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Memória organísmica: aprendizado e automatização de sintomas

Organismic memory: mechanism of learning, fixation and reproduction of symptoms

Memória organísmica: aprendizado e automatização de sintomas

Organismic memory: mechanism of learning, fixation and reproduction of symptoms

Nelson Pires

Catedrático de Clínica Psiquiátrica da Fac. Med. da Univ. da Bahia

RESUMO

Memória é um fenômeno biológico profundo alcançando o extrapsicológico. Mesmo sem qualquer grau de consciência, o organismo, face a agressões repetidas, aprende, grava e executa processos e reações que reproduz fácil, estável e, às vêzes, inoportunamente. Isso se verifica desde os sêres unicelulares até o homem. O mêdo ao eletrochoque mesmo aplicado sob narcose, os reflexos condicionados, as experiências de imunologia, de hipnotismo, de psicanálise confirmam a memória organísmica. Certas síndromes só assim são explicáveis: o autor refere casos de recidivas de "hipertireoidismo sem hipertireoidismo" após autêntico hipertireoidismo, "colites" recidivando após disenteria amebiana curada e "síndrome diencefálica condicionada" resolvida pela sonoterapia. A fixação (memória) de aprendidas reações neurais (sintomas "neurogênicos") é certamente a gravação mais objetivamente demonstrável - enxaquecas, crises hipertensivas, distonias vegetativas, certos eczemas, pruridos, asma, etc.

Assim, certos problemas de etiologia têm sido abordados sem solução porque o fenômeno da memória organísmica não comporta indagações etiológicas. Mais adequada é a indagação da ativação dessa memória fisiológica ou das circunstâncias dinâmicas determinantes. Aspectos desfavoráveis desse aprendizado de sintomas são rotulados de mórbidos. De mórbido só têm a inconveniência da sua fixação e o inoportuno de seu surgimento, mas nada há de doença nessas manifestações. A sonoterapia profunda e demorada freqüentemente auxilia o cancelamento provisório ou definitivo dos sintomas aprendidos por essa memória organísmica.

ABSTRACT

Memory is a deep biological phenomenon reaching the extra-psychological ground. Even without any degree of conscience, the organism facing repeated aggressions learns and engraves processes and reactions that are reproduced easily and sometimes inopportunely. This phenomenon can be shown since the unicellular organisms until the man. The electroshock fear (even when given under narcosis), the conditioned reflexes, the results of immunological experiments, the effects of hypnotic suggestion are considered by the author as resulting of an "organismic" memory mechanism.

Many syndromes can be understood only through that mechanism. Three cases with (1) repeated crisis of "hyperthyroidism without hyperthyroidism" after true hyperthyroidism, (2) psychogenic "colitis" relapse after cured amebic dysentery and (3) "conditioned diencephalic syndrome" improved by drug induced sleep, are reported. The fixation of neural learned reactions (neurogenic symptoms) is more clearly demonstrated reproducing symptoms of migraine, arterial hypertensive crises, autonomic disorders, some kinds of eczema, asthma, etc.

The etiologic problems in several diseases are sometimes studied without solution because the phenomenon of organismic memory does not admit etiologic inquiries. The study of the activation of that organized memory or of the precipitating dynamogenic moments is more important. Some unfavourable features of these "learning of symptoms" are morbid just because their fixation is inconvenient and untimely; besides the functional aspects there are not morbid features. The deep and lasting drug induced sleep frequently helps the provisional or definitive suppression of the symptoms learned and fixed by this organismic memory.

1 - O eletrochoque terapêutico, mesmo executado sob narcose, acaba quase sempre por despertar aversão, resistência ou medo. Pergunte-se aos pacientes - medo do quê? - e receber-se-ão respostas diversas. Eis algumas delas: da narcose, de vir ao Sanatório, do mal-estar ulterior, da dor de cabeça; alguns não sabem o que temem, tendo uma impressão indefinida de receio ou de pavor. O fenômeno constante e fundamental é a repulsa: variável é a explicação individual e a racionalização da repulsa.

Êsses pacientes não sabiam o que ocorria depois que adormeciam em narcose. Não tinham informação alguma a respeito das convulsões; entretanto, não perdem - mesmo passado algum tempo - a indefinível aversão a essa espécie de tratamento e resistem à sua repetição, mesmo anos depois. É evidente que a aversão ao eletrochoque não se explica por eventos de memória psicológica, previamente anulada pela narcose.

A convulsoterapia que se executa conservando a consciência do paciente aumenta de muito e dá muito maior precisão de conteúdo psicológico ao medo ou pavor. Os pacientes dão, então, respostas muito menos divergentes. Os cardiazolizados concentram respostas mais uniformes: medo à morte iminente, à dissolução progressiva e rápida da integridade do eu.

No eletrochoque executado com narcose prévia e, portanto, excluindo a consciência, aumenta o número das explicações face ao mêdo, mas na grande maioria dos pacientes subsiste um claro e indeterminado mêdo que êles explicam recorrendo a contingências altamente pessoais. Daí se pode deduzir que mesmo sem memória psicológica, imprimiu-se uma reação de repulsa ao eletrochoque. Esta repulsa não tendo claras bases psicológicas, sobretudo quando a narcose não foi superficial, só pode ter bases organísmicas, ou melhor, extrapsicológicas; mesmo sem consciência, o intenso e repetido sofrimento do organismo agredido pelo eletrochoque acaba provocando uma defesa automática, sem claro conteúdo psicológico, contra aquela experiência agressiva. O paciente não sabe que se defende mas vivência difusamente a repulsa fisiológica sem razões racionais.

2 - Esta "memória organísmica" existe mesmo nos sêres unicelulares onde não se poderá falar de memória psicológica. "Excite-se, por exemplo, um infusorio do género Stentor com grãos de carmim, postos na água em que vive; a princípio não há reação e êle prossegue tranqüilo, a redemoinhar com auxílio de seus cílios (etapa A); repetindo-se a excitação, o infusorio curva-se para um lado, evitando a nuvem de carmim (etapa B); depois de muitas excitações, muda-se a reação B para reação C, mediante alterações dos movimentos ciliares que repelem as partículas de carmim das proximidades; prosseguindo a excitação, ocorre contração do corpo todo que toma a forma tubular de autoproteção (etapa D). Depois de muitas repetições da experiência com o carmim, o infusorio não executa a escala inteira de reações, mas responde, logo, com uma súbita contração: em lugar da fórmula de movimentos A-B-C-D, surge a fórmula encurtada A-D. Esta lei do encurtamento formal dos atos repetidos muitas vezes é importante e fundamental em Biologia e se apresenta em toda a série animal..." (Kretschmer - Medizinische Pychologie, 10ª edição, Georg Thieme Verlag, Stuttgart, 1958, págs. 94-95).

O "encurtamento reflexo", como diz Kretschmer, das respostas ocorridas muitas vezes, encerra uma espécie de aprendizado útil por parte do infusorio, que reage abreviando ou eliminando as etapas B e C, inúteis ou insuficientes. Isto subentende aquela espécie de memória organísmica, não psicológica mas biológica, útil e preservadora, organizando a defesa do infusorio. Nos infusorios os fatos repetidos muitas vezes fixam-se em reflexos automáticos, memorizados orgânicamente.

3 - Todos os reflexos condicionados, de Pavlov a Bykov, compõem uma linha experimental que demonstra o aprendizado de reações fisiológicas onde não há lugar para a memória psicológica. O cão que reage à luz, ao som ou ao metrónomo com secreção salivar ou gástrica, assim responde automática e reflexamente. Se há aí memória, essa memória é "organísmica" e nada psicológica. Evidentemente, quando Bykov, após 18 experiências de expressão do baço com adrenalina, obtém sempre a mesma fórmula leucocitária e, na 19ª vez; sem adrenalina, obtém essa mesma fórmula, não podemos dizer que isso resulte de fenômeno de memória psicológica. A expressão do baço e a fórmula leucocitária decorrem da memória organísmica pura e simples.

Pavlov referiu-se, com freqüência, à variabilidade dessa memória fisiológica : certos cães aprendiam e retinham facilmente os reflexos condicionados, outros só dificilmente e outros eram praticamente imprestáveis para as experiências. O autor russo daí partiu para uma teoria de temperamentos. Prescinda-se até da teoria mas não dos fatos que ratificam a memória fisiológica e a capacidade de aprendizado reflexo.

4 - "Num sadio jovem de 19 anos, em profunda hipnose, foi às 11 horas da manhã, colocada uma moeda no dorso da mão, com a afirmação de que ela estava incandescente e produziria, sem dor, uma queimadura. A dor foi eliminada não só por motivos humanos, mas para afastar as possibilidades do influxo psíquico da vivência de dor. Mão e braço do paciente foram enfaixados para excluir autolesões conscientes ou inconscientes, e o paciente foi mantido sob observação. À tarde, às 17 horas, ao retirar o enfaixamento, bem no local indicado, existia uma flictena superficial que regrediu, deixando leve cicatriz" (J. H. Schulz - Z. Psychol., 1:4, 1951).

Será difícil a explicação da dinâmica etiológica e fisiopatogênica dessa flictena. Mas é impossível explicá-la sem o pressuposto da memória organísmica, extrapsicológica: queimadura superficial deve resultar em flictena. Ignora-se o como da flictena, mas não se pode prescindir do resultado "sabido" pelo organismo psicossomático: com a sugestão de queimadura, ocorrerá uma flictena que o organismo sabe fazer, e não, por exemplo, uma cefaléia. A resposta flictena deriva de uma reação aprendida, memorizada organicamente face à queimadura. Aliás reação natural, habitual, automática e adequada.

5 - O mago do psicogeneticismo moderno - Freud - esbarrou também nessa irracional memória fisiológica e em vários trabalhos ocupou-se dela (Freud Gesamelte Werke: XIII - Jenseits des Lustprinzips, 1ª edição. Imago Publishing, Londres, 1940, págs. 17, 36 e seguintes), verificando que sintomas analisados e que deveriam desaparecer com a análise, continuavam a repetir-se indefinidamente. Explicou o fato insólito com o "automatismo de repetição" (Freud - Inhibición, sintoma y angustia, 1ª edição, tradução Ballesteros. Biblioteca Nueva, Madrid, 1927, pág. 87) que seria uma forma de resistência do "id". Após a análise, pode haver uma tendência à reprodução de sintomas, derivada do princípio de repetição e da "atração dos protótipos inconscientes sobre o processo instintivo reprimido" (Freud - op. cit., pág. 94). Essa resistência do inconsciente é, nada mais nada menos, que a memória fisiológica cega de sentido (Blindsinn), a executar obstinadamente a aprendida disfunção ou sintoma, exigindo, além da análise, um "trabalho de liberação", ou seja um novo modo de execução dinâmico-funcional reflexo, coordenando instintos sexuais (freudianos). Em vez de repetir sintomas e disfunções, cabe a terapêutica de executar liberações instintivas graças ao novo aprendizado analítico e à intenção consciente forcejando pela liberação. O próprio inconsciente, recalcado mas atuante, é fenômeno de memória fisiológica.

Mesmo da "memória psicológica", parte é puramente fisiológica. Diz o clássico Bumke que, para memorizar, é necessário sucessivamente atentar, aprender, armazenar mnemas e reproduzir. "Só a atenção, a apreensão e a reprodução, membros extremos da série, são vivenciados. O que está entre eles, pertence (bem assim aquilo que concerne corporalmente a esses mesmos membros) à Fisiologia" (O. Bumke - Lehrbuch der Geisteskrankheiten, 7ª edição, Bergmann Verlag, Munchen, 1948, pág. 35). Refere-se à "armazenagem" de lembranças estocadas e à disposição da rememoração.

6 - Uma primeira carga de antígenos - na vacinação antivariólica, antiamarílica, antitífica, etc. - provoca a formação de anticorpos. Diante de novos antígenos, a reação humoral aprendida exibe-se geralmente encurtando a reação febril e enriquecendo ainda mais o título de anticorpos do soro. Essa "memória" funcional evidenciada por via humoral é específica, mas, na verdade, novos antígenos (por exemplo, colibacilo) injetados, elevam não só o poder anticoli mas também o outro, antitífico, do grupo coli, mas não injetado. Elevá-lo-á ainda mais se anteriormente já houver sido primariamente injetada essa mesma ebertela, ainda que agora, secundariamente só o antígeno coli tenha sido administrado. "An interesting phenomenon that may be of importance is the anamnestic reaction which is the basis for the timing of the secondary stimulus in vaccination. While it takes days or weeks for antibodies to develop following the one or more doses constituting the primary stimulus, after immunity is established, a secondary stimulus or injection of vaccine will lead to a rapid formation of antibody. ..." "It is well established that the secondary stimulus does not have to be a large dose of antigen" (Sherwood - Immunology, 2Ç edição, Mosby Co., St. Louis, 1941, pág. 120).

Isto é, precisamente, o "encurtamento das respostas" que Ketschmer mencionou. E a memorização funcional delas (anamnestic reaction) é aspecto semelhante ao que Sherrington, no setor neural, chamou de facilitação, na qual basta um estímulo com menor grandeza para a resposta total.

A memória fisiológica invocada neste trabalho e que estamos documentando para mostrá-la depois na clínica, tem, em imunologia, expressão também desfavorável como se verifica desde a anafilaxia até as moduladas reações alérgicas. Esse fenômeno de memória, sempre presente é, todavia, modificado por outros fatores que imprimem diversidade de sentido à resposta - ora anérgica, ora hiperérgica - dependendo ora de fatores extrínsecos (do agressor), ora intrínsecos ao organismo, variando, de indivíduo a indivíduo, o peso de um e de outro. Fizemos, porque vamos precisar disso mais adiante, que a "memória" fisiológica é, na vacinação e na alergia, a constante do sistema. As variáveis são o indivíduo peculiar, a grandeza e a natureza do estímulo, o número de estímulos anteriores e circunstâncias ocasionais que podem transformar, por exemplo, uma primo-infecção tuberculosa, geralmente superável, numa doença grave e indelével. Pensou-se a princípio que só proteínas desencadeassem reações humorais. Sabe-se hoje que a memória organísmica não tem essa exigência como indispensável.

Mencionaremos, enfim, a expressão talvez mais evidente e curiosa de "memória fisiológica": a sensação de presença e de dor em membros amputados (presença do membro e dor fantasma). No momento importa pouco sua explicação e seu tratamento, mas, desde logo, fixemos que a inscrição cortical do "Kõrperschema", estabelecida no paciente durante a sua vida com seu membro presente, aprendeu referências corporais tão sólidas que, mesmo na ausência do membro, o esquema corporal continua a apontá-lo presente. A correção sobrevêm em prazo variável e na dependência também de circunstâncias variáveis. A memória fisiológica reaprende quase sempre o novo esquema corporal.

7 - É essa capacidade, essa propriedade geral de aprender respostas organísmicas e depois repeti-las que explica a execução de tanto fenômeno biológico simples ou complexo. Fixemos, então, após tantas citações de prova, o que entendemos por "memória organísmica" ou fisiológica, vista desde o infusorio: é aquele fenômeno conhecido dos experimentadores e dos clínicos que consiste em ter o organismo vivo capacidade de aprender, fixar e reproduzir de modo mais ou menos automático-reflexo, reações somáticas e psíquicas certa vez ocorridas. Inicialmente essas reações foram talvez respostas naturais a estímulos (a um alérgeno, reage-se com urticaria, asma ou eczema); outras foram aprendidas por um preciso evento lesionai (caso 2 de nossa casuística, apresentado a seguir) ou funcional (nosso caso 1); em outras não se consegue apontar como se deu o aprendizado e só registramos a iterativa sucessão de reações idênticas, cujo início fica ignorado (nosso caso 3); mas é aí bem marcada a estereotipia das reações inadequadas e bem fixadas. Qualquer que tenha sido o início delas - lesionai, disfuncional, hereditário, constitucional, circunstancial (crise de impotência psíquica por indisposição ou agravo transitório explicável) - a reação se fixa e se repete face a estímulos adequados, depois também face aos inadequados, e depois a reação somática ou psíquica surge até espontaneamente (crises hipertensivas, de enxaqueca, diarrêicas, etc).

Memória organísmica é a aptidão particular e individual do organismo para fixar certas respostas somáticas e psíquicas aprendidas, gravá-las e repeti-las depois, com e sem adequação. Fenômeno biológico simples e primário visto desde os unicelulares, é conhecido em experiências corriqueiras e na clínica diária. Aqui lhe estamos dando uma nomenclatura e, linhas adiante, curta exemplificação. Todos os clínicos conhecem fatos semelhantes. A doutrina dos reflexos condicionados exaustivamente mostrou essa memória organísmica em condições experimentais e com ponto de partida sensorial. A neurofisiologia moderna mostra, sob o nome de "histerese", tirado da Física Clássica, ou com a noção de "feed-back", tirado da Eletrônica, que há fenômenos biológicos assemelhados aos da Cibernética (Wagner - Probleme biologischer Regelung. Dtsch. med. Wschr., 83:1710, 26 setembro 1958). Sempre se acentua o fato de manter-se um estado de excitação, maximé no domínio neural, mesmo depois que cessa o estímulo desencadeador. A bioquímica vem tentando a análise miúda da essência do fenômeno. Interessa-nos o aspecto clínico, "macroscópico", dessa memória organísmica. Aí estacamos.

8 - Agora a casuística do aprendizado de sintomas.

a) Uma jovem de 19 anos apresenta-se ansiosa, intimidade face a todos os eventos cotidianos, com tremores, emagrecimento, insónia, pele quente, hipertonia arterial (15X7), taquicardia, diarréia facilmente provocada, sudorese nas mãos e pés. Metabolismo basal +44%; iodo proteico 9 mcg%. Não melhorou com sedativos, com o propiltiouracil, com tranqüilizadores. Foi operada com ressecção parcial da tireóide e remitiu em poucas semanas. Alguns anos mais tarde reapareceu a sintomatologia mas sem os achados objetivos do laboratório. Foi então enviada à Clínica Psiquiátrica onde verificamos a presença dessa síndrome de "hipertireoidismo sem hipertireoidismo". Havia conflitos profissionais de certo vulto, removidos com a transferência da paciente para outra seção do hospital onde era funcionária. Tranqüilizadores promoveram a remissão da síndrome. Reapareceu novamente dois anos depois, face a conflitos amorosos graves. Remitiu com tranqüilizadores, com mais dificuldade. Uma vez mais retornou esse hipertireoidismo quando o pai da paciente adoeceu com certo aparato. Nova remissão cada vez mais difícil e incompleta, ainda graças aos tranqüilizadores (clorpromazina, meprobamato, Pacatal). Note-se que mesmo nos períodos intercriticos, a paciente apresentava fugazmente essa síndrome de falso hipertireoidismo em ocasiões diversas: nos períodos da tensão pré-menstrual, por ocasião de fadigas profissionais, quando perdia noites a trabalhar, quando mal nutrida ou por ocasião de estados gripais.

b) Mulher de 26 anos, solteira. Contraiu disenteria amebiana, tendo, então, fortes cólicas, diarréia muco-sangüinolenta, tenesmo. Tratada, remitiu totalmente. Casou-se 4 anos após. Quando o marido veio a contrair hábitos alcoólicos, a doente passou a apresentar cólicas, diarréias mucosas e tenesmo. Atendida na Seção de Gastrenterologia, nada se verificou à retossigmoidoscopia, biopsia e ao exame de fezes. Enviada à Clinica Psiquiátrica, aí identificamos os conflitos conjugais. Chamamos o marido da paciente e expusemos-lhe a questão, conseguindo que êle reduzisse de muito os seus hábitos alcoólicos. Isso e a sedação com diidrocristina (Emedian) removeram os padecimentos da paciente. Voltaram eles quando sua progenitora adoeceu e, novamente, quando a paciente teve que acompanhar, num hospital de cirurgia, uma paciente operada. Todos os surtos remitiram com o mesmo tratamento pela diidrocristina e rudimentar psicoterapia. Surtos leves diarréicos surgiam episodicamente também nesta doente, no período pré-menstrual e quando se esforçava demais nos seus serviços de costura.

Apesar da semelhança, em nenhum desses dois casos poderemos falar de reflexos condicionados. Nem a jovem solteira nem a desajustada conjugal foram condicionadas a estímulos sensoriais, sempre os mesmos, condicionadores, como é o caso do som, da luz, do metrónomo nos cães de Pavlov. Em ambas houve um acontecimento somático - hipertireoidismo em uma, disenteria amebiana em outra - seguido de remissão total. Depois, estímulos diferentes entre si (conflitos profissionais, amorosos, doença de parentes) provocaram a mesma resposta. Dir-se-á que em ambas havia um locus minoris resistentiae. Diremos que esse locus não deixara vestígio objetivo, nem morfológica nem laboratorialmente. Além disso os estímulos patogênicos agora eram de ordem geral, inespecíficos. Os vestígios sindrômicos, em verdade, são os do "aprendizado" organísmico e com êle ficou implícita a escolha do órgão (sistema) preposto a responder: em uma, a distonia vegetativa ampla; em outra, a distonia mais retrita (a discinesia intestinal). Em ambas, a memória organísmica ditara, graças a lições patológico-somáticas anteriores, a execução dos sintomas aprendidos. Tal foi a valência do aprendizado de sintomas, que eles eram executados mesmo sob solicitações leves e inespecíficas (fadiga, noites sem dormir, tensão pré-menstrual).

c) Mulher com 62 anos, viúva. A paciente queixava-se de que, quando saía à rua e mesmo em casa, quando exposta ao vento ou a uma janela aberta, ocorriam-lhe suores, mal-estar, parecendo-lhe ter febre. Por isso, quando chegava a sair, conduzia em uma maleta roupa de uso interno, que mudava duas a três vezes por dia, entrando em casas de modas para isso. Desenhava-se a fobia de sair à rua e aos espaços ventilados. Verificamos, em companhia do clínico e colocando a doente em varanda ventilada, que a tensão arterial da paciente subia de 14X9 para 17X10, a temperatura alçava-se a 37°,3 e sobrevinha taquicardia e depois suor, tudo acompanhado de ansiedade. Existiam vários problemas domésticos relativos à surda hostilidade à nora que a assistia. Não foi feita psicoterapia intencional, sendo empregada a sonoterapia por 22 dias, com certa profundidade; depois disso manteve se branda tranqüilização por largo tempo. A remissão total dura há mais de 5 anos. Nesta paciente formara-se um verdadeiro reflexo condicionado. Condicionador: vento e espaços abertos. Resposta condicionada: hipertermia, hipertensão arterial, aceleração do pulso, suores, mal-estar. Tudo isso foi levado à extinção, ao que parece definitiva, pela clorpromazina, fenotiazina e barbitúricos. Note-se que a resposta diencefálica condicionada era em parte inconsciente, já que a doente só sabia da sudorese e do mal-estar. Não obstante os reflexos arteriotensionais, os cardiacos e os térmicos compareciam infalivelmente. Da disfunção aprendida e repetida automaticamente pela memória fisiológica, a memória psicológica só registrava a sudorese e o mal-estar. Seguramente, a tensão psíquica expectante reverberava a totalidade dos reflexos condicionados. Emfim, psico e fisiogênese estavam conjugadas e elaboravam respostas disfuncionais em conexão e só parcialmente conscientes.

9 - "Órgãos de choque", áreas prediletas de disfunção, "locus minoris resistentiae", distúrbios personalíssimos como dores em velhas cicatrizes, dispepsias, molestamentos de vesícula biliar, de artrites, rinite vasomotora, etc., comportam períodos críticos evolutivos, fases de recrudescimento disfuncional sem causa evidenciável por maiores que sejam as investigações. Costuma-se apontar então a causalidade psicógena, o que só se comprova em uma parte dos casos e, neles, em algumas das crises. No resto delas, tampouco é demonstrável o desencadeamento psicógeno. São mesmo autóctones. Isso se verifica ainda com as enxaquecas, acessos sincopais, eczemas, acessos asmáticos, algumas síndromes ditas pós-colecistectomia, angina de peito, surtos hipertensivos arteriais incipientes e autóctones, síndromes de cólon irritável, etc.

As repetidas ocorrências disfuncionais foram lições somáticas de desregulação aprendidas, gravadas no organismo e repetidas pela memória fisiológica. Formaram-se ciclos de disfunção cada vez mais executados, exercitados, facilitados como disse Sherrington. De tão facilitados, os distúrbios podem tornar-se dominantes, isto é, passam a surgir com freqüência cada vez maior, provocados por estímulos cada vez mais fracos, mais numerosos e inespecíficos. Monakov dizia: alargou-se a área reflexógena (neurofisiologistas modernos falam em histerese), tal como ocorre com os reflexos tendinosos exaltados. Estímulos cada vez mais inadequados, são capazes de despertar reações tidas como específicas (vasomotoras, alérgicas, etc). Voltaremos noutro trabalho à dominância vista em todas as clínicas médicas e cirúrgicas, porque é fenômeno biológico geral.

10 - Tais síndromes e sintomas, apesar das aparências, não são sempre reflexos condicionados, ademais pouco inteligíveis como psicogênicos, apesar de certos desencadeamentos serem manifestamente dessa ordem. Isso leva ao fácil mas equivocado diagnóstico de psicogenia. Quando um distúrbio se torna dominante, qualquer estímulo pode desencadeá-lo, inclusive o psiquismo, hoje o mais freqüente. Este trabalho que visa apenas o aprendizado de sintomas e a memória fisiológica ou organísmica, não consegue evitar o problema da dominância, conhecido em neurofisiologia desde Sherringtcn e Ukhtomski, mas excessivamente importante para ser tratado agora. Fixados na meta presente do aprendizado de sintomas, queremos expressar que essas numerosíssimas síndromes mencionadas são das mais freqüentes na clínica diária dos ambulatórios e consultórios médicos. A medicina atual tem acentuado o grande papel do fator psicógeno. Mas na verdade é a memória organísmica que aprende, reproduz e repete essas disfunções com e sem provocação psíquica. Claramente psicógenas são, às vezes, essas síndromes; evidentemente automáticas, reflexas, quase sempre. O modo de execução da disfunção, adquirida pelo aprendizado fisiológico, perdura gravado como desregulação na memória organísmica. É um fato anormal porque extemporâneo e inadequado. Há uma função perturbada cuja regulação é anômala e consistente na execução reverberada ou inoportuna. Trata-se de distúrbio de regulação e não de doença. Psico e fisiogênese alternam-se no comando da disfunção. Nem sempre se consegue apontar a etiologia de todas essas síndromes. Não há etiologia exatamente porque não há doença. Há apenas momentos dinâmicos capazes de reproduzir, reeditar disfunções aprendidas. Mas isso está na dependência de coordenações reflexas fisiológicas mal reguladas, memorizadas em cadeia de acontecimentos fisiológicos. Trata-se de uma propriedade organísmica geral e não de doença. Nesses mementos dinâmicos (ditos patogênicos), destaca-se a psicogenia, o que é um equívoco, senão um erro com implicações de ordem patogênica e terapêutica. Por isso essas síndromes continuam a ser mal conhecidas, desprezadas, enigmáticas, inadequadamente conceituadas, mal estudadas, falsamente avaliadas e defeituosamente tratadas pela psicoterapêutica. Nunca se apontou nelas uma etiologia e provavelmente nunca se apontarão senão parcelas ditas patogênicas. Muitas destas síndromes não implicam em doença a descobrir, reduzindo-se, apenas, a disfunções aprendidas (não condicionadas no sentido pavloviano, embora possam chegar a sê-lo, por envolvimento psíquico secundário), gravadas e reproduzidas reflexa e automaticamente. Se há doença de base, a desordem é de fundo geral, organísmica. O que se pode dizer até aqui é que o defeito consiste em aprender, gravar e reproduzir facilmente certas disfunções somáticas coordenando reflexos desregulados, mas fixados.

A propriedade organísmica de aprender, gravar e reproduzir essas ocorrências somáticas até automatizá-las reflexamente e promover o surgimento autônomo dos sintomas comporta sempre que o fator psíquico seja vinculado secundariamente. Secundariamente, mas podendo atingir a hegemonia, o comando, a regência, como em nossas três observadas. Tais distúrbios serão somaticamente aprendidos, reflexamente executados e comportam inclusão e desencadeamento psicógeno. Porém, tanto há aí momentos dinâmicos psicógenos, como somátogenos, como autônomo-reflexos. A causa última e "etiológica" seria a extremada capacidade do organismo desses pacientes de aprender, gravar e repetir a disfunção aprendida. Essa capacidade não é sempre hereditária ou necessariamente constitucional, mesmo porque não se sabe exatamente o que é isso, para poder negar ou afirmar; ela pode ser adquirida e mantida por condições havidas como acessórias, lábeis ou superficiais, as mais diversas, psíquicas e somáticas.

Nem sempre essas condições lábeis são as psíquicas; às vezes são as neurogênicas; às vezes amplas e mistas, como, por exemplo, a mudança de residência que pode operar melhorando ou piorando os asmáticos e os portadores de rinites vasomotoras. Com essa mudança, tanto variam os supostos alérgenos como podem variar fatores psíquicos e existenciais. É impossível, na maioria dos casos, falar em etiologia. A "memória fisiológica", ou seja, a capacidade de fixar e fàcilmente reproduzir ocorrências organísmico-somáticas, é algo como a própria memória psicológica: depende de pré-condições fundamentais gerais; ela é regulada pelos acontecimentos somáticos, grava melhor ou pior certos dêles, reproduz com maior ou menor fidelidade o todo ou só uma parte dêles, depende das parcelas (inclusive das psíquicas) que a integram e, reciprocamente, influi nelas - situação geral somática e psíquica - demonstra excelências e minusvalias específicas nos aprendidos rendimentos psíquicos e somáticos, impressiona-se pelo aprendizado hoje e não amanhã, oscila na exatidão executiva do que reproduz e até "esquece" o aprendido para sempre (tóxicos e medicamentos alteram e apagam tanto a memória psicológica quanto a fisiológica).

Tal como a memória psicológica que é ordenadora da vida psíquica, a memória organísmica ordena a maioria das reações biológicas repetidas, desde o aprendizado dos reflexos vegetativos vitais até os reflexos humorais e hormonais executados repetida e autonomamente na doença. Conserva-se sempre o cunho pessoal da memória organísmica, isto é, certo caráter individual no sintoma ou na disfunção reproduzida. Tem então a disfunção - hipertireoidismo, enxaqueca, dispepsia, colopatia, hipertensão arterial lábil, etc. - um valor próprio, distinto de doente a doente. Nessas disfunções tanto o aprendizado somático reproduzido reflexamente é a parcela mais fiel e fixa e a memória fisiológica é o fator mais importante, como noutros doentes esse aprendizado é fator lábil, a reprodução é menos fiel e outras parcelas predominam; isso se vê em cada enxaquecoso, cada colítico, cada hipertenso, cada anginoso.

Como todos os eventos organísmicos incluem-se na memória fisiológica que, reciprocamente, interfere em todas as parcelas, é impossível dizer da etiologia, dizer qual o ponto de partida do círculo sem fim, a modo de "feed-back". Alcança-se por vezes a apreensão de momentos dinamogênicos efetores da disfunção (momentos ditos patogênicos), específicos ou inespecíficos (psicógenos, menstruais, dismetabólicos, fadiga), gerais ou restritos, mas nunca os etiológicos porque não cabe falar de etiologia no problema da regulação da memória fisiológica. Ela é intrínseca à vida desde o protozoário. Nesses distúrbios mencionados sabe-se muito da dinâmica e nada sobre a origem. O círculo de função (Funktionskreis) ou da disfunção não tem princípio nem fim. É um circuito de elos funcionais - neurais, psíquicos, hormonais, humorais, lesionais - articulados em cadeia, ativados desde o aprendizado da disfunção, adestrados e facilitados pela repetição. De qualquer ponto desse circuito fechado (autorregulado ou desregulado) de elos funcionais pode partir o estímulo, como num dispositivo de "feedback". Aí se ativa em hiperfunção o circuito inteiro aprendido, gravado e executado reflexamente em cadeia memorizada pelo organismo. Ocorrem então os surtos de hipertensão, enxaqueca, colite, asma, etc, acionados ora por via psíquica, ora hormonal no pré-mênstruo ou na menopausa, ora por alérgenos, ora por sobrecargas físicas ou alimentares, mas também autòctonemente ou inespecificamente (fadiga, carência, tensão emotiva de qualquer origem). Então não mais se pode falar em etiologia; há somente momentos dinamogênicos da disfunção que são, na verdade, múltiplos. No máximo percebem-se desencadeadores preferenciais - como na epilepsia musicógena - a solicitar que a aprendida e facilitada disfunção seja repetida.

Travessa Aquidabã, 25 - Salvador, Bahia - Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2013
  • Data do Fascículo
    Jun 1962
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