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Tromboflebite intracraniana em criança: confirmação diagnóstica pela sinugrafia

REGISTRO DE CASOS

Assistentes

RESUMO

Os autores registram um caso de tromboflebite intracraniana em criança de 30 meses de idade. O foco infeccioso original não foi definitivamente determinado, pois a criança apresentou otite crônica e furunculose do couro cabeludo. Neurològicamente havia quadriplegia desproporcionada predominando nos membros inferiores e afasia de expressão. Evolução para a cura com emprego de antibióticos. O diagnóstico foi firmado por meio da sinugrafia direta com injeção da substância rádio-opaca no seio sagital superior.

SUMMARY

Case report of intracranial thrombophlebitis in a 30 months old child. The original infectious focus was not definitely established because the patient showed chronic otitis and furunculosis of the scalp. The neurological picture was: quadriplegia with predominance in the lower limbs and aphasia. The patient was treated only by antibiotics and was cured. The diagnosis was confirmed by direct sinusography, with contrast medium introduced in the superior longitudinal sinus.

Decidimos registrar um caso de tromboflebite intracraniana ocorrido em criança de 2 anos de idade, não somente pela raridade com que êste distúrbio circulatório é assinalado em nosso meio, como também porque o diagnóstico foi confirmado por um exame paraclínico pouco utilizado e que nos parece bastante útil, digno de ser lembrado em casos semelhantes.

E. F., branca, brasileira, do sexo feminino, com 30 meses de idade, residente em Santos. Antecedentes familiares normais; nascimento e evolução neuro-psico-motora normais; como antecedentes mórbidos, apenas amigdalites freqüentes. Nos primeiros dias de dezembro de 1954 a criança começou a ficar sonolenta, reduzindo sua atividade habitual, preferindo manter-se deitada, sem apresentar qualquer sintoma mórbido; em 8-12 teve hipertermia. Exame médico feito nessa ocasião teria revelado amigdalite e otite agudas, medicadas com antibióticos. Ao fim de 3 dias, não tinha mais hipertermia, porém apresentava nítido déficit motor em ambos os membros inferiores e afasia de expressão sem sinais de comprometimento do componente perceptive A paciente ficou intensamente prostrada, porém não chegou a perder a consciência; tinha cefaléia, porém não teve vômitos nem convulsões. Com esse quadro foi internada na Santa Casa de Santos, onde permaneceu de 15-12-54 até 13-1-55, ocasião em que foi transferida para a Clínica Neurológica do Hospital das Clínicas (reg. 394.635). O exame por ocasião da internação mostrou: criança em bom estado nutritivo, apresentando furunculose na região cervical e couro cabeludo, hi-peremia do orofaringe, sem hipertermia e sem outras anormalidades ao exame físico geral.

Exame neurológico: Criança consciente, irritável, não articulando qualquer palavra, embora entendesse ordens e as executasse na medida do possível. Déficit difuso da motricidade. Nos membros superiores notava-se apenas carência de iniciativa, pois após solicitação demorada a criança conseguia realizar os vários movimentos com boa coordenação, com amplitude e força satisfatórias; tono muscular ligeiramente diminuído; apenas os reflexos biecipitais estavam presentes. Nos membros inferiores, paralisia simétrica, com hipertonia em extensão, hiperreflexia osteotendi-nosa e sinal de Babinski bilateral. Durante a internação (45 dias), o quadro regrediu gradativamente; por ocasião da alta restava apenas discretíssimo déficit nos membros inferiores, sem sinais de libertação. A paciente foi medicada com penici-lina, estreptomicina e vitaminas.

Exames subsidiários - Hemograma: 11,9 g de hemoglobina por 100 ml (74%); 12.300 leucócitos por ml (3% bastonetes, 65% segmentados, 1% eosinófilos, 27% lin-fócitos típicos, 4% monócitos); neutrófilos com granulações tóxicas. Hemossedimen-tacão: 3 mm na primeira hora. Liqüido céfalo-raquidiano (26-1-55): punção suboccipital em decúbito lateral: pressão inicial 12cm de água; liquor límpido e levementexantocrômico; 0 células por mm3; 20mg de proteínas por 100ml; 700mg de cloretos e 64 de glicose por 100 ml; reação do benjoim 00000.22000.00000.0; reações especificas negativas. Nessa ocasião foi feita a compressão das jugulares que, à direita, não revelou anormalidade; a compressão à esquerda não determinou elevação da pressão liquórica. Novo exame de liquor, feito 8 dias após, forneceu resultados idênticos. Eletrencefalograma: só foi conseguido o registro durante o sono, o qual não mostrou ondas anormais nem assimetria entre as áreas homólogas. Exame oftalmológico normal.

Com a sugestão de bloqueio da circulação venosa intracraniana, dada pelos resultados da compressão das jugulares, tentou-se um exame mais objetivo, a angiografia, para observação do tempo venoso. Para esse exame, foi injetado Cilatrast na carótida direita, tendo o radio-logista verificado: "artérias e veias do hemisfério cerebral direito sem particularidades dignas de registro; seio sagital superior bem visível na incidência sagital, não apresentando sinal de oclusão ou falha de enchimento; entretanto, seu conteúdo era drenado somente pelo seio lateral direito. Êste fato, freqüentemente observado na fase venosa da angiografia cerebral, não representa obrigatoriamente ausência ou oclusão do seio lateral, cuja imagem não aparece: o sangue proveniente do seio sagital superior pode ser drenado por um único seio lateral, não obstante a ausência de qualquer diferença anatômica entre os dois seios laterais. No caso em apreço, em virtude do quadro clínico inicial e particularmente tendo em vista a sua evolução, repugnava admitir um simples capricho de ordem fisiológica para explicar a não visualização de um dos seios laterais.

Para melhor objetivação, apelamos para a sinugrafia direta, injetando 15 ml de Cilatrast a 30% em plena luz do seio sagital superior, após trepanação frontal mediana. A imagem obtida foi inteiramente semelhante à observada na fase venosa da carótido-angiografia, sendo, entretanto, muito mais nítida, em virtude da maior concentração de substância rádio-opaca. Nesta modalidade de exame, a pressão exercida para injetar o contraste determinaria a passagem deste último por ambos os seios laterais caso estivessem permeáveis; no caso da sinugrafia direta, a ausência de imagem é altamente significativa em favor da oclusão. A confirmação cabal desse bloqueio poderia ser tentada com a sinugrafia retrógrada, injetando a substância rádio-opaca em cada uma das veias jugulares internas; porém prescindimos desse recurso propedêutico, porque essa demonstração demandaria exposição cirúrgica dos referidos vasos, acarretando, entre outros inconvenientes, duas cicatrizes cervicais; além disso, julgamos poder interpretar a falta de imagem do seio lateral esquerdo como conseqüente a uma oclusão (trombose).

COMENTÁRIOS

As tromboflebites intracranianas têm sido estudadas por vários autores, de tal maneira que não nos parece necessário recordar detalhes de sua etio- patogenia. Garcin e Pestel (Thrombo-Phlébites Cérébrales, Masson et Cie., Paris, 1949), fizeram ampla revisão do assunto, analisando as etiologias mais comuns e a patogenia dos distúrbios encefálicos que podem ser mais ou menos graves e assumir dois aspectos principais: a) encefalite purulenta; b) alterações isquêmicas de intensidade variável decorrentes da maior ou menor intensidade das repercurssões da estase sangüínea sôbre o parênquima ence-fálico. Em menor grau, há congestão das veias piais e pequenas sufusões sangüíneas na superfície das circunvoluções; em grau mais avançado, as cir-cunvoluções se apresentam de côr vermelho-violácea devida a sufusões hemorrágicas superpostas a focos de encefalomalácia; em terceiro grau, encontram-se grandes focos de amolecimento, muitas vêzes simétricos, sediados em geral na vizinhança dos ventrículos cerebrais; êste último tipo é encontrado com freqüência nas tromboflebites que ocorrem nos primeiros meses de vida. Êstes aspectos anátomo-patológicos, descritos na tese de Hutinel (cit. por Garcin e Pestel), permitem compreender os vários quadros clínicos que a tromboflebite dos seios venosos intracranianos pode determinar.

A tromboflebite do seio lateral é das mais comuns em crianças, sendo, na maioria dos casos, relacionável com otites supuradas; entretanto, outras causas podem provocá-las, inclusive as inflamações do couro cabeludo, por uma flebite da emissária mastoidiana que pode estender-se ao seio lateral e, sempre por via retrógrada, atingir o seio longitudinal superior. As veias emissárias da abóboda craniana, que normalmente têm um fluxo que vai do seio para as veias cranianas, são muito desenvolvidas nas crianças e desempenham o papel de canais de segurança contra as congestões relacionadas com o esfôrço e o chôro; dentre elas deve ser destacada a emissária mastoidiana, que nasce da porção descendente do seio lateral, passa pelo canal mastoidiano e faz comunicar o seio lateral com as veias extracranianas.

A sintomatologia inicial das tromboflebites do seio lateral é dominada por um quadro infeccioso geral, com hipertermia acentuada; simultâneamente instala-se síndrome de irritação meningo-encéfálica, que era muito evidente e grave antes do advento dos antibióticos, mas que atualmente pode ser muito pouco intensa em virtude da administração precoce dêstes agentes terapêuticos. As manifestações neurológicas variam de um caso para outro; naqueles em que a flebite se estende até a veia jugular, pode observar-se a síndrome do buraco despedaçado posterior, enquanto que em outros casos, nos quais ela se estende em direção ao seio sagital superior, a sintomatologia decorre das estruturas encefálicas atingidas.

A tromboflebite do seio lateral oferece alguns aspectos que merecem ser salientados em virtude de fornecerem importantes subsídios para o diagnóstico. Em geral não há hipertensão intracraniana, que pode ser verificada nas tromboflebites do seio longitudinal superior por deficiência de absorção do liqüido céfalo-raquidiano e pelo edema conseqüente à estase sangüínea. A verificação do aumento, ou não, da pressão do liqüido céfalo-raquidiano pela compressão da veia jugular, separadamente à direita e à esquerda, é muito importante e permite o diagnóstico do lado em que está localizada a trombose, tal como se verificou no caso aqui relatado. Entretanto, as manifestações neurológicas verificadas neste caso eram mais semelhantes às ob- servadas nas tromboflebites do seio longitudinal superior, circunstâncias em que têm sido observadas crises jacksonianas iniciadas no membro inferior, hemiplegia desproporcional predominante no membro inferior, e, com freqüência, quadriplegia desproporcionada predominando nos membros inferiores; algumas vêzes o déficit dos membros superiores é tão discreto que o quadro clínico é o de uma verdadeira paraplegia crural. O que chama a atenção para a sede cerebral da lesão, nestes casos, é a concomitância de sinais de sofrimento cerebral, inclusive afasia. A sinugrafia direta, cujo uso é pouco difundido, tem, a nosso ver, indicação plenamente justificada, não só pela objetividade de seus resultados, como também pela relativa facilidade de execução.

A evolução das tromboflebites melhorou muito no que diz respeito às complicações de ordem infecciosa desde o advento dos antibióticos. Quanto à evolução das lesões relacionadas com os distúrbios circulatórios, devemos recordar que Bailey e Hass (cit. por Garcin e Pestel) puderam demonstrar a possibilidade de tunelização do trombo, de modo que, mesmo nos casos em que a obstrução é completa, existe a possibilidade de restabelecimento tardio da circulação sangüínea. Devemos reconhecer, entretanto, que o elemento fundamental quanto ao prognóstico consiste na localização do trombo; quando êste se estende ao seio reto, bloqueando a circulação de retôrno das veias profundas do encéfalo, o prognóstico é muito grave. De maneira geral, entretanto, devemos aceitar que a evolução destas tromboflebites é favorável, permitindo uma recuperação completa, seja pela possibilidade do restabelecimento da circulação cerebral através do trombo, seja pela vicariância através de outras vias venosas de retôrno.

Trabalho do Serviço de Neurologia da Fac. Med. da Univ. de São Paulo, apresentado ao Departamento de Neuro-Psiquiatria da Associação Paulista de Medicina em 5 fevereiro 1955.

Clínica Neurológica. Hospital das Clínicas da Fac. Med. da Univ. de São Paulo - Caixa Postal 3461 - São Paulo, Brasil.

  • Tromboflebite intracraniana em criança. Confirmação diagnóstica pela sinugrafia

    Antonio B . Lefévre; José Zaclis; Maria Irmina Valente
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Abr 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 1955
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