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Palavras preambulares

Casos difíceis, complexos, que exigiam, para sua elucidação, uma exaustiva recapitulação anatômica e semiótica da patologia nervosa. Pouco depois, ao assumir em 1925 a Cátedra de Clínica Médica, o Serviço do Professor Vampré veio a funcionar na mesma enfermaria em que eu professava, em simbiose funcional que durou até a minha passagem, em 1914, para o Hospital das Clínicas, circunstância que me proporcionou acompanhar de perto a implantação da especialização neurológica nos nossos quadros letivos, ao mesmo tempo em que me punha em contacto direto com os seus então jovens assistentes e colaboradores, vocações em flor, instigadas e contagiadas pelo férvido entusiasmo que animava o titular da Cátedra.

Isso explica porque, em contingências várias, os discípulos de Vampré têm-se lembrado sempre de mim quando assinalam um fasto na sua vida profissional ou em funções de ensino. Assim, coube-me saudar Tolosa no grande banquete que lhe foi oferecido, ao término do concurso consagra doido seu acesso à Cátedra, sucedendo ao Mestre e fundador do ensino da Neurologia paulista; Carlos Gama, hoje também reputado professor, não se esqueceu igualmente de mim quando encetou a sua campanha autoral, ao publicar a monografia "Transfusão de sangue", honrando-me com o convite para prefaciar o volume de sua estréia nas letras médicas; e assim foi com Oswaldo Lange, quando deu ao prelo o seu manual "0 liqüido céfalo-raquidiano em clínica", apresentado ao público em páginas preliminares também do meu punho.

E agora que se preparam homenagens a Paulino Longo, comemorativas dos seus primeiros 50 anos de existência, mantém-se a tradição.

"Primeiros 50 anos", digo, porque o desejo de todos é vê-los redobrados, no mesmo otimismo que inspirou ao velho estadista c diplomata argentino Cárcano. o sugestivo título dado às suas memórias autobiográficas: "Os meus primeiros 80 anos", o que não impediu que morresse logo após.

A vida começa aos 50, apregoam certos espíritos propensos a efusões eufóricas, em dísticos afixados nas paredes dos próprios lares, aviso cauto da provável idade de seus donos, prazo que outros estendem aos 60, numa confissão mais ampla de senectude. A certa altura da vida, aliás, manifesta-se a tendência para revelar, e até mesmo para aumentar, o número de anos, em uma espécie de vaidade às avessas, cuja verdadeira significação poderá ser assim interpretada: "veja como estou bem, ou ninguém dirá a idade que carrego". Foi o que levou o mais moço dos cardiais de Júlio Dantas a fazer praça de sua galhardia sexagenária, ao dizer com discreta faceirice :

"Com sessenta anos feitos, não sou precisamente uma criança de peitos".

Paulino Longo alcança a efeméride cinqüentenária em contínua ascensão. A sua atividade clínica, os seus trabalhos, o êxito do seu ensino e a sua atuação na classe médica, valem por um testemunho de competência profissional e de capacidade didática.

Se fôra necessário mais para demonstrá-lo, bastaria a produção científica de seus alunos, colegas e amigos compendiada no presente volume, corolário vivo de quanto soube êle agremiar, incentivar e realizar no desempenho de sua operosidade de médico e de professor. Não escondo, por isso, a grata satisfação que tenho em encabeçar as páginas que o compõem com estas linhas introdutórias.

Convenho em que, se para dizer algo sobre o estado atual da Neuro-patologia. os meus conhecimentos já estão um tanto seródios, julgo-me, no entanto, suficientemente qualificado para arriscar alguns breves reparos sobre as doenças do sistema nervoso nos últimos trinta anos.

As doenças são imutáveis na sua substância patológica, embora adaptáveis a variantes esporádicas, na sua sintomatologia. Quem as julgar dentro de determinado período cronológico estará todos os dias reconhecendo doenças novas; mas quem as estudar no curso infindo dos tempos há de identificá-las na fixidez de moldes fundamentais.

No respeitante à patologia nervosa, por exemplo, certas doenças, como a tabes, as mielites transversas, a mielite sifilítica de Erb, e a própria paralisia geral, decresceram em freqüência, enquanto outros estados mór- bidos, de difícil catalogação na nosografia clássica, avultam dia a dia. A difusão dos preceitos profiláticos e o advento de meios terapêuticos mais eficazes no tratamento da sífilis explicam bem a primeira ocorrência. Mas a segunda? Representarão essas recém-vindas males realmente inéditos na patologia humana?

Até as primeiras décadas do século, as doenças neurológicas vinculavam-se a causalidades restritas e definidas - arterites e gomas luéticas, tumores, artériosclérose; processos congênitos e degenerativos; impaludismo; reumatismo e coréia, entre as infecções.

Estalada a primeira conflagração mundial, o cenário muda rapidamente. Despontam então surtos epidêmicos imprevistos, encefalite letárgica, espasmos de torção, soluços incoercíveis, mioclonias, distonias, etc. É que um fator infectuoso superveniente fora acrescentado à lista clássica - o vírus.

Nenhuma condição mórbida espelha melhor essa subitánea modificação do que a doença de Parkinson. De evolução lenta, peculiar à idade provecta, relativamente rara, sem maior gravidade prognostica, era como que a caricatura do envelhecimento fisiológico. De um momento para outro surge um verdadeiro estendal d? caeos, em pessoas de todas as idades, ladeadas de sintomas anômalos (hemi-tremor, hemi-atetose, seqüelas outras irremovíveis), com caráter infectuoso e de muito maior gravidade. Entre a doença legítima e as modalidades espúrias, só havia de comum a sede lesional. Esta condiciona a sintomatologia, mas só a etiologia caracteriza verdadeiramente a doença.

E' moda no presente momento afastar o fator etiológico em benefício da função. Síndromes de libertação, síndromes de adaptação, patologia funcional, traduzem o prestígio; atual dessa orientação patológica. A função, perturbada, porém, não independe da causa. Retrata apenas a resposta topográfica em face da agressão mórbida, e não a própria doença. Diante de solicitações idênticas, os diferentes setores do organismo reagem da mesma maneira sintomatológica ; isso, no entanto, não basta, para caracterizar verdadeiramente a doença. Por isso a ninguém foi dado até hoje criar doenças e nem à experimentação reproduzi-las com todos os seus característicos essenciais. A excitação. cerebral pode despertar fenômenos motores, mas a epilepsia genuína permanece com os seus mistérios impenetráveis. As lesões endocárdicas assentam-se, quase nas mesmas regiões, provocando conseqüências sintomáticas aparentadas entre si, mas os seus diferentes tipos - endocardites bactérica ou séptica, lenta e reumática - diferenciam-se nitidamente por seus consectarios clínicos, de conformidade com a espécie etiológica em causa.

O que desmereceu a noção causai foi o fato de atribuir-se tudo, depois de Pasteur, ao micróbio, pondo-se de parte o terreno e as predisposições biotipológicas, excluindo-se, ainda mais, ouïras etiologías. A here-ditariedade as taras familiais, as tendências degenerativas constituem fatores morbígenos, tanto quanto o são as causas infectuosas.

Mas, voltando ao que se observa na atualidade, por que teria irrompido essa desconcertante avalancha de quadros patológicos fora dos até então correntes?

A aglomeração humana, a fome, a miséria, as infrações à higiene, impostas pela primeira grande guerra, foram as suas determinantes iniciais, propiciando a exacerbação de vírus neurotrópicos, ou a sua sobrevivência patogênica em estado agudo, ainda mais acentuada após a segunda. Estamos, hoje, sob o signo da patologia dominada pelo vírus. Não se trata, porém, de doenças novas. A patologia evolve por ciclos no correr dos tempos. Vivemos no presente momento o ciclo dos vírus, eis tudo. A novidade é mais aparente do que real. A psitacose, infecção transmitida ao homem por papagaios, imputável a um vírus filtiávcl, verificada recentemente sob forma epidêmica, na Argentina, entre 1929 e 1930, já grassara, com alguns casos mortais, entre 1879 e 1892 em outras partes do mundo; do tifo exantemático, estado infectuoso grave, conhecem-se surtos epidêmicos mortíferos da era pré-colombiana, tais os ocorridos no Peru nas tropas de Huayna Cápac, que matou aquele chefe e dizimou 200.000 dos seus soldados (Paul Rivet) ; e assolou a Espanha com tanto furor, em 1600, que esse ano ficou conhecido como o dos ''tabardillos*' (designação castelhana da doença) ; a encefalite letárgica remonta a Cœlius Aurelianus, a Areteu de Capadócia e talvez ao mesmo Hipócrates. Em 1695, Albrechi de Hil-desheim publicou uma observação, cujo próprio título - De febre lethargica in strabismum utrisque oculi desinente - encerra a enunciação da tríade básica da doença: letargia, febre e estrabismo.

O aumento universal de população, as guerras, os profundos abalos sociais, as influências meteorológicas, justificam o caráter por vezes insólito da patologia contemporânea.

Os agentes mórbidos infra-visíveis não condicionam, segundo Nicolle, o aparecimento das formas visíveis; ao contrário, descendem delas. Serão, talvez, elementos mais diferenciados, com aptidões patogênicas de maior acuidade, de maior resistência na luta vital. Nicolle verificou, em pulga que absorvera sangue inquinado por espiroquetas da febre recorrente, que logo após a ingestão todos os parasitas desaparecem do organismo do inseto - no fim de 12 horas não há nem traços deles - para reaparecerem sob a forma espirilar. E, coisa interessante, a primavisível constitui o elemento de maior virulência, poder patogênico que se vai atenuando à medida que se opera a Iransformação em forma adulta.

A fase espirilar, visível, desprovida ou de pouca virulência, representaria o tipo ancestral, a forma original, que se reproduz por divisão transversal à maneira de todas as outras, ao passo que as formas invisíveis ou primavisíveis, provindas de granulos que recompõem outra vez a espirilar, representariam um tipo secundário, derivado, evolvido. e adaptado à vida patogênica. E a observação estende-se à tuberculose e a outras doenças infectuosas,

Haveria, assim, unidade fundamental, entre bactérias e vírus, dando base comum às respectivas patologias.

Além dos fatores invocados, a interferência dos antibióticos deve ser elemento ponderável no desencadeamento de alterações patogênicas dos germes. A toda ação corresponde uma reação: ao poderio terapêutico atual, os germes, em réplica, defendem-se, tomando novas modalidades de atuação.

A propedêutica armada, por sua vez, forçando a doença a revelar-se mediante engenhosos métodos mecânicos de averiguação, a arteriografia, a eletrencefalografia, as provas de bloqueio, as de laboratório, específicas para determinadas infestações parasitárias, acabam por denunciar, senão sempre a doença, pelo menos estados sindrômicos topográficos, que assumem, então, a independência de entidades mórbidas distintas. E crescem os síndromos, enquanto as doenças sistematizadas diminuem.

Esta coletânea, mesma, é um exemplo da vastidão dos recursos que o exame neurológico hoje dispõe para o reconhecimento das afecçÕes do eixo encéfalo-medular, dando nova configuração nosológica à patologia nervosa, e uma amostra da produção médica da época. Conceitos gerais, descrições sintomatológicas e ostentação bibliográfica reduzidas ao mínimo comportável dentro do assunto; a exploração objetiva, ou melhor, a devassa humoral e instrumental orientando o juízo clínico; deduções numéricas globais em lugar da casuística pessoal, o fato concreto acima das hipóteses. Em suma, o interesse geral do conhecimento da doença, acima da valorização do estudo isolado do doente.

O raciocínio clínico-patológico, que se estadeara outrora através das cláusulas a que ficava prêso o diagnóstico diferencial, foi substituído pelo assalto à mão armada à doença nos seus esconderijos.

Noto agora, ao terminar, que, tendo me estendido em comentários marginais, deixei um pouco na penumbra o motivo principal destas páginas: a figura do homenageado. Mas, na verdade, nada haveria a acrescentar ao que transparece desta recolta. Fácil foi a seus organizadores compô-la, acolhendo, neste número votivo dos Arquivos de Neuro-Psiquiatria, a colaboração de seus discípulos, colegas e admiradores. E' a mais significativa prestação de contas de como empregou êle o tempo neste meio centenário de vida; e o seu maior elogio.

A. de Almeida Prado

Professor Emérito de Clínica Médica Fac. Med. da Univ. de São Paulo

  • Palavras preambulares

    No início da minha carreira, dediquei-me um pouco à Neurologia, atuação episódica motivada por uma série de casos de doenças do tronco encefálico com que tive de me haver ao dar os meus primeiros passos no magistério médico.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Abr 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 1954
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