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Sôbre a classificação das doenças mentais

COMENTÁRIOS CIENTÍFICOS

Psiquiatra do Hospital de Juqueri. Médico adido da Clínica Neurológica da Fac. Med. da Univ. de São Paulo

A necessidade da sistematização do conhecimento humano sempre foi necessária. Ela não constitui imperativo científico, e sim mera necessidade didática e comparativa. Muita vez, pela valorização excessiva destas últimas é, por força, deformada a verdade científica, pelo estabelecimento de limitações que geram conceitos falsos na apreciação de fenômenos globais. A sistematização é, também, transitória. Ela varia com os conhecimentos e conceitos duma época; daí sua relativa utilidade e a necessidade de ser revista periodicamente de acordo com a finalidade a que se destina.

Em Psiquiatria predominou também, no século passado, uma classificação clínica. Os delírios sistematizados eram incluídos (Lasègue, Foville, Griesinger, Gerente, Morel, Régis, Séglas) na hipocondria, como fase que se seguia ao primeiro período de transtornos afetivos, ou não (Esquirol, Pinei, Magnan e depois Griesinger)5. Os estudos clínicos, as subtilezas pessoais de capacidade de observação e de descrição sindrômica, provocaram sérias discussões sobre entidades nosográficas puramente abstratas, perdendo-se totalmente as ligações profundas existentes entre elas. Assim é que a monomania depressiva ou lipemania (Esquirol), que incluía o delírio persecutório e outros delírios, correspondia à melancolia depressiva (Pinei) e à tristemania (Rusch), à melancolia forma expansiva (Pinei), que incluía tanto o delírio de grandeza idiopático, como o sintomático da paralisia geral. Se incluirmos a essas formas a idiotia e demência (Pinei), a estupidez (Georget) e a paralisia geral (Calmeil), teremos reconstituído a classificação da época.

Está isento de discussão o valor da antiga classificação brasileira. Na sua elaboração predominou ainda o critério clínico e ela foi, pela sua clareza, de valor inestimável na sistematização do conhecimento clínico das psicoses na época em que foi criada. Entretanto, segundo opinião unânime entre os psiquiatras atuais, ela já padece de defeitos, e seus 11 grupos são insuficientes4.

Num esfôrço para contornar tal situação, e ainda fazendo prevalecer o critério clínico, foram feitos novos agrupamentos de psicoses, e seus criadores1 acreditam vir a nova sistemática de encontro às necessidades atuais. Não cremos que assim seja.

Sob o ponto de vista prático, é muito útil a classificação adotada pelo Comitê de Estatísticas e aprovada pelo Conselho da Associação Psiquiátrica Americana7, na qual ainda predomina o critério clínico exclusivo.

Mas, a finalidade da Psiquiatria não é só a obtenção e catalogação de dados. A Medicina e, em particular, a Psiquiatria, tem também como finalidade a profilaxia e a prevenção eugênica dos distúrbios mentais9. Por isso que uma sistematizaçao do conhecimento atual dentro dessas normas se impõe, sem jamais perder de vista a consideração do organismo humano como uma "Gestalt" viva.

A genética já fornece elementos de valor no estudo dos caracteres hereditários. Se bem que tenha sido entrevisto, em tratados de Psiquiatria 2,3,5, o valor do elemento heredológico na consideração duma doença mental, este elemento foi até agora mal compreendido, mal interpretado e mal aplicado. Não basta saber se, na família dum paciente, existem casos de doença mental; necessitamos da investigação apurada de quais elementos psicóticos hereditários predominam na constituição da personalidade global dum paciente. Por isso é que certas "esquizofrenias de formas atípicas" e "neuroses esquizomorfas" não são senão puras elocubrações do espírito, na ânsia de cognominar aquilo que não pode entender. Muitas dessas "formas atípicas" não são senão formas em que o estudo heredológico bem orientado forneceria claramente todos os "elementos atípicos" da moléstia fundamental evidenciável pelo método de Rorschach. Exemplo frisante é a psicose mista esquizofrênico-epiléptica, na qual a desagregação mental de tipo esquizofrênico se associa à liberação de impulsos instintivos, ambos herdados, quer se admita a diluição dos fatores ou a polimeria. Certas esquizofrenias cujo início se faz com sintomatologia neurótica ou histérica6, devem seu início a fatores hereditários predisponentes. Ainda, dentro dum quadro de desagregação mental pode-se perceber um mecanismo epileptóide nos distúrbios elaborativos8.

Jamais provocou discussões no campo psiquiátrico a idéia de que o fator hereditário por si só pode constituir a causa duma psicopatia: é o caso das oligofrenias. Êsse fator vai-se diluindo e cedendo lugar ao fator ambiente, à medida que dêle se distancia. E quanto mais longe se está da hereditariedade como causa mórbida única, mais perto nos encontramos dos fatôres ambientais, ocasionais. Isso equivale a dizer que, quanto menos deve uma psicose sua construção à constituição, mais ela é abordável e influenciável pelos meios terapêuticos. Assim9:


A curva do contingente hereditário não atinge o ponto 0: esse seria o ideal. Mesmo na paralisia geral progressiva, cujo agente é conhecido, não podemos negar sua influência no aparecimento das várias formas.

Essa nova classificação tem a vantagem de recolher, na rubrica 19, grupo IV, as várias formas de psicoses atípicas degenerativas de Kleist, que são formas essencialmente ligadas à constituição. Ela ensina que devemos pesquisar em todos os pacientes um quantum heredológico, não só para sabermos que método de tratamento escolher - se os de ação profunda sobre os centros vegetativos, se os de ação superficial sobre o córtex cerebral - mas também para tirarmos conclusões sobre o prognóstico. Isso é eminentemente prático, sob base científica segura e prevê medidas higiênicas e eugênicas.

Rua Araujo, 165 - São Paulo.

  • 1. Botelho, A. e Lopes, C. - Classificação das doenças mentais, aprovada pelo V Congresso Brasileiro de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal. Arq. Assist, a Psicop. do Estado de São Paulo, 14-15:57-67 (janeiro-dezembro) 1948-1949.
  • 2. Bumke, O. - Nuevo Tratado de Enfermedades Mentales. Trad, castelhana da 5.ª edição alemã por Ramón Sarró, Ed. F. Seix, Barcelona, 1946.
  • 3. Lange, J. e Bostroem, A. - Psiquiatria. Trad, castelhana da 4.ª edição alemã por Ramón Sarró, Ed. Miguel Servet, Barcelona, 1942.
  • 4. Leme Lopes, J. - Subsídio à classificação das doenças mentais. Arq. Assist, a Psicop. do Estado de São Paulo, 14-15:69-78 (janeiro-dezembro) 1948-1949.
  • 5. Matos, J. de - A Paranoia. Ed. Tavares Cardoso e Irmão, Lisboa, 1898.
  • 6. Polatin, P. e Hoch, P. - Diagnostic evaluation of early schizophrenia. J. Nerv. a. Ment. Dis., 105:221-230 (março) 1947.
  • 7. Sadler, W. S. - Modern Psychiatry. C. V. Mosby Co., St. Louis, 1945.
  • 8. Silveira, A. - O dinamismo epileptóide em alguns casos de elaboração intelectual. Comunicação ao Centro de Estudos Franco da Rocha em 28-VI-1950 (não publicada).
  • 9. Silveira, A. - O aspecto heredológico na classificação das doenças mentais. Arq. Assist, a Psicop. do Estado de São Paulo, 14-15:79-81 (janeiro-dezembro) 1948-1949.
  • Sôbre a classificação das doenças mentais

    Ibrahim Mathias
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 1950
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