, na maioria dos casos o diagnostico foi tardio.

PALAVRAS-CHAVE: tuberculose, meningoencefalite, sistema nervoso central, crianças, revisão.

Central nervous system tuberculosis in children: 1. Clinical and laboratorial presentation

ABSTRACT - Tuberculosis still occupies a remarkable place as a worldwide health problem, chiefly in emerging countries, like Brazil. The central nervous system (CNS) involvement by Mycobacterium tuberculosis is one of the most feared features of disease, because of its high morbidity and mortality. This study aimed to describe some epidemiological, clinical and laboratorial aspects of 52 children in a tertiary pediatric hospital with CNS tuberculosis. At diagnosis, the majority of patients showed low age, compromised nutritional status, previous contact with bacillary individuals, delayed or absent immunization, advanced neurological signs and compatible abnormalities in cerebrospinal fluid (CSF) analysis and in radiological findings. The etiologic agent was identified by staining methods or CSF and other fluids culturing in 40% of patients. In most cases, despite of suggestive clinical, epidemiological and laboratorial picture and feasibility of patients access to health care centres, therapy was started lately.

KEY WORDS: tuberculosis, central nervous system, children.

A tuberculose ainda se apresenta como problema grave de saúde pública, principalmente em países em desenvolvimento. No Brasil, a sua incidência vem se mantendo na última década entre 50 e 60 casos para cada 100 000 habitantes, o que é considerado alto de acordo com a Organização Mundial de Saúde1. Cerca de 15% dos casos notificados anualmente são de crianças2.

A tuberculose do sistema nervoso central (SNC) é uma das mais temidas formas na infância, devido à morbi-mortalidade alta que costuma causar. Em São Paulo, é a principal forma extra-pulmonar em crianças com 15 anos ou menos de idade3. As sequelas neurológicas são comuns e é reconhecido que o prognóstico depende do diagnóstico oportuno, ou seja, quanto maior a demora para o início do tratamento, maior a probabilidade de dano neurológico irreversível4. A baixa sensibilidade, associada à demora dos métodos microbiológicos usuais (pesquisa de bacilo álcool-ácido resistente e cultura de micobactérias) são empecilhos ao diagnóstico da doença na infância. Apesar dos avanços recentes, o emprego prático de técnicas de biologia molecular (polymerase chain reaction - PCR) para este fim ainda está para ser estabelecido.

O objetivo deste estudo é analisar a casuística de tuberculose do SNC do Instituto da Criança (ICr) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC, FMUSP), pela descrição de aspectos epidemiológicos, clínicos e laboratoriais.

MÉTODO

Foi feito estudo retrospectivo a partir da análise de prontuários de crianças internadas com diagnóstico de tuberculose do SNC no ICr, no período entre 1981 e 1997. O ICr é um hospital pediátrico de nível terciário, que atende predominantemente a população da Grande São Paulo.

A inclusão como caso de tuberculose de SNC exigiu a presença de meningite linfomonocitária e/ou imagem em tomografia computadorizada de crânio (TCC) compatível com tuberculoma, associados a um ou mais dos seguintes critérios: 1. Cultura positiva para Mycobacterium tuberculosis em líquor ou outro líquido corpóreo; 2. Pesquisa de bacilo álcool-ácido resistente (BAAR) positiva no líquor, aspirado gástrico, escarro ou outro líquido corpóreo estéril; 3. Teste tuberculínico positivo, naqueles não vacinados com BCG; 4. Antecedente de contato íntimo com portador de tuberculose; 5.Resposta à terapia específica antituberculosa.

O estadiamento clínico da tuberculose do SNC foi realizado de acordo com o classicamente proposto por Lincoln et al.5: 1. Estadio I: presença de sinais inespecíficos (febre, apatia, irritabilidade, vômitos) sem alterações neurológicas; 2. Estadio II: presença de alterações neurológicas (convulsão, distúrbios motores) sem comprometimento do nível de consciência; 3. Estadio III: presença de alteração do nível de consciência.

As amostras de líquor foram obtidas por punção lombar e analisadas no Laboratório Central do HC. A classificação quimiocitológica do líquor foi feita de acordo com Spina-França6.

Os testes de Mantoux foram realizados conforme o estabelecido pelo Ministério da Saúde7.

Além do líquor, foram usados para análise microbiológica amostras de sangue, medula óssea, urina, secreção ganglionar, escarro, lavado traqueal e lavado gástrico matinal. Os métodos microbiológicos para tratamento do material biológico e identificação de micobactéria foram realizados no Laboratório Central do HC de acordo com as técnicas e cuidados recomendados pelo Ministério da Saúde 8.

RESULTADOS

Cinquenta e dois pacientes preencheram os critérios de inclusão. Todos, exceto um, tiveram líquor inicial alterado. Neste, o critério de inclusão foi a alteração tomográfica craniana compatível com tuberculoma, associada a resposta favorável à terapêutica.

A idade dos pacientes variou entre dois meses e 17 anos e três meses, mediana de 12 meses, com média de 31,4 meses (desvio padrão de 43,4 meses). Quase metade (25 ou 48,1%) tinha menos que um ano de idade e cerca de dois terços (34 ou 65,4%), menos que dois. Vinte e nove pacientes (55,8%) eram femininos. A maioria era proveniente do Estado de São Paulo (43 ou 82,7%), sendo que 34 (65,4%) dos municípios da Grande São Paulo. Apenas 10 pacientes (19,2%) eram eutróficos, enquanto que 21 (40,4%) apresentavam desnutrição proteico-calórica de II ou III grau conforme Gómez et al.9. A duração da internação dos pacientes que sobreviveram variou entre 13 e 343 dias, com mediana de 34,5 dias.

Foram listadas as 13 queixas mais frequentes, registradas na história e no interrogatório sintomatológico. Febre, vômitos e convulsões foram as mais comuns; as mais prolongadas foram perda de peso, tosse, anorexia e febre (Tabela 1).

Havia alguma evidência de contato prévio com portador de tuberculose em 37 casos (71,2%). Em 26 destes (50,0%), a fonte de contágio foi identificada pela anamnese ou por investigação subsequente e nos outros 11 restantes (21,2%), existiam fortes suspeitas (contato não íntimo, passado de tratamento para tuberculose ou ainda tossidor crônico sem investigação).

Vinte e nove pacientes (55,7%) haviam sido vacinados com BCG, fato comprovado ou por registro da data de vacinação em cartão (15 ou 28,8%) ou pela presença da cicatriz vacinal (14 ou 26,9%). A média de idade à vacinação de 14 casos com registro de data foi de 133,0 dias (desvio padrão de 138,4 dias), mediana de 86 dias (limite inferior de 2 e superior de 486 dias). Apenas 4 (7,8%) foram corretamente vacinados, no primeiro mês de vida, conforme preconiza o Ministério da Saúde7. Dois (3,8%) foram vacinados com mais de um ano de vida.

Dos 52 pacientes, 37 (71,1%) haviam passado por serviço médico antes de procurarem o ICr, após o início do quadro clínico, sem que o diagnóstico tivesse sido suspeitado.

O exame neurológico inicial estava normal em apenas dois casos (3,8%). As alterações neurológicas mais comuns no exame inicial foram: diminuição do nível de consciência, sinais piramidais, sinais de irritação meníngea e comprometimento de nervos cranianos. Constatou-se edema de papila no exame do fundo do olho de dois casos (3,8%) (Fig 1).


No momento do diagnóstico a maioria dos pacientes (28 ou 53,8%) se achava no estadio III de evolução; 22 no estadio II (42,3%) e apenas 2 no estadio I (3,8%).

A Tabela 2 mostra os valores do líquor inicial para celularidade, proteína e glicose. À admissão, apenas um paciente (1,9%) apresentava exame quimiocitológico do líquor normal. A celularidade média dos exames alterados foi 194,8 células/mm3 (desvio padrão 236,0), com mediana de 100 (mínimo de 5 e máximo de 1040). A proteinorraquia média foi 207,8 mg/dL (desvio padrão de 285,0), com mediana de 137 mg/dL (mínimo de 32 e máximo de 1820).

Dentre os 52 prontuários, em 5 (9,6%) não foi possível a análise de dados relacionados à identificação do agente por insuficiência de informação. Dos 47 casos restantes, houve recuperação média de 2,8 pesquisas de BAAR (PB) no líquor para cada paciente testado, e de 2,4 culturas de micobactérias (CM) de líquor por paciente. Do mesmo modo, em lavado gástrico, houve em média 3,6 PB e 2,7 CM por paciente e em outros líquidos, 2,5 PB e 3,0 CM por paciente.

Dentre os 47 pacientes, em 3 (6,4%) houve identificação de BAAR no líquor e crescimento de M. tuberculosis em outros 8 (17,0%). No total, em 11 pacientes (23,4%) foi possível a identificação do agente no SNC. A positividade da CM em lavado gástrico foi 17,0% (8 casos). Em outros líquidos corpóreos, 5 pacientes (10,6%) apresentaram PB ou CM positivos (Tabela 3, Fig 2).


No total, em 19 (40,4%) pacientes houve identificação do agente em líquidos corpóreos, sendo em 16 destes (34,0%), cultura positiva para M. tuberculosis.

Todos os pacientes realizaram radiografia de tórax (52 ou 100%). Houve evidência de algum tipo de alteração em 29 (55,8%): em ordem decrescente de frequência: padrão miliar, condensação parenquimatosa, adenopatia hilar e derrame pleural. Em alguns casos ocorreu mais de uma alteração por exame (Tabela 4).

No momento do diagnóstico, 41 pacientes (78,8%) realizaram TCC, com evidência de alterações em 33 (63,5%). A dilatação ventricular foi a mais frequente, seguida das lesões hipoatenuantes e do realce das meninges da base do crânio (Tabela 4).

Realizaram teste de Mantoux 38 pacientes (73%), entre os quais 19 não reatores (36,5%), 6 reatores fracos (11,5%) e 13 reatores fortes (25,0%).

A adenosina deaminase (ADA) do líquor foi dosada em 9 pacientes (17,3%) e em 6 havia aumento dos níveis.

DISCUSSÃO

O diagnóstico de tuberculose do SNC nas crianças desta série foi baseado, não só na identificação do agente por métodos microbiológicos, mas também em dados clínicos, laboratoriais e epidemiológicos, de modo semelhante a outras casuísticas que envolvem crianças10-16.

A maioria dos autores concorda em afirmar que a faixa etária alvo da tuberculose do SNC em crianças é a que vai até os 5 anos de idade, como foi constatado neste estudo11,12,14-16.

A ocorrência de pacientes com desnutrição protéico-calórica nesta série chama a atenção. Essa condição é reconhecidamente predisponente ao desenvolvimento de formas graves de tuberculose, assim como doenças imunossupressoras como o sarampo e a AIDS 4.

Mais da metade dos pacientes apresentava como queixas mais frequentes febre, vômitos e convulsões. A febre, ao lado de outros sintomas inespecíficos, foram os mais duradouros. Os valores de mediana de duração dos sintomas definem bem o caráter sub-agudo que a doença costuma apresentar. Considerando-se os valores limites da duração de cada sintoma, pode-se concluir que nesta série houve casos tanto de evolução aguda (1 dia) quanto de evolução bastante prolongada (241 dias). Grande parte dos autores concorda em afirmar que o diagnóstico da tuberculose do SNC em crianças costuma ser firmado durante a segunda e terceira semanas de doença12,14-16.

É plenamente estabelecido que a identificação do foco transmissor da doença, geralmente um adulto no mesmo domicílio, é de grande valia no diagnóstico da tuberculose na infância 17. Em casuísticas realizadas em países em desenvolvimento, como esta, a frequência de identificação do adulto transmissor dificilmente ultrapassa a metade dos casos envolvidos, devido principalmente a dificuldades relacionadas à busca e identificação do caso. Dois estudos epidemiológicos envolvendo crianças com tuberculose na cidade de São Paulo também citam ocorrência semelhante de identificação do foco, em torno de 50% dos casos18,19.

Quanto ao uso da BCG, a maioria dos casos desta série havia sido vacinada previamente. Não foi possível, a partir de nossos dados, avaliar a eficácia da vacina BCG, uma vez que não houve grupo controle. Porém, considerando-se a mediana de idade de vacinação daqueles com registro da data no cartão (86,0 dias) e a baixa faixa etária dos pacientes, podemos inferir que possivelmente muitos deles já haviam se infectado antes de vacinados. Apesar de toda a controvérsia que cerca a vacina BCG, os poucos estudos epidemiológicos realizados no país atestam a sua eficácia20,21. Tendo em vista a boa cobertura vacinal praticada no Estado de São Paulo, a partir de 1988 o Ministério da Saúde passou a recomendar a vacinação com BCG durante o primeiro mês de vida22.

Os distúrbios neurológicos mais frequentes na série atual foram a diminuição do nível de consciência juntamente com as síndromes piramidais. Enfatize-se a ocorrência frequente de acometimento de nervos cranianos, achado pouco comum em meningites de outras etiologias, além da reduzida ocorrência de sinais meníngeos. A síndrome meníngea foi apenas a terceira alteração neurológica, com 51,9% dos casos. Entre as casuísticas consultadas, esse índice variou entre 53,014 e 65,015.

Mais da metade dos pacientes (28 ou 53,8%) apresentava-se no estadio mais avançado da doença. As distribuições quanto ao estadio evolutivo das diversas casuísticas variaram consideravelmente e devem ser interpretadas levando-se em conta o tipo das instituições onde foram atendidos os pacientes. O ICr é um hospital de nível terciário e cerca de 70% das crianças desta série já haviam passado por serviço médico anteriormente, inclusive pelo próprio hospital, antes de ser firmado o diagnóstico. Conclui-se que, na maioria dos casos, o tratamento foi iniciado tardiamente, quando a doença já se apresentava com quadro clínico-laboratorial mais exuberante e evidente.

A apresentação mais frequente do exame do líquor inicial desta série, pleocitose moderada com predomínio linfomonocitário, hiperproteinorraquia e hipoglicorraquia, é a considerada típica da meningoencefalite tuberculosa. Porém, essa apresentação pode variar consideravelmente, levando a confusão com meningites de outras etiologias, principalmente as virais23. Não raro, casos de tuberculoma sem comprometimento meníngeo se apresentam com líquor normal, como aquele desta série24.

Como doença infecciosa, a identificação do agente etiológico no sítio de infecção, no caso, o líquor, torna-se o método ideal de diagnóstico da tuberculose do SNC. Nesta série, o índice de recuperação do agente etiológico foi baixo (23,4%), porém em conformidade com o descrito em literatura11,14-16. O exame microbiológico do lavado gástrico mostrou melhores resultados quando comparado ao líquor (25,6%), enquanto que nos demais líquidos corpóreos testados os resultados foram semelhantes.

Os exames de imagem se mostraram úteis. Mais da metade dos casos (29 ou 55,8%) apresentava concomitância com a forma pulmonar, comprovada radiologicamente. Zarabi, et al.25 e Azambuja 26 chamam a atenção para a importância desse exame no auxílio ao diagnóstico. Praticamente dois terços dos pacientes apresentaram pelo menos uma das alterações na TCC conhecidas como a tríade da meningite tuberculosa: dilatação ventricular, lesões parenquimatosas isquêmicas e espessamento de meninges de base27. A ocorrência desta última alteração foi baixa quando comparada a outras casuísticas14,16.

Em metade dos nossos casos nos quais foi realizado o teste de Mantoux não houve reação, inclusive em 7 (13,5%) crianças de até dois anos de idade que haviam sido vacinadas com BCG. Outros autores também encontraram ocorrência elevada de falso-negatividade10,12,15,16. Em 8 casos (15,4%) foi de grande valor diagnóstico, já que foi positivo em pacientes não vacinados. Em dois desses (3,8%) foi o único critério de inclusão presente, além de meningite linfomonocitária.

A dosagem de ADA no líquor foi pouco utilizada nessa série, por não fazer parte dos exames de rotina realizados no HC durante o período de tempo avaliado no estudo.

Como principais conclusões, destacamos que a maioria dos casos de tuberculose do SNC internados no Instituto da Criança (HC-FMUSP) entre 1981 e 1997 era de crianças menores de dois anos de idade e desnutridas. A quase totalidade dos casos apresentava alterações no exame neurológico inicial, sendo a mais comum a diminuição do nível de consciência, o que indica comprometimento neurológico avançado. A metade dos pacientes esteve em contato prévio com bacilífero. A maioria dos pacientes havia sido previamente vacinada com BCG, possivelmente muitos desses já previamente infectados. A análise microbiológica do lavado gástrico forneceu melhores resultados que a do líquor. No total, em 40,0% dos casos o diagnóstico foi confirmado pela recuperação do agente etiológico nos vários líquidos corpóreos testados. Os exames de imagem foram úteis e o teste de Mantoux foi negativo em metade dos pacientes.

Percebe-se por essa análise que os pacientes desta série apresentavam quadro clínico-laboratorial clássico, compatível com tuberculose do SNC. Infelizmente, apesar do perfil epidemiológico sugestivo (idade baixa, estado nutricional precário, contato prévio com doentes e vacinação tardia) e da possibilidade de acesso a serviço médico demonstrado pela maior parte, a maioria dos casos foi diagnosticada tardiamente.

2. Fundação Nacional de Saúde. Home page - Internet - 17.05.1998.

Recebido 3 Abril 2000, recebido na forma final 31 Agosto 2000. Aceito 4 Setembro 2000

Dr. Fernando A. R. de Gusmão filho - Rua José de Holanda 561/303 - Torre - 50710-140 Recife PE - Brasil.

  • 1. World Health Organization. Global tuberculosis control: WHO Report 1999. Geneva, WHO, 1999.
  • 3. Dias MHP. Aspectos epidemiológicos da tuberculose em menores de 15 anos no Município de Săo Paulo, Brasil, 1984. Rev Saúde Públ (Săo Paulo) 1991;25:426-434.
  • 4. Newton RW. Tuberculous meningitis. Arch Dis Child 1994;70:364-366.
  • 5. Lincoln EM, Sordillo SVR, Davies PA. Tuberculous meningitis in children. J Pediatr 1960;57:807-823.
  • 6. Spina-França A. Líquido cefalorraqueano. In Tolosa APM, Canelas HM. Propedęutica neurológica. Săo Paulo: Fundo Editorial Procienx, 1969:405-426.
  • 7. Ministério da Saúde. Centro Nacional de Epidemiologia. Coordenaçăo de Pneumologia Sanitária. Manual de normas para o controle da tuberculose. 4Ed. Brasília: Fundaçăo de Saúde, 1995.
  • 8. Ministério da Saúde. Fundaçăo Nacional de Saúde. Centro de Referęncia Professor Hélio Fraga. Manual de bacteriologia da tuberculose. 2Ed. Rio de Janeiro, 1994.
  • 9. Gómez F, Ramos Galvan R, Frenk S, Graviato Muńoz J, Chavez R, Vasquez J. Mortality in second and third degree malnutrition. J Trop Pediatr 1956;2:77-83.
  • 10. Steiner P, Portugaleza C. Tuberculous meningitis in children. Am Rev Respir Dis 1973;107:22-29.
  • 11. Sumaya CV, Simek M, Smith MHD, Seidemann MF, Ferriss GS, Ruin W. Tuberculous meningitis in children during the isoniazid era. J Pediatr 1975;87:43-49.
  • 12. Delage G, Dusseault M. Tuberculous meningitis in children: a retrospective study of 79 patients, with an analysis of prognostic factors. Can Med Assoc J 1979;120:305-309.
  • 13. Visudhiphan P, Chiemchanya S. Tuberculous meningitis in children: treatment with isoniazid and rifampicin for twelve months. J Pediatr 1989;114:875-879.
  • 14. Weacker NJ Jr., Connor JD. Central nervous system tuberculosis in children: a review of 30 cases. Pediatr Infect Dis J 1990;9:539-543.
  • 15. Altunbasak S, Alhan E, Baytok V, Aksaray N, Yuksel B, Önenli N. Tuberculous meningitis in children. Acta Paediatr Jap 1994;36:480-484.
  • 16. Yaramis A, Gurkan F, Elevli M, et al. Central nervous system tuberculosis in children: a review of 214 cases. Pediatrics 1998;102:1-5.
  • 17. Sant'Anna CC. Tuberculose na criança. J Pediatr (Rio) 1998;74:(Supl) S69-S75.
  • 18. Dias MHP. Características médico-sociais da tuberculose em crianças. Dissertaçăo (Mestrado) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de Săo Paulo. Săo Paulo, 1981.
  • 19. Nardy SMC, Brólio R, Belluomini M. Aspectos epidemiológicos da meningite tuberculosa em menores de 15 anos de idade, na Grande Săo Paulo, Brasil, 1982-1983. Rev Saúde Públ (Săo Paulo) 1989;23:117-127.
  • 20. Wunsch V Filho, Castilho EA, Rodrigues LC, Huttly SRA. Effectiveness of BCG vaccination against tuberculous meningitis: a case-control study in Săo Paulo, Brazil. WHO Bull 1990;68:69-74.
  • 21. Costa MCN, Mota ELA, Pinto LLS. Efeito protetor do BCG intradérmico na meningite tuberculosa. Bol Of Sanit Panam 1991;110:26-32.
  • 22. São Paulo. Secretaria de Estado da Saúde. Comissão Permanente de Assessoramento em imunizações. Norma do programa de imunização. São Paulo: Centro de Vigilância Epidemiológica, 1988.
  • 23. Donald PR, Schoeman JF, Cotton MF, Van Zyl LE. Cerebrospinal fluid investigations in tuberculous meningitis. Ann Trop Paediatr 1991;11:241-246.
  • 24. Lincoln EM, Sewell EM. Tuberculosis of the meninges and central nervous system. In Lincoln EM, Sewell EM. Tuberculosis in children. New York: McGraw-Hill, 1962:161-183.
  • 25. Zarabi M, Sane S, Girdany BR. The chest roentgenogram in the early diagnosis of tuberculous meningitis in children. Am J Dis Child 1971;121:389-392.
  • 26. Azambuja HCP. Tuberculose na infância: revisăo de 432 casos internados com ęnfase nos critérios diagnósticos e resultados terapęuticos. J Pediatr (Rio) 1989;65:210-216.
  • 27. Lehrer H. The angiographic triad in tuberculous meningitis. Radiology 1966;87:829-835.
  • 1Mestre em Pediatria pela FMUSP, Médico Observador da Unidade de Infectologia;
    Instituto da Criança (IR), Hospital das Clínicas (HC) , Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP): Mestre em Pediatria pela FMUSP, Médico Observador da Unidade de Infectologia; 2Pós-graduanda (Doutorado) pela FMUSP, Médica-chefe da Unidade de Infectologia; 3Livre Docente em Neurologia pela FMUSP, Médica-chefe da Unidade de Neurologia. 4Doutora em Pediatria pela FMUSP, Médica do Grupo de Epidemiologia Hospitalar.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Abr 2001
    • Data do Fascículo
      Mar 2001

    Histórico

    • Revisado
      31 Ago 2000
    • Recebido
      03 Abr 2000
    • Aceito
      04 Set 2000
    Academia Brasileira de Neurologia - ABNEURO R. Vergueiro, 1353 sl.1404 - Ed. Top Towers Offices Torre Norte, 04101-000 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 5084-9463 | +55 11 5083-3876 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista.arquivos@abneuro.org