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O doente mental e sua família: dificuldades no curso da assistência ao doente mental

Professor Catedrático de Clínica Psiquiátrica da Fac. Med. da Univ de Bahia

Fala-se relativamente pouco sôbre a conduta da família do doente mental (neurótico inclusive) : a atitude tomado quanto ao doente, a seu médico assistente e ao hospital em que eventualmente êle é internado, isto é, como procede o meio familial na assistência a seu doente. Percebe-se que êste problema decide o futuro do paciente.

Fala-se modernamente muito em psicoterapia e esmiuça-se milimetradamente o determinismo psíquico do analisado, mas talvez se subavalie a multiforme influência nêle exercida, direta ou indiretamente, pela família. Médicos de hospitais psiquiátricos públicos, desprovidos de assistentes sociais, em regra ignoram quase tudo dela. Médicos que exercem a clínica predominantemente privada em consultórios ou ambulatórios, têm notícias dessa influência - o doente as dá nas análises - mas mantêm pouco contacto direto e prático com a família. Médicos de instituições privadas, pelo menos no Brasil, apreendem muito mais - dado o contacto forçado - a importância fundamental, decisiva, do que vale o círculo familial do doente na evolução do seu caso.

Proclama-se - a psicanálise o faz, de ângulos especiais e a seu jeito - essa importância para o neurótico. No entanto ela é sempre grande; para o psicótico a família vale simplesmente como arbitro inapelável, o que não sucede sempre com o neurótico, que não está privado de orientar-se e até decidir-se contra a família. A assistência ao psicótico em sua residência está tôda por fazer-se: nem há organização com êste fim precipuo, nem preocupação com isso.

E' naturalmente impossível expor tôdas as dificuldades erguidas pela família, que o psiquiatra encontra em sua clínica prática.

Uma série demonstrativa de casos foi organizada e mostra a necessidade de se fazer a higiene mental do alienado (enunciado que parecerá absurdo, contraditório nos têrmos, mas exato), o que, para ser eficiente, exige que se comece pelo ambiente em que êle vive. Seria o caso de difundir nos Sanatórios, Hospitais e Ambulatórios de Psiquiatria, com vistas às famílias, programas sôbre a assistência ao alienado em sua residência. Sem serviços sociais que completariam, na prática, o programa, isto seria um mínimo que não se fêz até hoje. Ignoramos, pois, se é tentativa inoperante.

Freqüente é o recurso ao espiritismo. Nem sempre é buscado entusiástica, autônomamente e por convicção íntima, mas é sabidamente freqüente que a família do alienado ou neurótico embaraça a ação do psiquiatra, às claras ou às ocultas, com a interferência do espírita.

Isto não significa que o espiritismo seja muito maléfico intrínsecamente. Considere-se o seguinte:

a) As psicoses não são influídas fundamentalmente pela prática espirita senão acidentalmente. Por exemplo, no curso da "psicose epiléptica", o chamada "transe mediúnico" pode influir patoplàsticamente e originar condutas específicas. Temos visto o chamado "delírio espírita" (Henrique Rôxo), sobretudo em personalidades psicopáticas de pouco inteligência e baixo nível cultural. Há "reações anormais a vivências" (K. Schneider) e, entre elas, estados crepusculares histéricos desencadeados diretamente pelas práticas espíritas. Perigosos também os surtos delirantes em oligofrênicos surgidos nas mesmas condições. Companheiros nossos periciaram três irmãos oligofrênicos que, em "transe" espírita e em meio a manifestações assemelhadas a ritos primitivos, assassinaram o pai. Qualquer psicose - notadamente a esquizofrenia de forma parafrênica, mas também a paralisia geral, a arteriosclerose cerebral, etc. - pode ter conteúdo espírita. Mas nestes, casos o valor maléfico do espiritismo é meramente patoplástico ou pelo menos de segunda grandeza. Sabemos de parafrênicos que estruturaram seu exuberante .sistema delirante minudentemente, calcado em temas e concepções espiritistas Mesmo aí a valência é patoplástica e não patogênica. Examinando caso por casa chega-se à impressão final de que a propalada nocividade das práticas espíritas, corrente no Brasil, é verdadeira apenas para discreto número de psicópatas; oligofrênicos, epilépticos e neuróticos. E o prejuízo é quase sempre fugaz e reversível. Excepcionalmente é grave, como o dos casos citados.

b) Abraçam o espiritismo, indivíduos já naturalmente selecionados - angustiados, inseguros, necessitados de valorização ("exibicionistas"), fanáticos, desesperados, fracassados, introvertidos, místicos, etc., e também "normais" - por indução, por crise afetiva, por estarem a curtir revezes, por inércia contra o meia espírita em que vivem, etc. E' verdade que, às vezes, só passageiramente.

Com referência ao doente mental, a família opta pelo espiritismo sobretudo nos seguintes casos: por incultura e por primitivismo; por desespêro (doentes que não curam, demorados na evolução); por economia; por impaciência (o espiritismo oferece-se como "pronto alívio" menos trabalhoso, mais rápido e mais simples do que, por exemplo, a psicoterapia); por não impor afastamento entre a família e seu doente (não impondo internação, satisfaz a família em muitos casos); por não haver outro recurso, como no interior do Brasil; por indução de leigos, crentes, vizinhos, etc.

c) Atualmente, a "assistência" espírita se conjuga, não raro, em Sanatórios, com os métodos rigorosamente terapêuticos da medicina oficial (insulina, eletro-choque, etc), credenciando-se como legítima; as práticas espíritas têm aí papel secundário. Associam o místico ao científico; isto, somado às "bases científicas" do espiritismo, que pretendem explicar obscuros fenômenos psíquicos (P. Janet: L'Automatisme Psychologique. F. Alean, Paris), significa que os atrativos são maiores para os leigos desprevenidos que os da medicina oficial. A família do doente pensa sempre que lá o tratamento é tão científico como noutro instituto qualquer, tem a "vantagem" do aspecto religioso e é, às vêzes, mais econômico.

d) Os principais prejuízos que o espiritismo traz, para nós, em psiquiatria, são, nos psicóticos, perder "tempo útil" de tratamento, isto é, no início das psicoses, quando muitas delas ainda são tratáveis; e, além disso, vem facilitar a eclosão de "estados crepusculares", estados de dissociação psíquica, "automatismos psicológicos" que provocam, nos oligofrênicos, condições de perigo e irresponsabilidade equivalentes à do psicótico. Se o espiritismo "ajuda a viver" a muito neurótico, a outros êle causa o mal já apontado, e, em outros, ou age equívocamente sôbre desvios de personalidade que conduzem ao desajustamento e à neurose, ou atua, mesmo em normais, como "sedativo", emoliente psíquico: a mãe que perdeu, por morte, a filha, "conversa" com ela em "transe" e conforta-se, sem que isso lhe traga adaptação ao real; êste último prejuízo estende-se dos neuróticos até os normais. Quanto a êsse efeito balsâmico, êle é análogo ao realizado pelas religiões diversas.

Enfim, são inumeráveis as oportunidades em que a família interfere com o espiritismo na ação do médico. Tivemos casos em que a psicoterapia, os tratamentos de choque, etc, provocaram a comiseração da família pelo doente e intempestivamente a família retirava o doente e entregava-o ao espírita, embora advertida dos riscos insanáveis da perda do '"tempo útil" para o tratamento. Raramente voltam ao psiquiatra e muitos dêsses clientes, visìvelmente inalterados com os "passes", eram ajuizados como bem melhorados pela "entourage". Noutro caso a mãe da doente trouxe subreptìciamente um espírita ao Sanatório repetidas vêzes, entrando como visita, mas com objetivo terapêutico. Muitíssimas vêzes nossos internados foram levados - às ocultas ou às claras - ao "medium". Bem intencionados, pais e "médiuns" nos solicitavam, com deferência, que prescrevêssemos êste ou aquêle tratamento e que proscrevêssemos outros, alegando motivos "pessoais". Misturavam assim misticismo e psiquiatria, subordinando esta àquele. Tratava-se de optar entre os métodos de Sakel e Cerletti e não tínhamos sólidas razões para negar o pedido. Outras vêzes em que, dizianos a família, o espírita "discordava de nós, a família optava por êle. Mais de uma delas justificava-se de modo singular, com a declaração surpreendente: "somos ignorantes e só por isso preferimos o espiritismo". Por último, registremos que já recebemos doentes enviados por "médiuns", que haviam tachado os pacientes como "casos de psiquiatria" e emancipavam-se deles dizendo "que não eram de sua alçada".

A falta de conhecimentos, o baixo nível cultural que explica em parte a receptividade à ilusão espírita, explica outras "décalages" dos familiares: o avaliar como curado o que é simples melhoria ou nem isso - um ocasional lampêjo - e com isto exigem a alta do parente. Ocorre mais no que passam a "explicar" a doença e a cura. Se se vem a esclarecer como tal alta é prematura, surge a ponderação: "o resto nós fazemos" e referem-se à boa alimentação, à cura de clima e repouso. Este repouso é ainda supervalorizado e talvez decorra da antiga voga mundial do "esgotamento nervoso" e sua correlata terapêutica: o repouso absoluto de Weir Mitchell e depois, Beard, ainda a recear. Mas, em regra, a laborterapia quando proposta não é refutada, embora mal compreendida quase sempre, pois não é apreendido o trâmite - o como fazer - o porque da indicação especial e o objetivo exato que se visa: quase nunca a cura. É excepcional, mesmo havendo nâvel cultural apreciável, que a família admita seja o parente enfêrmo aproveitado, por exemplo, no trabalho agrícola. A própria família não evita transformar seu doente num inválido total, inumeráveis vêzes. Tivemos assistidos que lutavam por trabalho (tinham aptidão discutível, é certo, mas elaborável), terapéuticamente havia indicação plena (oligofrênicos, esquizofrênicos com defeito, paralíticos gerais pós-malária com remissão social) e jamais conseguiram o beneplácito dos seus. A inexistência de psiquiatras com experiência verdadeira de laborterapia tira ao problema qualquer chance de bem resolvê-lo, aliás.

Mesmo famílias mèdiamente cultas cometem erros graves: aceitar, numa emergência, como real, o que é delirante.

Certa esquizofrênica paranóide dizia-se violada sexualmente à noite e apontava o "perseguidor", que seria, quando ela estava em casa, o cunhado; ninguém acreditava, é claro, mas, no Sanatório, o "perseguidor" apontado (um médico) era objeto de desconfiança de todos os parentes, gerava-se certo mal-estar e a família manifestava-se sôbre o fato, um tanto hesitantemente; o que era avaliado como delírio em casa, o era como realidade no Sanatório.

Ao pai duma psicópata (personalidade psicopática) "necessitada de valorização" e internada, foi pela filha feita a acusação de que havia sido deflorada por um médico; no Sanatório não transpirara nada sôbre a calúnia; imediatamente o pai levou a filha a uma ginecologista, onde outro colega a viu por acaso e soube do motivo da consulta ao conversar com o pai, seu conhecido, na sala de espera; telefonou-nos relatando o que ocorria; esperamos o resultado da consulta e por nossa vez telefonamos à ginecologista; esta contou que, pela segunda vez, a paciente a procurava para saber se fôra deflorada, pois, anos antes, o mesmo ocorrera por suspeitas do pai, que a via sempre a passear com namorados em praias desertas. O perigo era claro: a moça podia ter sido deflorada de fato, fora do Sanatório, nesses passeios de praia deserta, e estar a imputar a um colega a autoria disso; felizmente o exame mostrou-a virgem; não a recebemos mais no Sanatório (o pai nem confiara no hospital, nem nos esclarecera o que ia fazer, as suspeitas, etc); fizemos o resto do tratamento em sua residência.

Uma esquizofrênica internada e posta em insulinoterapia vai à amenorréia, como é preferente acontecer aí; o marido aguardou 2 meses e passou a anunciar claramente suas suspeitas; levou-a, desafiadoramente, a um obstetra, que esclareceu o caso; ficou o mal-estar entre marido e médico, e a doente foi retirada inoportunamente.

O conflito pelos mesmos motivos - acreditar no que diz o delirante - pode causar dificuldades intra-familiares.

Um esquizofrênico toma aversão pela espôsa e acusa-a, desconfia dela e jamais está satisfeito. Os pais dele entram solidariamente em conflito com a nora e acreditam que "foi ela a causadora da doença mental dêle". Isto traz, em conseqüência do agravamento progressivo, a separação do casal, com a retirada do doente para a casa de sua família. Esta justifica-se perante o médico: "ela é mais velha do que êle; sempre suspeitamos que essa paixão dêle por ela acabaria mal; ela não correspondia, não era para êle". Assim, o desajustamento deriva das idéias delirantes do doente, aceitas como reais, válidas, pela família.

Precipitam-se desajustamentos familiares por ocasião da doença mental do parente, sem que esta tenha relação causal com aquêles: separação conjugal, adultério, cisões definitivas das famílias do cônjuge são com a do doente. Tivemos dois casos típicos.

Um era portador de psicose maníaco-depressiva (mania), eterno perdulário, leviano (mesmo nos tempos de "normalidade") pseudologista melífluo, equilibrando-se bem sexualmente e mal no resto com a espôsa. Com a família dela ainda é pior o equilíbrio. A mãe, rica, em permanente prejuízo econômico com éste filho casado, conserva intromissão algo excessiva na vida conjugai do filho. A nora vive afastada. Cada uma tem seus pontos de vista sôbre a doença. Com a doença deixaram absolutamente de entender-se e nasceu grave querela que arruinou as relações entre as famílias dos cônjuges. Pouco a pouco obtivemos o reacêrto, mas de curta duração. A mãe era procurada pelo filho hipertímico que, conforme as oportunidades, decidia-se por ela ou pela espôsa. Esta levava tudo que de mal ocorria à conta da mãe absorvente e deterioradora do filho supermimado.

Mais grave é o caso de uma senhora casada. Era uma personalidade psicopática "necessitada de valorização", que se dizia vítima do marido, aliás, correto, talvez excessivamente ocupado com sua profissão. Moveu tal campanha de difamação ao marido - às vêzes em voz alta diante de estranhos - que não houve remédio senão interná-la à fôrça. No Sanatório, ràpidamente acomodou-se da agitação histérica. Depois do terceiro eletrochoque tomou-lhe mêdo e foi suspenso por já desnecessário. Ia excelente na adaptação sanatorial. Foi passar o fim de semana com o marido. Rapidamente, já na segunda saída, organizou a velha reivindicação, que logo subiu de ponto, revoltou-se contra o internamento à fôrça, o eletrochoque, nossa "cumplicidade" com o marido e, aos poucos, influiu de tal modo que o pai tomou seu partido e organizou-se o desentendimento grave, com a circunstância de trazer ao marido as acusações de impotente, "meneios de pederasta", interesseiro, bajulador, etc, absolutamente descabidas.

Mudam de médico quando não lhes agradam as exigências (corretas) dêste. E desagrada-lhes o que o médico indica, a crítica que êle fêz foi traumática ao amor próprio, aos preconceitos sociais, à discreção. Êsses motivos tanto são conscientes como inconscientes, mas sempre atuam sôbre a família no sentido de buscar outro médico. Embora êste faça a mesma coisa, dirija o tratamento da mesma maneira ou pouco diversa e confirme tudo o que o colega disse (às vêzes com outras palavras), é recebido com satisfação. 0 efeito desagradável ficou "transferido" sôbre o outro, definitiva e inapelàvelmente. Nem sempre é o "savoir faire" do segundo médico o que explica o fenômeno, mas sim o fato de ter sido feita, pelo primeiro médico, a crítica que levanta o primeiro ressentimento, embora lentamente a crítica seja assimilada e aceita.

Certa mãe de doente supermimado, portador de sintomatologia histérica, valeu-se dum psiquiatra que foi obrigado a internar o filho, rapaz de 38 anos. A superproteção materna era escandalosa, provocante, exacerbava o que o filho apresentava. A mãe veio hospitalizar-se com o filho, o que tirava qualquer chance de sucesso terapêutico. O assistente, veladamente, insinuou a necessidade da mãe sair. Esta desconfiou disso e mudou de médico. Êste exigiu às claras o afastamento materno e a eletrochoqueterapia. Em 20 dias tudo era normal. O doente teve alta, voltou à superproteção exasperante e tudo retornou. A progenitura agora negava-se a pagar ao médico - a que fora gratíssima na ocasião da alta em remissão - "porque tudo o que fizera já fôra prescrito por outro médico a quem despedira".

Atitudes familiais "apaixonadas" como essas facilitam o advento de disparates como o seguinte:

Uma jovem foi dada como portadora de típica oligofrenia; a família recebeu mal tal diagnóstico e veio a ouvir pessoas leigas falarem de psicanálise; entusiasmou-se, preferiu o diagnóstico falso de neurose e levou-a a psicanalista de uma grande cidade; por mais de ano prosseguiu êsse tratamento caro e inútil no caso. Voltou para a cidade onde estávamos e só aí a conhecemos: oligofrênica no pragmatismo, aos testes psicométricos, nos rendimentos escolares e sociais, deficitária em qualquer aspecto da contribuição pessoal. Mesmo assim a família manteve certa esperança em nova psicanálise.

Por vêzes os fatos tomam aspecto grotesco, como o acima mencionado e o seguinte:

Um clínico nos enviou um casal desajustado; a espôsa era sua assistida, com cólicas hepáticas e desordens digestivas várias. Percebera o clínico sério desajustamento conjugal e, com razão, admitia conflitos internos e "conversão" somática. O desentendimento tinha fundamentos na aversão da espôsa pelo marido portador de traços acentuados de mesquinhez, humildade excessiva, rituais compulsivos, rigidez e esquisitices no trato íntimo, a par dum ciúme mórbido e às vêzes ultrajante. Os conflitos vinham sendo substituídos por crises dolorosas hipocondríacas subintrantes da espôsa. Propusemos o afastamento provisório dos cônjuges, o que foi feito, cedendo rápida e completamente as cólicas. O marido homisiou-se em sua própria família e dali passou a dizer horrores da esposa, inclusive intri-gando-a com êsses parentes. Procurou-nos e demos-lhe assistência de ordem psicológica, advertindo-o sinceramente dos seus traços de caráter, que a espôsa reputava "indigestos" e os analisamos aberta e progressivamente. Ao mesmo tempo, procedíamos também à análise da espôsa e promovíamos várias reuniões da família tôda em "mesa redonda" - incluindo a sogra do marido, "pivot", segundo êle, de tôda sua desdita. Ouvimos a todos, repetidamente, juntos e a sós, e formamos nossa convicção de que a correção psicológica de ambos e o afastamento da família da sogra eram imperativos. Mas a espôsa permanecia irredutível e queria agora o desquite. O marido aceitou a proposta e tomou advogado. Conosco mostrava-se categòricamente resolvido a libertar-se da espôsa. Certo dia em que ela, acompanhada de parente, como sempre, ia a sair do nosso consultório, êle entrou como por causalidade, e pediu entrevista conosco e a espôsa. Nela desceu às propostas mais humildes, comovidas e inadequadas, repelido sempre, cortês mas firmemente, pela espôsa, que insistia no desquite, que sempre desejara sem dizê-lo. A atitude do marido era de tal modo desajeitada, humilhante e contraproducente, que nos contristava testemunhá-la, ainda que forcejássemos por reajustá-los (estavam separados já havia um mês). Todavia, combinaram o desquite, ao fim da entrevista. Fizemos-lhe ver, a sós com êle, a "maladresse" de sua conduta, inapropriada aos fins colimados. Poucos dias depois, o marido nos enviava um bilhete pedindo-nos a conta médica, e pagou-a, terminando ex-abrupto nossa tarefa. Passou a assediar a espôsa, que o repudiava cada vez mais e afinal conseguiu, à custa de assiduidade, a volta à casa. Eliminára-nos por estarmos sendo uma testemunha de suas humilhações voluntárias, atitude que tentávamos corrigir encontrando enorme dificuldade. Preferia mesmo a situação de mal tolerado, mal aceito, consciente de todas as "alergias" da espôsa por êle e sem querer liberar-se nem dos seus incontestáveis defeitos graves, nem da esposa que o rejeitava. O médico, que de tudo sabia e era por isso mal tolerado, foi julgado por êle como o empecilho à sua "adaptação" a tal situação. Voltaram a ela com todos os padecimentos somáticos e psíquicos.

Por preconceito social ou orgulho de estirpe não internam seu doente para que não se saiba que, na família, há um doente mental, ou, ao contrário, internam-no e "arquivam-no", desligando-se dêle com o mesmo objetivo. Tivemos doentes internados por 4 ou 5 anos sem que jamais conhecêssemos sua família. Se a internação se faz indispensável (agitação, agressividade), ela é executada noutra cidade, geralmente grande centro urbano. 0 próprio fato de ter de chamar um médico é, para tal família, um problema. Já a escolha do clínico se faz mais pelo critério da discreção que da eficiência. 0 doente vem ao exame "policiado" pelos mais vigilantes (às vêzes pelos mais anônimos) membros da família; não se fica conhecendo os chefes. É evidente que as informações só visam um fim: cumprir o rito, a tarefa, o dever da consulta; mas, ao mesmo tempo, afastar do médico a idéia de doença hereditária. É um mistério o que fazem depois. Sucedem-se providências autônomas da família e o doente desaparece. Conhecemos famílias que apresentam seu doente psicótico na vida social e disfarçam qualquer ato aberrante por êle praticado, sem, em hipótese alguma, concordarem que há uma doença mental. Outras, quando internam o alienado, desligam-se dele definitivamente. Um esquizofrênico, oficial do Exército, estagnou 5 ou 6 anos em hospital militar sem que ninguém o viesse ver (recebiam-lhe os vencimentos noutra cidade). De súbito chegaram três ou quatro parentes para buscar o doente e levá-lo para "sua casa" no Interior doutro Estado vizinho: é que fôra ganha uma questão judicial (ou herança) e eram necessários certos formalismos em sua presença. Três dias depois retornavam com o homem e voltou o silêncio de anos.

Há também o caso dum oligofrênico (aliás, não hereditário, exógeno) internado há 8 anos em Sanatório. Nunca foi, nesse lapso de tempo, visitado pelos pais, socialmente bem colocados; mas as mensalidades são pagas pontualmente.

Há ainda muitíssimas maneiras desencontradas da família conduzir-se mal. Por exemplo: portar-se com o doente como se êle fôsse são. Impacientam-se com o oligofrênico, "que não quer aprender a ter modos", interpretam as frias e vazias frases do esquizofrênico como demonstrações inequívocas de afeto. Por exemplo: ao ver um colorido pano de mesa que lhe foi mostrado, a esquizofrênica crônica respondeu: "bonito". Apesar de caro, o pano foi imediatamente comprado; mas os parentes jamais tentaram a sério, apesar de advertidos, a laborterapia efetivamente útil. Supõem que "faz-lhe muita falta" esta ou aquela custosa frioleira e se decepcionam quando a prática lhes nega isso. Outro êrro consiste sobretudo na família não organizar a "nova ordem" de providências cabíveis para o estado crônico do parente. Procuram tratamentos médicos sempre químicos ou fisioterápicos e abafam com sua dedicação exagerada e asfixiante qualquer tentativa médica de laborterapia, por exemplo: nas casas de saúde intervém francamente na rotina administrativa; opõem-se a medidas de emergência (isolamento em quartos para agitados) ; interrompem de contínuo qualquer nova iniciativa que é tomada; desconfiam que, na sua ausência, o doente seja maltratado ou, pelo menos, descuidado; fazem inquéritos subrepticios; corrompem com propinas o pessoal de serviço; organizam, com parentes de outros internados no mesmo instituto, "sociedades de maledicência", etc.

Se o doente não é internado, as coisas são muito piores. Tivemos doentes compulsivos cujos parentes, por in junção do neurótico, entravam a cumprir o ritual, a repetir respostas, a reafirmar dez e doze vêzes o que já haviam afirmado outras tantas vêzes. Noutros casos, os parentes já haviam aprendido tão bem a localização corporal das "agonias", dos "vexames", das "dormências", paresias e anestesias, etc., que, no curso da consulta; corrigiam o doente quanto à sede que êle apontava. Enfim, a vida daquela família gravitava inteiramente na dependência da sintomatologia do doente, mental ou neurótico, verdadeiro sol do sistema planetário que era a família.

Evidentemente, não há terapêutica completa ou mesmo eficiente, sem correção do ambiente familial. Nestes casos, o problema da espécie de psicoterapia (psicanálise, sugestão, persuasão, laborterapia, etc.) não chega a ser levantado. Qualquer um deve falhar com tal "entourage" malsã. Também vimos o contrário: o esmagamento psicológico do doente (neurótico, oligofrênico, personalidade psicopática, deprimido) pela família. Aos poucos, esta se foi convencendo que o doente não servia para nada e todos foram prescindindo dêle lentamente, até a exclusão funcional completa. Só ralhos e reprimendas, indiferença, azedume, inibições e preterições, significando que o doente não existe como pessoa psíquica. Suas opiniões são ràpidamente postas de lado desdenhosamente, ou nem são ouvidas, ou faz-se a "toilette" delas, as opiniões são "corrigidas" e interpretadas de modo a serem "aceitáveis" na presença de estranhos. Uma deprimida evolutiva, antiga dona de casa, era agora dada como completamente inútil: noras, filhas, genros, todos a tratavam como imprestável para o mínimo serviço doméstico; não tinha vontade própria, não lhe cabia iniciativa alguma desde antes da depressão; ela era estimada mas não acreditada como pessoa válida; ficara definida como doente e inútil.

Por sentimentalidade piegas ou mal concebida, chega-se a casos dêstes:

Um doutorando em medicina aparece com uma esquizofrenia; tratado por várias vêzes, as melhoras não duram 15 dias; ao têrmo do ano, já nas vésperas da colação de grau (pràticamente, não há reprovação no 6º ano), a situação do doente era de esquizofrênico manifesto. Procurados pela família, advertímo-la de que êle não se devia diplomar. Não só era incapaz profissionalmente, como podia ser nocivo aos outros; além disso, o exercício médico seria ilegal. A família não nos atendeu. Procuramos autoridades do ensino médico, que nada providenciaram. O esquizofrênico diplomou-se.

Com outro doutorando em medicina ocorreu o mesmo e êste chegou a exeicer a clínica em cidade do extremo Norte por pouco tempo. Fêz tais desatinos nessa localidade que foi prêso, retornou à cidade de origem e, recolhido a hospital público, vai demenciando progressivamente.

Um último caso de médico: é portador de esquizofrenia paranóide; tratado em 1939 pelo método de Sakel, teve remissão com "defeito"; conservou delírio residual genealógico - dizia-se filho de alta personalidade política, relatava haver percebido conversa com seu "irmão F., dava mostras de tê-lo como do mesmo sangue, etc. Mesmo com êste delírio residual e rebaixamento mental, em 1942 clinicava numa cidade do Triângulo Mineiro, vivendo isolado. A família, composta de, pelo menos, duas mulheres diplomadas, consentia nisso. Espantaram-no do Norte para Minas e julgavam tudo normal.

Vem à consulta por distimias ansiosas e alcoolismo, um estudante de escola superior; foi reprovado tantas vêzes na série tôda que, aos 33 anos, ainda cursa o 3º ano universitário, que repete pela quarta vez. É portador de oligofrenia e filho de reputado técnico diplomado. A êste advertimos que de nada valerá ao filho oligofrênico um diploma (que talvez não obtenha, tão demorado vai) de engenheiro, aliás, perigoso em suas mãos. O pai pouco vacilou, julgando que se deve dar chance à formatura do filho, como um "pis aller". Não pudemos prosseguir o tratamento com semelhante ônus: a desorientação fundamental da família.

E' quase inacreditável, mas ocorrem casos assim:

Vem à consulta psiquiátrica um casal; a consulente é espôsa e queixa-se de síndrome neurótica largamente estruturada por disestesias, pesadelos e ansiedade. Já vem de fazer uso de eletrochoque (5 ou 6) com melhoras do que era mais molesto: uma crise de agitação em estado crepuscular, que não nos foi esclarecida pelo casal. A síndrome residual é referida minuciosamente com o luxo de detalhes habitual. Já ao fim, quando os consulentes' davam como terminada a sessão, perguntamos se houvera algum conflito recente, alguma causa sabida, consciente, que pudesse ter papel no episódio crepuscular. A mêdo, a doente revela que sim, reticentemente. Ao interrogatório reiniciado com minudência, paciência, perseveração, surge a explicação: o estado crepuscular ocorreu quando a paciente soube que a moça a quem abrigava em casa como amiga - para quem costurava (por exigência do marido) e para quem sempre adotara atitude càlidamente amiga e protetora - era amante do marido. A doente defendera a amiga das acusações iniciais, mas aos poucos percebera a verdade, ü psiquiatra que lhe fizera os eletrochoques de nada sabia. Talvez suspeitasse de algo e não quisesse, por escrúpulos descabidos, informar-se mais a fundo. Durante tôda a consulta, a atitude do marido variava do desdém silencioso mas expressivo ao sorriso agastado, ou afirmava: "isso não vale nada, ela já superara tudo isso; hoje trata-se doutra coisa". Não queria que a causa fôsse o seu adultério. A doente, alentada pela confidência, disse que voltaria a nova consulta. O marido concordou contrafeito. Não voltaram.

Durante meses a família não tomou providências quanto ao chefe, que apresenta um delírio de ciúmes, prega janelas, acusa a espôsa de adultério (irreal), descompõe ultrajantemente as filhas, ameaça-as de morte, etc, mas trabalha regularmente. Até aqui não ousaram levá-lo a um psiquiatra, embora o inquiram indiretamente. Foi-lhe dito o perigo, mas nenhuma providência surgiu.

Uma doente portadora de neurose depressivo-conipulsiva na involução, após o fracasso de tôdas as terapêuticas psiquiátricas empreendidas, é leucotomizada. Antes da operação, andava em permanente agitação ansiosa e tornara-se refratária ao asseio, vivendo para suas compulsões. Após a leucotomia, variou completamente: tornou-se agressiva, pornofônica, impaciente, acusava as filhas que iam sair a passeio, de "irem pegar homem" ao marido, de "frouxo". Torna-se irônica, ofensiva e pueril; compra quanta bugiganga lhe passa pela porta, insulta as empregadas, etc. Cessaram a angústia e as compulsões. Com todo êste cortêjo de sintomas, que tornava absolutamente intolerável a vida no lar, o marido não a interna no hospital público, por escrúpulos. . Lentamente se desagrega o clima moral da casa; as filhas moças têm dificuldades no trato e no convívio sociais devido às inconveniências maternas. Noivados se rompem. O marido foi advertido da absoluta indicação da internação; interditou-a, mas a doente continua em sua casa.

O caso seguinte ilustra o que pode resultar duma posição débil da espôsa e da intempestiva mudança de médico. Um homem apresenta-se, aos 50 anos aproximadamente, com epilepsia focal, do clássico tipo bravais-jacksoniano. O liquor mostrou-se positivo para lues. Com terapêutica de ataque antiluética enérgicamente conduzida, cessa de todo a hemiparesia e atenuam-se quase completamente, na intensidade e na freqüência, as convulsões. Era, pois, provável que se tratasse duma goma sifilítica que cicatrizara. O doente pôde retornar à sua profissão de motorista. Trabalhou durante muitos meses e preocupou-se por libertar-se do residuo insignificante: breves e raros abalos mioclônicos na mão e antebraço direitos. Procurou neurocirurgião e éste propôs a extirpação da cicatriz cerebral. A esposa do doente pediu-nos a opinião, que foi: tão diminuta era a sintomatologia que não se justificava a cirurgia neurológica, então incipiente na localidade em que estávamos. A mulher compreendeu, participou calorosamente do que dissemos, mas não soube fazê-lo valer. O doente operou-se e tornou-se hemiplégico, com distúrbios inclusive da palavra, ou seja, inválido total.

Vem-nos à consulta um casal. A espôsa enuncia queixas de depressão, desordens vagas e inespecíficas da órbita da sensibilidade geral. Entre outros lamentos, denota ressentimentos contra as "malcriações" duma filha adotiva que o casal cria desde idade muito tenra, que não tem mais de 17 anos e que tem o casal como os pais. O interrogatório mais ou menos minucioso termina por aceitar uma depressão endotímica, em normal (somos dos que pensam que depressões autônomas e leves podem existir em normais; se pertencem ou não longìnquamente ao círculo maniaco-depressivo, é duvidoso e pensamos negativamente). O casal - de protestantes convictos - dizia-se ajustado. Com 6 choques as melhoras foram acentuadas. O marido, que viajara para o Interior, regressou e a espôsa piorou, o que nos surpreendeu. Novamente queixou-se das malcriações da filha adotiva, que viajara com o marido e retornara com êle. Sôbre isso abordamos a moça. Esta por sua Vez disse que a mãe adotiva era mal humorada, castigadora, impertinente. Fora disso calava-se, nada mais havia. O marido consultou-nos ainda sôbre uma ciática e foram todos para o Interior. Três meses depois a doente retorna e relata que o marido era amante da filha adotiva e já tinham aproximação desde a época da consulta. Tivera mêdo de dizer e enfrentara o eletrochoque que, aliás, a melhorara. Quando o marido retornou do Interior com a jovem, tal fato novamente a molestara e daí a piora. Finalmente, o marido perdera a cerimônia, abandonara-a e ainda tentava ocultar o caso da filha adotiva, mas todos na terra o conheciam. Bem se vê que agora nada mais havia a fazer; na época em que o marido ainda se dispunha a dar assistência médica à espôsa, se o fato fôsse revelado, como era correto, talvez se conseguisse algo melhor do que nada.

São comuns ocorrências como esta:

Esquizofrênico de 22 anos; logo que adoece é levado peio pai a psiquiatra, que lhe prescreve o eletrochoque; com três aplicações melhora grandemente, ü pai espionou e viu o transcurso da última aplicação; tomou-lhe tal horror que não aceitou mais o tratamento para o filho. Sobreveio piora gradativa. Só 8 anos depois o pai traz novamente o filho, já em estado demencial. Mesmo empreendido na época de início, por certo o tratamento, por completo que fôsse, não impediria a demência ou, pelo menos, a incurabilidade. Essa é nossa convicção: as terapêuticas só agem sôbre os casos intrínsecamente benéficos, que vão talvez curar por si, espontâneamente. Mas é certo que muitos pais em emergências iguais a esta e por motivos idênticos, anulam as chances de remissão, por pequenas que sejam.

Veja-se como se reduz, tìpicamente, a possibilidade psicoterapêutica do médico quando falta qualquer possibilidade psicológica à família, embora não a falte de todo ao doente:

Uma jovem de 28 anos, econômicamente bem dotada, nos é enviada pela ginecologista; vive deprimida, inativa, incapaz de qualquer produção que não seja a arrumação e ordenação de pequenas tarefas domésticas; já trabalhou no comércio há tempos, mas diz-se incapaz agora. A família se compõe duma mãe religiosa fervorosa, quase oligofrênica, e do pai, a quem não conhecemos mas que é dado como introvertido e totalmente indiferente ao que se passa em casa. Nunca nos procurou, embora lhe tratássemos a filha havia mais de 8 meses e embora fôsse êle quem pagasse os honorários que, acumulados, deveriam causar reparo. Há ainda uma irmã bem mais jovem, tímida, mas normal. A doente é inibida cm excesso. Há sessões de psicoterapia que são gastas inteiramente em respostas "não sei, não digo, não quero pensar nisso, não me pergunte isso, já sei demais sôbre isso", etc., e não se avança no conhecimento do caso. Pela ginecologista e, afinal, pela doente, soubemos: tivera relações 8 anos atrás com um rapaz que não chegou a produzir-lhe defloramento completo, o que foi verificado ginecológicamente. Todavia, muitas práticas "parassexuais". Uma rusga e o rapaz afastou-se, foi para outra cidade onde amasiou-se com outra mulher, resultando daí um filho e estabilização maior do amásio, embora êle, interpelado por ela, se diga stmpre desajustado. Nossa paciente há 8 anos espera que êle volte. Não se anima a prosseguir sua vida, acha que "só com êle é possível casar"; imobilizou-se nesse impasse e organizou-se a "neurose de espera". Anima-se quando sabe algo que balança a situação de amásio do rapaz e desanima quando êle - que a vê muito de raro quando viaja até a cidade dela - lhe fala cheio de circunloquios, lugares comuns, promessas-chavões, mentiras, etc. A família da doente dá-se bem com o deflorador e ignora que êle o é. Nossa paciente é multiprendada e tem curso secundário. Procuramos resolver seu caso com objetividade e para isso chamamos o ex-noivo, que nos disse esperar "um dia poder resolver essa situação" de 8 anos. Não desfazia os laços com a amásia, apesar de dar-se mal com ela, porque teme "que ela lhe assassine o filho em caso de abandono". Não toma compromissos com a doente e dá-lhe liberdade para resolver a vida como quiser: casar-se, libertar-se dêle por qualquer forma. Evidentemente, nada a esperar dêle e nada a esperar da família, que nem sequer sabe do defloramento, acrescendo que o pai também não sabe que a filha está em tratamento de ordem psicológica. Como prévio "amaciamento", para suprimir o fundo depressivo e inibidor forte, fizemos 5 eletrochoques, com sucesso quanto a tal objetivo restrito. Dados os embaraços das resistências e reticências à análise psicológica comum, empreendemos a narcoanálise, visando ainda o efeito sugestivo que às vêzes ela apresenta, como decorrente do medicamento. Isto teve escasso sucesso e as resistências continuavam, mesmo sob narcose (o que não é raro). Apresentamos a doente à diretora religiosa duma organização de trabalho de costuras e ensino primário, mas a laborterapia foi relutada como "desgostante" pela doente, após 4 ou 5 visitas. Aliás, tivera boas chances e agradara às alunas. A análise era penosa, lenta demais: a paciente quase sempre consciente e obstinadamente opunha-se a ela, a responder e esclarecer; só de raro em raro colaborava nos relatos com razoável explicitação. Alvi-tramos que a doente se transferisse de residência, variando o clima psicológico de franco convite à inércia que lá imperava. Foi reputado impossível. A amorfía psicológica da família não permite nenhuma conjugação de esforços coordenados, imperativos, sobre a doente, que se regula como quer com suas "manobras autoplásticas" psíquicas, ora propiciando-se a alimentar a esperança indefinida no deflorador, ora "racionalizando" a infidelidade do "noivo", ora excruciando-se com o sentimento de culpa do defloramento, com a vivência de ser inútil e incapaz, etc, tudo isso consciente. Renunciamos a revelar os fatos -- defloramento inclusive - à família, o que deveria trazer certas modificações, mas seguramente para pior. Empreendeu-se agora, afinal, o "hipnotismo fracionado" com análise mental nos moldes de Kietschner. Há melhoras, mas não decisivas.

Como último e curioso êrro a assinalar, registramos um que parte do próprio doente e que se dá depois que êle remite de sua doença: o horror à instituição (sem falar no eletrochoque, cuja repulsa às vêzes leva o doente a evitar qualquer elo que se lhe associe) e aos médicos assistentes que o trataram. Observamos que o fato em geral se passa com pacientes cuja doença não foi grave e, em sua maioria, neuróticos e deprimidos sujeitos à recidiva. Pouco a pouco desenvolve-se uma invencível aversão a tudo o que lembra o "haver precisado do psiquiatra", auxílio que julgam indelével labeu em suas vidas. Vários doentes nossos, curados, nem sequer nos saudam na rua. Os psicanalistas diriam: "transferência negativa". Uma ex-doente, que continua em excelentes relações conosco, dizia em tom veemente, em conversa na sala de espera de nosso consultório com as clientes que aguardavam sua hora, que "o nervoso se deve curar sòzinho, sem médico; que o principal é o esfôrço pessoal". Ela tem completa razão e o lugar onde disse era apropriado; o que observamos é que tal figuração auto-afirmadora não se coadunava com o pragmatismo da gratidão.

Faculdade de Medicina - Salvador - Bahia.

  • O doente mental e sua família. Dificuldades no curso da assistência ao doente mental

    Nelson Pires
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Abr 2014
    • Data do Fascículo
      Mar 1954
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