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Migrânea com afasia: relato de uma família

Migraine with aphasia: report of a family

Resumos

Descrevemos uma família brasileira na qual a mãe e três filhas apresentam episódios compatíveis com migrânea, acompanhados por alteração no conteúdo da linguagem (afasia), sem paresias. Alguns aspectos relativos à genética das migrâneas são revisados. Chamamos a atenção para a necessidade de investigação genética para saber se é uma variante das formas conhecidas de migrânea, como a migrânea hemiplégica familiar.

migrânea; enxaqueca; migrânea hemiplégica familiar; afasia


We describe a Brazilian family in which one female patient and her three daughters present a clinical course compatible with migraine, preceded by language disorders (aphasia), without paresis. Several aspects related to genetics of migraine are reviewed. We conclude that further genetical studies are necessary to establish if these cases are different sources of weel-known migraine subtypes as the familial hemiplegic migraine.

migraine; hemiplegic migraine; aphasia


MIGRÂNEA COM AFASIA

RELATO DE UMA FAMÍLIA

DANIEL BENZECRY ALMEIDA* * Unidade de Ciências Neurológicas, Hospital Vita Curitiba e Genetika, Centro de Aconselhamento e Laboratório de Genética, Curitiba: Neurocirurgião; ** Neurologista; *** Geneticista. Aceite: 5-novembro-1998. , WALTER OLESCHKO ARRUDA ** * Unidade de Ciências Neurológicas, Hospital Vita Curitiba e Genetika, Centro de Aconselhamento e Laboratório de Genética, Curitiba: Neurocirurgião; ** Neurologista; *** Geneticista. Aceite: 5-novembro-1998. , RICARDO RAMINA* * Unidade de Ciências Neurológicas, Hospital Vita Curitiba e Genetika, Centro de Aconselhamento e Laboratório de Genética, Curitiba: Neurocirurgião; ** Neurologista; *** Geneticista. Aceite: 5-novembro-1998. , ARI ANTÔNIO PEDROZO* * Unidade de Ciências Neurológicas, Hospital Vita Curitiba e Genetika, Centro de Aconselhamento e Laboratório de Genética, Curitiba: Neurocirurgião; ** Neurologista; *** Geneticista. Aceite: 5-novembro-1998. , SALMO RASKIN *** * Unidade de Ciências Neurológicas, Hospital Vita Curitiba e Genetika, Centro de Aconselhamento e Laboratório de Genética, Curitiba: Neurocirurgião; ** Neurologista; *** Geneticista. Aceite: 5-novembro-1998.

RESUMO - Descrevemos uma família brasileira na qual a mãe e três filhas apresentam episódios compatíveis com migrânea, acompanhados por alteração no conteúdo da linguagem (afasia), sem paresias. Alguns aspectos relativos à genética das migrâneas são revisados. Chamamos a atenção para a necessidade de investigação genética para saber se é uma variante das formas conhecidas de migrânea, como a migrânea hemiplégica familiar.

PALAVRAS-CHAVE: migrânea, enxaqueca, migrânea hemiplégica familiar, afasia.

Migraine with aphasia: report of a family

ABSTRACT - We describe a Brazilian family in which one female patient and her three daughters present a clinical course compatible with migraine, preceded by language disorders (aphasia), without paresis. Several aspects related to genetics of migraine are reviewed. We conclude that further genetical studies are necessary to establish if these cases are different sources of weel-known migraine subtypes as the familial hemiplegic migraine.

KEY WORDS: migraine, hemiplegic migraine, aphasia.

A migrânea é uma entidade neurológica complexa caracterizada por um grupo de sinais e sintomas, no qual geralmente predomina a cefaléia de forma paroxística, que se repete a intervalos variáveis, de localização uni ou bilateral, de caráter pulsátil ou latejante, frequentemente associada a fenômenos vegetativos, tais como náuseas, vômitos, fotofobia e/ou fonofobia1.

Descrevemos uma família na qual 4 membros são acometidos por uma forma de migrânea precedida por período de aura caracterizado por afasia motora.

RELATO DOS CASOS

Paciente 1 (Mãe). Uma senhora de 47 anos de idade procurou nosso consultório, queixando-se que há aproximadamente 18 anos apresenta episódios de cefaléia que se iniciam sempre com sensação definida como parestesias em membro superior direito e hemilíngua direita e que, no decorrer de poucos minutos, passa a estender-se para todo o dimídio direito. Enquanto isso vai acontecendo, começa a aparecer dificuldade para expressar-se verbalmente, não conseguindo nomear os objetos ou achar as palavras adequadas para a realização de uma sentença, passando a apresentar inclusive erros gramaticais não existentes em situações normais, sem problemas com a articulação da palavra. Após cerca de 10 a 15 minutos aparece cefaléia latejante bilateral, acompanhada de náuseas, vômitos, fotofobia e fonofobia. Em nenhum momento aparecem sintomas motores, tais como fraqueza ou alteração na coordenação. Com este quadro, a paciente geralmente procura um local calmo e se possível tenta dormir, não tomando normalmente nenhum tipo de medicamento, preferindo os chás medicinais. Após cerca de 45 minutos, existe desaparecimento de todos estes sintomas, sem nenhum tipo de déficit posterior. Tais crises vêm se apresentando a intervalos irregulares, aparecendo cerca de uma crise a cada 6 meses.

A paciente refere que tem três filhas e que todas elas apresentam quadro similar, ainda sem definição diagnóstica. O exame clínico e neurológico foram normais. Submetida a exames de ressonância nuclear magnética (RNM), eletrencefalografia (EEG) e testes bioquímicos e hormonais, todos com resultados normais.

Paciente 2 (1ª filha). Paciente de 24 anos que refere crises de cefaléia há aproximadamente 11 anos. Inicia com parestesias na mão esquerda, associada a cefaléia hemicrânica direita. Com o passar de poucos minutos a sensação parestésica começa a estender-se, passando a acometer a região da orofaringe, hemilíngua, hemiface e membro inferior, à esquerda. Com isto, a cefaléia vai gradualmente ficando mais intensa. Após alguns minutos do início do quadro, começa a apresentar afasia de expressão, caracterizada por não conseguir achar as palavras corretas, trocando-as. Não apresenta quadro de vômitos ou outros comemorativos. A crise dura cerca de uma a duas horas, reaparecendo com intervalos de cerca de uma crise a cada 6 meses. Não refere qualquer paresia. Em outras ocasiões, apresenta crises de cefaléia bilateral, pulsátil, acompanhada de náusea, vômitos, fotofobia e fonofobia, cerca de duas vezes por semana, melhorando com isometepteno, durando até 3 horas caso não use qualquer tipo de medicamento.

Exame clínico e neurológico normais. Realizou exame de tomografia computadorizada de crânio, EEG e testes bioquímicos, que foram normais.

Paciente 3 (2a filha). Paciente de 19 anos de idade, refere crises de cefaléia há aproximadamente 5 anos, iniciando com sensação de peso holocraniano, acompanhado de parestesias em toda a língua, dificuldade para falar, trocando as palavras e não conseguindo ler, apesar de manter plena consciência dos fatos. O quadro de afasia dura cerca de 40 a 50 minutos, e ocorre antes e durante a cefaléia. Esta última é bilateral, em peso, frequentemente acompanhada de náuseas, vômitos e fonofobia. Sem melhora com analgésicos anti-inflamatórios não-hormonais. O quadro reaparece com frequência de um crise por mês.

Exame físico e neurológico sem anormalidades. EEG e testes bioquímicos normais.

Paciente 4 (3a filha). Paciente de 15 anos, refere um único episódio até o momento, iniciado com parestesias no membro superior direito e alteração no conteúdo da linguagem (afasia de expressão), com capacidade de compreensão normais. Durou cerca de 10 minutos, com resolução espontânea do quadro.

Exame físico e neurológico normais. Realizou RNM do crânio, EEG e testes bioquímicos, todos com resultados normais.

DISCUSSÃO

A migrânea ou enxaqueca constitui-se numa das principais causas de cefaléias na população geral, causando anualmente grande perda social e econômica. Sua fisiopatogenia é alvo de estudo em todo o mundo, parecendo que muitos fatores possam estar envolvidos.

Em 35% dos casos, as crises de cafaléia podem ser acompanhadas de uma fase em que aparecem sintomas neurológicos localizatórios que caracterizam, sindromicamente, as migrâneas com aura2. São mais comumente representados por fenômenos visuais, tais como escotomas, fortificações e hemianopsia, mas podem ser sensitivos, motores, mentais (déjà vu), alterações de equilíbrio e marcha, olfatórios, auditivos, de humor. Distúrbios de linguagem, incluindo disartria e disfasia, são descritos também, com menor frequência.

O caráter genético da migrânea é bem reconhecido3,4, contudo o modo de herança constitui ainda um tópico de controvérsia, sendo que vários modos de transmissão genética têm sido propostos e incluem formas autossômicas dominantes, autossômicas recessivas ou multifatoriais5-7. Heterogeneidade genética é provavelmente a melhor explicação para a diversidade destas observações. De fato, algumas formas mais raras de migrânea, como a migrânea hemiplégica familiar (MHF), já possuem um locus gênico determinado, descrito em algumas famílias.

Desde a primeira descrição de uma família acometida por ataques de dor hemicrânica associada a hemiparesia, por Clarke, em 19108, várias outras famílias com diagnóstico de migrânea hemiplégica familiar foram descritas9. A idade de início varia de 5 a 30 anos, com predomínio na juventude, e os episódios são caracterizados pelo aparecimento de hemiparesia ou hemiplegia associada ou não a outros sintomas de aura tais como hemianopsia, embaçamento visual, parestesias ou hipoestesia unilateral, e disfasia. Estes sintomas geralmente duram de 30 a 60 minutos e são seguidos por intensa cefaléia pulsátil que dura de horas a dias. Em crises mais severas, a hemiplegia pode associar-se a febre, sonolência, confusão mental ou mesmo coma, que podem durar de horas a dias, até semanas. Nestas famílias um caráter autossômico dominante de transmissão hereditária parece estar inequivocamente presente. Posteriormente foi mapeado o locus gênico de algumas famílias com MHF no cromossomo 19 (19p13)10,11. Contudo, heterogeneidade genética provavelmente ocorre dentro da MHF, pois várias famílias estudadas (50%) não possuem ligação com o cromossomo 19, mais especificamente com o locus gênico que codifica uma sub-unidade do canal de cálcio voltagem-dependente (CACNA1A)12. Por outro lado, diferentes mutações neste gen dão expressão a algumas formas clínicas diversas de doenças neurológicas denominadas canalopatias (ataxia cerebelar episódica tipo 2, ataxia espinocerebelar SCA6)13.

Os sintomas motores constituem uma forma de aura na MHF. O quadro afásico dos membros da família aqui descrita pode ser considerado uma aura, que ocorre de forma sistemática e uniforme e que corresponderia ao envolvimento de áreas corticais do hemisfério cerebral esquerdo relacionadas ao desenvolvimento de afasia motora, e em menor grau, afasia sensorial e fenômenos sensitivos. Distúrbios da fala são menos comuns na migrânea clásssica e ocorrem em cerca de 20% dos pacientes14. Muitas vezes não é clara a distinção do distúrbio de fala como disartria ou disfasia. Nos pacientes aqui descritos observamos quadro bem caracterizado de disfasia/afasia, sem alteração motora (articulatória) da fala. A Paciente 2 mostra como a localização (lateralidade) da cefaléia muitas vezes não corresponde ao hemisfério ou região cortical envolvido, como já observado em outras séries de pacientes14,15. A cefaléia pode ser bilateral ou ipsilateral aos fenômenos prodrômicos.

A família aqui descrita pode ser considerada como tendo uma forma de migrânea com aura caracterizada pelo envolvimento predominante do hemisfério cerebral dominante na fase inicial. A eventual descrição de outras famílias acometidas por esta forma peculiar de migrânea com aura reforçará a noção de que se trata de uma variante isolada de migrânea com aura, que poderíamos denominar migrânea afásica familial. Numa fase inicial, estudos para estabelecer se esta é uma forma alélica ou não relacionada ao gen CACNA, no cromossomo 19p13.1 deverão ser conduzidos.

Dr. Daniel Benzecry Almeida - Unidade de Ciências Neurológicas - Rua Raphael Papa 10 - 82530-190 Curitiba PR - Brasil.

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  • *
    Unidade de Ciências Neurológicas, Hospital Vita Curitiba e Genetika, Centro de Aconselhamento e Laboratório de Genética, Curitiba:
    Neurocirurgião;
    **
    Neurologista;
    ***
    Geneticista. Aceite: 5-novembro-1998.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Nov 2000
    • Data do Fascículo
      Mar 1999

    Histórico

    • Aceito
      05 Nov 1998
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