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Dificuldade no diagnóstico diferencial entre cisticercose encefálica e neurolues

Cysticercosis cerebri mistaken for cerebral syphilis

Dificuldade no diagnóstico diferencial entre cisticercose encefálica e neurolues

Cysticercosis cerebri mistaken for cerebral syphilis

J. Baptista dos Reis; Antonio Bei; Harry B. Diniz

Assistentes do Serviço de Neurologia da Escola Paulista de Medicina (Prof. Paulino W. Longo)

RESUMO E CONCLUSÕES

Os autores apresentam dois casos de pacientes portadores de cisticercose encefálica que, inicialmente, foram tratados como neuroluéticos. No caso 1 trata-se de um paciente com 35 anos de idade que desde os 12 anos sofria de crises convulsivas. Devido a alterações verificadas no líqüido cefalorraqueano, fôra anteriormente submetido a tratamento antiluético, inclusive malarioterapia. Apesar dessa terapêutica, a moléstia evoluiu progressivamente, apresentando quadro psiquiátrico e neurológico de lobo frontal, e síndrome de hipertensão intracraniana.

O caso 2 diz respeito a um paciente com 32 anos de idade, que foi acometido de um icto com subseqüente afasia de expressão transitória e hemiparesia, tendo sido malarizado por alterações verificadas no líquido cefalorraqueano. Essa terapêutica não interferiu no curso progressivo da moléstia. Posteriormente, o quadro clínico evoluiu, apresentando o paciente um quadro de hipertensão intracraniana e distúrbios da visão por atrofia óptica secundária.

Os autores, baseados na evolução clínica indiferente à terapêutica antiluética e, principalmente, nos exames do líquido cefalorraqueano, orientaram o diagnóstico para a cisticercose encefálica e chegaram às seguintes conclusões: 1 - Existe realmente o problema da dificuldade no diagnóstico diferencial entre a neurolues e a cisticercose encefálica. 2 - Nos casos em que houver dúvida deverão ser feitas as provas que permitem o diagnóstico diferencial. 3 - Os elementos que mais orientam o diagnóstico no sentido da cisticercose encefálica são: a) exame do líquido cefalorraqueano (hipercitose com presença de eosinófilos, discreto aumento da taxa de proteínas, positividade da reação de fixação de complementos para cisticercose e negatividade das reações específicas para lues); b) evolução clínica progressiva, indiferente à terapêutica antiluética. c) reações negativas para a lues no sangue, d) radiografia do crânio.

SUMMARY AND CONCLUSIONS

This paper deals with two cases of patients suffering from cerebral cysticercosis, who were previously being treated as neuroluetic. The first case was of a patient aged 35 who suffered from epileptic seizures since the age of 12. Due to changes of the cerebrospinal fluid, he was submitted to an antiluetic treatment and also to malaria therapy. In spite of the antisyphilitic treatment the diseasse went slowly on, bearing a psychiatric and neurological syndrome of the frontal lobe and also an intracranial pressure syndrome. The second case was a patient 32 years old, who had an ictus with a subsequent and transitorial aphasia and hemiplegia. The patient was submitted to malaria therapy in view of the cerebrospinal fluid changes. This treatment did not influence the course of the disease. Later the patient showed a cranial pressure syndrome and ocular troubles secondary to an optical atrophy.

The authors, in accordance with the knowledges achieved on the spinal fluid tests, have made the cerebral cysticercosis diagnosis and reached to the following conclusions: 1 - There is a definite difficulty in the differential diagnosis between cerebral cysticercosis and neurosyphilis. 2 - Should any doubt come up, tests should be made with differential diagnosis purposes. 3 - The elements which may help the diagnosis as to cerebral cysticercosis are: a) a cerebrospinal fluid test (pleocytosis with eosinophils, slight increase in protein content chiefly the globulin, a positive cysticercus complement-fixation test and blood tests negative for syphilis); b) no improvement following treatment; c) blood tests negative for syphilis; d) skull X ray.

O diagnóstico diferencial entre a cisticercose encefálica e a neurolues torna-se por vêzes difícil, principalmente naqueles casos em que o quadro sintomatológico é pobre e pouco característico, nos quais a decisão deve basear-se no exame do líquido cefalorraqueano e na evolução clínica. Essa dificuldade na diferenciação diagnóstica tem levado especialistas experimentados a assumir uma atitude de reserva diante de um caso duvidoso e na maioria das vêzes sòmente a evolução progressiva da moléstia, a ineficiência absoluta da terapêutica antiluética e, principalmente, os dados de laboratório permitem elucidar o problema.

Não são tão raros os casos nos quais o diagnóstico se orienta para a neurossífilis e, posteriormente, a evolução e novos exames de liquor vêm demonstrar tratar-se de cisticercose. Não é êste um problema atual, pois alguns autores a êle já se referiram.

Tretiakoff e Pacheco e Silva1 1 . Tretiakoff, C. e Pacheco e Silva, A. C. - Contribuição para o estudo da cisticercose cerebral e em particular das lesões tóxicas à distância nessa infecção. Mem. Hosp. Juqueri (S. Paulo) 1: 37-66, 1924. já ressaltaram a questão em 1924: o paciente do caso 4 que êsses autores apresentaram esteve por dois anos internado no Hospital de Juqueri com diagnóstico de paralisia geral progressiva e sòmente o exame anátomo-patológico mostrou tratar-se de cisticercose cerebral. Kufs, citado por Tretiakoff e Pacheco e Silva, relatou a observação de um caso tratado como neurolues, no qual a necrópsia revelou tratar-se de cisticercose encefálica. Moniz, Loff e Pacheco2 2 . Moniz, E., Loff, R., Pacheco, L. - Sur le diagnostic de la cysticercose cérebrale (à propos de deux cas). L'Encéphale, 27: 42-52 (janeiro) 1932. e Monteiro Salles3 3 . Monteiro Salles, F. J. - Cisticercose cerebral. Tese de doutoramento. Fac. Med. Univ. São Paulo, 1924. , focalizando êste problema, acreditaram na possibilidade de concomitância dos dois processos num mesmo caso. Êste ponto de vista é combatido por Tretiakoff e Pacheco e Silva, Pinheiro e Mello4 4 . Pinheiro, J. e Mello, A. R. - Considerações sôbre a cisticercose cerebral. Arch. Brasil, de Med. (Rio de Janeiro), 31: 192-212 (dezembro) 1941. , e Pupo e col.5 5 . Pupo, P. P., Cardoso, W., Reis, J. B. e Pereira da Silva, C. - Sobre a cisticercose encefálica. Estudo clínico, anátomo-patológico, radiológico e do líquido cefalorraqueano. Arq. Assist. Psicop. do Estado de São Paulo, 10-11: 3-123, 1945-1946. .

Interessante é o caso publicado por Neumann6 6 . Neumann, A. M. - Cysticercus cellulosae of the brain. Report of a case. J. Neuropathol. a. Exper. Neurol., 2: 197-202 (abril) 1943. , de um paciente de 27 anos de idade e que, aos 26, apresentou crises convulsivas tipo grande mal, seguidas de distúrbios mentais e disartria, sinais êsses que lembravam a paralisia geral progressiva. Um primeiro exame do liquor nada revelou, porém um segundo, efetuado dois meses depois, mostrou um líquido límpido, com floculação do benjoim coloidal nas primeira e segunda zonas, hipercitose, reações das globulinas levemente positivas e reação de Kahn negativa. Os exames sorológicos para sífilis sempre foram negativos, exceto em duas ocasiões nas quais o resultado foi duvidoso. Como havia passado venéreo-sifilítico, foi instituída a terapêutica antiluética. O processo mórbido progrediu, sendo então aplicada a malarioterapia, tendo o paciente sofrido cêrca de 10 acessos, sem. apresentar melhora alguma. Permaneceu hospitalizado por 8 anos, sendo que durante êsse tempo foram feitos vários exames de liquor que, de maneira geral, concordavam com o segundo. O quadro clínico foi-se agravando, tornando-se mais freqüentes as crises epilépticas, enquanto se exacerbava a confusão mental e pouco a pouco diminuía a acuidade visual. O paciente veio a falecer após alguns anos. A necrópsia demonstrou tratar-se de cisticercose encefálica.

Pupo e col., no capítulo em que estudaram as alterações do LCR, resumem o problema nos seguintes termos: "Todos os que têm alguma experiência em liquor sabem que a síndrome liquórica da cisticercose cerebral aproxima-se muito daquela observada em casos de neurolues. Realmente, em ambas encontra-se êste quadro inflamatório de tipo crônico, com características especiais. Entretanto, a diferenciação se faz pela reação de Wassermann e pelas reações de floculação para a lues, que são positivas num caso e negativas noutro. A hipercitose da neurolues é preferencialmente linfoplasmocitária, sendo raros os casos com presença de eosinófilos. Na cisticercose cerebral freqüentemente a reação de fixação de complemento para cisticercose é positiva e a reação de Wassermann é negativa. Devemos, entretanto, relembrar que nos neuroluéticos a reação para cisticercose pode ser positiva inespecificamente, de modo que só se deve dar grande valor a esta reação quando a reação de Wassermann fôr negativa ou, pelo menos, a reação para cisticercose for mais intensamente positiva comparativamente à reação de Wassermann."

Walsh7 7 . Walsh, F. B. - Clinical Neuro-Ophtalmology. The Williams and Wilkins Co., Baltimore, 1947, pág. 629-632. afirmou que, muitas vêzes, o quadro clínico da neurocisticercose é confundido com o da neurossífilis. Stokes, Beerman e Ingrahm8 8 . Stokes, J. H., Beerman, H. e Ingraham Jr., N. R. - Modern Clinical Syphilology. Saunders C°, Ed. 3, 1944, pág. 1020. , no capítulo do diagnóstico diferencial da neurolues com outras entidades neurológicas, incluíram a meningite cisticercótica.

Outro caso que focaliza o mesmo problema é o relatado por Williams9 4 . Pinheiro, J. e Mello, A. R. - Considerações sôbre a cisticercose cerebral. Arch. Brasil, de Med. (Rio de Janeiro), 31: 192-212 (dezembro) 1941. , de um paciente de 29 anos que servira durante 7 anos como soldado na Índia e que veio a apresentar crises convulsivas. Embora não houvesse elementos seguros para o diagnóstico de sífilis, foi tratado como tal, tendo sido instituída a terapêutica antiluética, inclusive malarioterapia. O caso clínico, entretanto, continuou evoluindo progressivamente e mais tarde, após uma série de crises que o levaram ao estado de mal epiléptico, veio a falecer. A necrópsia demonstrou tratar-se de cisticercose encefálica.

OBSERVAÇÕES

Caso 1 - T. B. S., com 35 anos de idade, brasileiro. Procurou o Ambulatório de Neurologia da Escola Paulista de Medicina (Prof. Paulino Longo), em 13 de setembro de 1947 (n.° 3057), queixando-se de crises convulsivas desde os 12 anos. Os antecedentes pessoais revelaram ter nascido a têrmo, e tido as doenças peculiares à infância. Refere blenorragia e cancro duro em 1944. Tem 5 filhos vivos e sadios.

Na história pregressa de sua moléstia assinala sua primeira crise convulsiva aos 12 anos de idade: crise generalizada, com perda de consciência e mordedura de língua, tendo durado mais ou menos uma hora. Depois de recuperar os sentidos teve cefaléia intensa e sonolência, tendo vomitado muito. Por essa ocasião tomou um vermífugo, tendo evacuado anéis de tenia (sic). Passou bem sem nada sentir até os 18 anos, quando teve, no período de dois dias, dois ataques semelhantes ao primeiro e com a mesma duração. Também desta vez vomitou muito após a crise. Aos 23 anos apresentou mais dois ataques em duas noites consecutivas. Permaneceu, depois, até os 33 anos sem repetição dessas crises, porém sua espôsa refere que êle, durante o sono. freqüentemente repuxava o braço esquerdo e a bôca. Em março de 1946 foi puncionado, tendo sido feito o exame do líquido cefalorraqueano. Diante do resultado dêsse exame foi malarizado, tendo sofrido 12 acessos úteis. Após êsse tratamento apresentou alguma melhoria. Em janeiro de 1947 teve outra crise convulsiva. Dessa época em diante apresentou cefaléia intensa e permanente, acompanhada de tonturas e zurnbidos nos ouvidos. Seis meses mais tarde teve outro ataque, depois do qual a cefaléia aumentou, a ponto de não poder mais conciliar o sono. Procurou, então, o Serviço de Neurologia da Escola Paulista de Medicina. Foi internado, para completar os exames, com a suspeita de cisticercose encefálica, pois um de nós já havia feito o exame do LCR dêsse paciente.

Ao exame clínico geral nada foi evidenciado de anormal. Ao exame psíquico apresentava déficit de atenção, raciocínio tardo e, sobretudo, déficit acentuado da memória de fixação, distúrbios êsses tão intensos a ponto de ser necessário que sua espôsa o acompanhasse em todos os seus atos. Sòzinho, esquece-se do que tem a fazer, atrapalhando-se por completo e se desorienta no espaço, sendo incapaz de tornar a percorrer caminhos já percorridos. Ao lado disso, com vagar, consegue manter conversação razoável, evidenciando integridade dos processos psíquicos. Humor em geral bastante depressivo, comportamento sem anormalidades evidentes. O exame neurológico mostrou discreta, mas nítida instabilidade de manutenção na posição de pé, com tendência a retropulsão. Na marcha, evidenciava-se instabilidade do equilíbrio e tendência ao desvio para a esquerda, particularmente com os olhos fechados. Não havia distúrbios nítidos do tono nem da coordenação dos movimentos voluntários. Os reflexos profundos eram bastante vivos, mas simétricos. Os reflexos cremastéricos não deram resposta e o cutaneoplantar deu resposta em flexão. O exame neurocular (Dr. A. Sette Jr.) mostrou: Edema de papila em AO, bem mais intenso em OE, onde os bordos estão quase completamente borrados e a proeminência da papila excede 2 dioptrias. O exame neurotológico (Dr. F. Prudente Aquino) mostrou: Hipoacusia discreta bilateral. Hiperirritabilídade ligeira do labirinto direito em relação ao esquerdo. A ventrículografia (Dr. A. Mattos Pimenta e O. Barini) com ar e iodipina, mostrou: dilatação simétrica dós ventrículos laterais e trânsito normal no aqueduto e 4.° ventrículo. Craniograma (Dr. Celso Pereira da Silva): sinais radiológicos locais (selares) de hipertensão craniana. Exame de sangue: Reações de Wassermann, Kahn e Eagle negativas. O hemograma mostrou 17,5% de polinucleares eosinófilos. Os exames de liquor mostraram síndrome liquórica de cistieercose encefálica (vide quadro no final da observação).

Decurso: O paciente esteve internado até 28 de novembro de 1947, tendo apresentado períodos de quase normalidade psíquica, intervalados com outros de torpor e de agitação psicomotora. Foi tratado pela radíoterapia profunda e glicose hipertônica intravenosa, tendo recebido alta para continuar tratamento em ambulatório. Em casa passou cêrca de dois meses perfeitamente bem, quando principiou a apresentar distúrbios de conduta bastante sérios. Conta a espôsa, o seguinte: "Reside o casal em dois cômodos com 5 filhos menores, e por estarem em condições financeiras precárias, a quantidade de alimentos diária é reduzida. De algumas semanas para cá o paciente, usando de sua fôrça e autoridade, come o alimento de todos e disso se vangloria rindo vitoriosamente. Em contraste com o que era anteriormente, e apesar da espôsa ser franzina e doente, entrega-se o paciente a excessos sexuais extremos, de dia e de noite, sem dar ouvidos às suas razões e às condições do ambiente". Êsses dois fatos denotam a instalação de distúrbios instintivos (instinto de nutrição e sexual), distúrbios graves do comportamento, baixa do senso crítico e estado de mória. Em face disto providenciamos sua internação no Hospital de Juqueri onde foi observado pelo Dr. Mario Robortella.

Em resumo, trata-se de um paciente de 35 anos que vem apresentando crises convulsivas do tipo epiléptico desde os 12 anos de idade, cujo exame do liquor, há dois anos atrás, deu motivo a que fôsse tratado como neuroluético, inclusive pela malarioterapia, e que, de meados de 1947 para esta data, vem apresentando progressivamente um quadro neurológico (distúrbios do equilíbrio e da marcha), um quadro psiquiátrico (distúrbios da memória, da orientação espacial, do humor - humor depressivo no início, mória no período mais adiantado - e distúrbios instintivos com conseqüente perturbação da conduta) indicador de lesão do lobo frontal, ao lado de síndrome variável de hipertensão intracraniana. O restante do exame clínico, assim como o exame radiológico, não forneceram outros elementos para o diagnóstico etiológico, o qual foi feito com o auxilio da síndrome liquórica, sugestiva de cistieercose encefálica.

Diagnóstico - Síndrome eoiléptica de tipo Bravais-Jackson Síndrome psiquiátrica e neurológica do lobo frontal, evoluindo por surtos. Síndrome de hipertensão intracraniana. Síndrome liquórica sugestiva de cistieercose encefálica, confirmada 5 vêzes, de outubro de 46 a novembro de 1947.

Caso 2 - L. B., brasileiro, casado, com 32 anos de idade. Procurou o Ambulatório de Neurologia da Escola Paulista de Medicina (Prof. Paulino Longo) em 15 de junho de 1948 (n.° 3538) queixando-se de cefaléia e perturbação da visão há 6 meses. Os antecedentes pessoais e familiares revelaram ser nascido a têrmo, tendo apresentado na infância as moléstias peculiares a essa etapa. Ainda na infância sofreu um traumatismo na região orbitária esquerda, o que lhe ocasionou ligeiro déficit da visão (sic). Por estar sempre em contacto com departamentos médicos esportivos, por diversas vêzes em sua vida fêz exames de sangue para lues, com resultados negativos. Espôsa viva e sadia, com exames sorológicos para lues negativos.

Há cêrca de um ano e meio, em pleno gôzo de saúde, quando nas dependências sanitárias de sua residência, sentiu-se sùbitamente mal, instalandoise paralisia do lado direito do corpo, ao mesmo tempo perdendo a capacidade de articular qualquer palavra, sem perda da consciência. Foi transportado para o leito e sòmente no dia seguinte recomeçou a falar, assim mesmo com certa dificuldade. Cêrca de 15 dias depois do início da moléstia foi hospitalizado e, após vários exames, foi-lhe feito o diagnóstico de neurite óptica luética, hemi-paresia direita. Neurolues parenquimatosa, forma de Lissauer? A seguir, foi malarizado e medicado pela penicilina, arsênico e bismuto. Permaneceu internado durante um mês, tendo tido melhoras para o lado do déficit motor e da fala. Teve alta com a recomendação de voltar ao hospital de vez em quando, o que todavia não cumpriu. Durante o tempo em que esteve internado êle e sua espôsa submeteram-se a exame sorológico para diagnóstico da lues, tendo sido negativo o resultado. Cêrca de 5 meses mais tarde principiou a sentir forte cefaléia, acompanhada de perturbações progressivas da visão, muitas náuseas, chegando mesmo a vomitar por diversas vêzes. Como essa sintomatologia fôsse se exacerbando cada vez mais e irredutível a qualquer terapêutica, procurou o nosso Serviço na data acima mencionada.

O exame clínico geral nada demonstrou. Ao exame psíquico, não apresenta distúrbios evidentes, além de certa discordância entre seu estado de humor e a gravidade de seu estado de saúde. Ao exame neurológico, apresenta hemiparesia direita, com síndrome piramidal deficitária, frusta (diminuição da força muscular nos segmentos distais dos membros superior e inferior) e síndrome de libertação bem evidente (marcha ceifante, hipertonia de ação, reflexos profundos exaltados, esboço de clono, sinal de Babinsky, sinal de Trõmner à direita). Fala atualmente sem anormalidades. Não há distúrbios da sensibilidade. O exame neurocular mostrou: déficit acentuado da visão em AO com visão de dedos a 6 metros em O D e vultos em OE. Estrabismo divergente em O D. Pupila esquerda com discretas irregularidades (trauma?). Reflexos pupilares normais. Atrofia secundária do lado temporal de ambas as papilas. Retração concêntrica dos campos, mais acentuada do lado temporal. O craniograma (Dr. Celso Pereira da Silva) foi normal. Exames de sangue: reações de Wassermann, Kahn e Eagle negativas; reação de fixação de complemento para cistieercose positiva. O hemograma mostrou 19% de polinucleares eosinófilos. Exame do líquido cefalorraqueano mostrou síndrome sugestiva de cistieercose encefálica (vide no final da observação).

Decurso: Foi instituída terapêutica sintomática. O paciente continuou a procurar o ambulatório de tempo em tempo. O estado geral tem piorado progressivamente, tendo emagrecido bastante e continuado com a mesma sintomatologia. Aumentaram de intensidade os vômitos e o déficit visual. Em 21-8-48 repetimos os exames neurológico e neurocular. Déficit motor inalterado; psiquismo bom. Paciente cooperante, mostrando vontade de se restabelecer por ter que cuidar de mulher e filhas. Ao exame neurocular verificamos acentuação do déficit visual. Relatou o paciente que têm aumentado as crises de cefaléia e vômitos.

Em resumo, trata-se de um paciente com 32 anos de idade, que, em plena saúde, subitamente foi acometido de um icto, com afasia e hemiplegia direita. Não há história de lues em seu passado. Internado em hospital foi tratado como neuroluético, inclusive pela malarioterapia. Embora tivesse obtido melhoras em relação ao acidente neurológico inicial, tendo recuperado a fala e melhorado muito de sua hemiplegia, procurou o nosso Serviço por apresentar cefaléia intensa, perturbações da visão e vômitos. Ao exame neurológico, verificamos hemiparesia direita e quadro neuroftalmológico de atrofia secundária do nervo óptico. O craniograma foi normal. O exame do líquido cefalorra-queano, evidenciando síndrome sugestiva de cistieercose encefálica, e a negati-vidade dos exames de sangue para sífilis, vieram orientar o diagnóstico.

Diagnóstico - Síndrome de hemiparesia direita, seqüela de icto pregresso. Síndrome de hipertensão intracraniana crônica com comprometimento das vias ópticas. Quadro liquórico sugestivo de cistieercose encefálica. Os exames do líquido cefalorraqueano mostraram:

COMENTÁRIOS

Estamos diante de dois casos de cisticercose encefálica, que foram inicialmente malarizados por terem sido considerados como casos de neurolues. O diagnóstico correto foi possível pelo exame do líquido cefalorraqueano. Em ambos, o quadro liquórico sempre foi sugestivo de cisticercose. Tivemos, em todos os exames, as reações de Wassermann e Eagle sempre negativas, ao lado das reações de fixação de complemento para cisticercose sempre positivas. Confirmando êste resultado, encontramos elementos eosinófilos em tôdas as amostras de liquor. Êsses dados e outras alterações verificadas estão perfeitamente de acordo com o que admitem Pupo e col., os quais descrevem como característica da cisticercose encefálica, a seguinte síndrome do líquido cefalorraqueano:

"1 - Hipercitose com presença de eosinófilos, freqüentemente. Esta hipercitose é moderada, havendo algumas centenas de células nos casos em que os processos inflamatórios são mais acentuados. 2 - Aumento discreto das proteínas totais, particularmente das globulinas. Por vezes, apenas aumento das globulinas. 3 - Alterações da reação de benjoim coloidal na primeira zona ou primeira e segunda zonas, sob dependência das alterações protêicas. 4 - Reação de fixação de complemento para cisticercose positiva, com negatividade da reação de Wassermann. 5 - Outras alterações, tais como aumento da pressão, não são constantes".

Fala também contra o diagnóstico de neurolues, a evolução progressiva da moléstia apesar de todos os tratamentos antiluéticos instituídos nesses dois casos- O fato de serem sempre negativas as reações no sangue para a lues, em ambos os casos, no início da moléstia, quando o quadro liquórico apresentava já alterações evidentes, é um dado relativo contra o diagnóstico de neurolues, pois, nesse período, 95% dos casos têm reações positivas no sangue, segundo Amaral e Cardoso10 10 . Amaral Filho. C. e Cardoso, W. - Contribuição para o estudo estatístico da paralisia geral. Considerações e resultados terapêuticos sobre 1000 casos. Arq. Assist. Psicop. do S. Paulo, 12: 103-193, 1947. .

Outro dado também observado em ambos os nossos casos, foi a diminuição da taxa de açúcar, fato êsse destacado, pela primeira vez, por Kulkow11 11 . Kulkow, A. E. - The diagnosis of racemose cysticercosis during life. Arch. Neurol, a. Psychiat., 24: 135-143, 1930. , na cisticercose encefálica.

Trabalho apresentado ao Departamento de Neuro-Psiquiatria da Associação Paulista de Medicina em 7 Fevereiro 1949.

Rua Amalia Noronha, 127 - São Paulo

  • 1. Tretiakoff, C. e Pacheco e Silva, A. C. - Contribuição para o estudo da cisticercose cerebral e em particular das lesões tóxicas à distância nessa infecção. Mem. Hosp. Juqueri (S. Paulo) 1: 37-66, 1924.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Jun 1949
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