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Penicilinoterapia intra-raquídia: Reações liquóricas imediatas

SIMPÓSIO - PENICILINOTERAPIA NA NEUROSSÍFILIS

Penicilinoterapia intra-raquídia. Reações liquóricas imediatas

J. M. Taques Bittencourt

Assistente de Neurologia na Fac. Med. Univ. São Paulo (Prof. Adherbal Tolosa) e encarregado dos exames de líquido cefalorraquidiano no Hospital das Clínicas

Muitas substâncias foram usadas por via intra-raquidiana com intuito curativo ou como meio diagnóstico. No primeiro caso, podemos citar os soros medicamentosos como o antitetânico, antipneumocócico e antimeningocócico; compostos metálicos como o arsênico, a prata coloidal e medicamentos antibacterianos como as sulfanilamidas e, ùltimamente, a penicilina. No segundo caso, o torotrast, o lipiodol, a iodipina, o pantopaque e, mesmo, a água destilada.

Todas estas substâncias, se bem que com intensidade diferente, produzem irritação meníngea que se traduz em alterações do líquido cefalorraquidiano, principalmente no tocante à citologia. Com os soros medicamentosos e com o soro de cavalo, há reação meníngea cuja intensidade depende da quantidade de soro injetada1 1 . Goldman, D. - Serum meningitis. Arch. Pathol., 9: 1027 (maio) 1930. . Segundo Bor Tassovatz2 2 . Tassovatz, B. - L'action non spécifique du sérum de cheval sur les méninges normales et sur les méninges en état d'inflammation septique. Presse méd., 42: 240 (fevereiro, 10) 1934. , 10 cm3 de soro de cavalo produzem reação fraca, de até 100 células por mm3, sendo 10 a 20% de polinucleares neutrófilos; 20 cm3 já produzem reação de média intensidade; de 100 a 400 células por mm3, sendo 50 a 70% de polinucleares neutrófilos; 30 cm3 produzem forte reação com mais de 1.000 células, sendo 60 a 80% de polinucleares neutrófilos. É interessante observar que, quanto mais forte a reação, maior é a percentagem de polimorfo-nucleares neutrófilos. Se se injetar a medicação em dias seguidos, pode-se notar o aparecimento de meningite asséptica cuja reação citológica pode ser esquematizada em 3 tipos: reação citológica estabilizada, o que é mais frequente; reação citológica progressivamente crescente e reação citológica mutável, isto é, reação inicial aguda, que se torna fraca posteriormente.

Os compostos metálicos, como a prata colodial, produzem forte irritação meníngea com sinais clínicos típicos da série meningítica, sendo de notar que o aumento de células no líquor corre por conta dos linfócitos, sendo raros os polimorfonucleares neutrófilos; nestes casos aparecem, também, em proporção muito variável, células eosinófilas e elementos de tipo endotelial.

O estudo da irritação meníngea pelas sulfanilamidas não foi feito em clínica, porquanto, sendo êsse medicamento usado nos casos de meningite purulenta, a irritação bacteriana, que é maior, impede a investigação.

Mais interessante foi o uso da água bidestilada para o diagnóstico da lues nervosa. Alice Marques dos Santos3 3 . Santos, A. M. - Sobre um novo método de diagnóstico da lues nervosa. Tese de doutoramento na Fac. Med. Univ. Rio de Janeiro. Tip. Ranulpho Guimarães edit., Rio de Janeiro, 1933. , em sua tese de doutoramento, concluiu que, em doentes não sifilíticos, a água bidestilada provoca o aparecimento de altíssima pleocitose, que confere ao líquor aspecto francamente turvo e no qual é alta a percentagem de polimorfonucleares neutrófilos, sendo pequena a de linfócitos e mononucleares, e nula a de plasmócitos. Ao contrário, se se tratar de neurolues, mesmo que o liquor se tenha mostrado normal anteriormente, a pleocitose provocada pela água bidestilada é baixa, até 100 células por mm3, fazendo-se à custa de células mononucleadas, ao lado das quais aparecem plasmócitos, sendo baixa a percentagem de polinucleares neutrófilos. A pleocitose liquórica, com grande percentagem de polinucleares neutrófilos, é a reação normal do organismo a qualquer agente irritante. Nos casos de neurossífilis, porém, em que há uma meningoencefalite difusa com infiltração linfoplasmocitária perivascular e intersticial, a irritação provocada pela injeção de água faria aparecer no liquor os elementos celulares que infiltram as leptomeninges, isto é, células mononucleadas, caraterísticas dos processos crônicos. Estes fatos não foram confirmados por Jacchia4 4 . Jacchia, L. - Sulle reazione citologiche del liquor luético e sopra un nuovo método di diagnostico delia neurolue. Riv. di neurol., 5: 499 (outubro) 1932. , o qual encontrou predominância de polinucleares neutrófilos, toda a vez que introduzia água destilada no canal raquidiano, mesmo nos casos em que o liquor era positivo para lues, anteriormente à prova, isto é, quando já apresentava linfomononucleose. Algumas provas feitas em São Paulo, por Oswaldo Lange5 5 . Informação pessoal. , confirmam esta última opinião.

Depois de injeções intratecais de penicilina, os americanos, que foram os precursores do seu emprego na neurolues, notaram aumento do número de células no líquido cefalorraquidiano. Neymann6 6 . Neymann, C. - Experiments in the treatment of dementia paralytica with penicillin. J. A. M. A., 128: 433 (junho, 9) 1945. encontrou aumento de elementos celulares, linfócitos e polinucleares, assim como hemácias. O número de leucócitos subia abruptamente e apareciam hemácias, sempre com polimorfonucleares neutrófilos e linfócitos. As proteínas totais e as globulinas aumentavam correspondentemente. Infelizmente, ele não refere a fórmula citológica, deixando em suspenso a questão de saber se há maior percentagem de células mono ou polinucleares. Também Goldman7 7 . Goldman, D. - Treatment of neurosyphilis with penicillin. J. A. M. A., 128: 274 (maio, 26) 1945. observou pleocitose no liquor em quase todas as vezes que injetou penicilina no canal raquidiano. A pleocitose foi sempre transitória se bem que, por vezes, fosse bastante pronunciada. Acredita ele que essa alteração seja devida a choque terapêutico, não por ação irritativa do medicamento, pois é bem conhecido o efeito irritante do soro e outras substâncias estranhas quando injetadas no canal raquidiano, e esse efeito não é similar ao observado com a penicilina. As substâncias irritantes produzem um aumento contínuo da citologia, desde que se façam injeções repetidas, enquanto que injeções diárias de penicilina produzem aumento transitório, com elevações e quedas sucessivas, sem que se observe um aumento contínuo e progressivo.

Dos 16 doentes por nós medicados pela penicilina intra-raquidiana, dissolvida em solução salina isotônica na percentagem de 10.000 U.Ox. por cm3, 15 apresentavam neurolues parenquimatosa com líquido cefalorraquidiano alterado; em um caso se tratava de osteite luética, com liquor normal. Nos casos de neurolues, houve sempre pleocitose, que alcançou o máximo de 150 elementos por mm3, numa média de 8 células por mm3. A fórmula citológica mostrou, sempre, exclusividade ou grande maioria de linfócitos e mononucleares. Em dois casos, verificamos reações citológicas de maior intensidade, alcançando 600 elementos por mm3 e, mesmo, por duas vezes, mais de 1.000 elementos por mm3; nestes casos, a fórmula citológica se inverteu, e obtivemos até 80% de polimorfonucleares neutrófilos, além de células de tipo endotelial. A percentagem de polinucleares neutrófilos aumentou, pois, proporcionalmente ao aumento do número global de células; quanto maior a pleocitose encontrada, maior era a percentagem de polinucleares neutrófilos. Nos casos em que o número de células era muito grande, o líquor apresentava-se turvo.

Outro fato interessante foi o aparecimento constante, nas últimas injeções - em que introduzíamos maior quantidade de penicilina - de grande número de hemácias e de xantocromia. Esta última, provavelmente, era devida a dois fatores: presença de penicilina, emprestando ao líquor sua cor amarelada, e pequenas hemorragias, ou melhor, transudações intra-raquidianas produzidas pelo agente medicamentoso.

No caso de osteite luética, no qual o líquor era completamente normal antes da medicação, a penicilina intra-raquidiana produziu pleocitose cujo número máximo foi de 152 células por mm3 e a média de 13; porém, a fórmula citológica mostrou sempre 100% de linfócitos. Neste caso, também, o líquor mostrou-se xantocrômico nas últimas punções, ocasiões em que também encontramos grande-número de hemácias.

O estudo da reação citológica produzida pela injeção de penicilina intra-raquidiana nos levaria a aceitar a idéia de Goldman, de que a pleocitose não seria produzida pela ação irritante do medicamento mas sim por um choque terapêutico, devido à grande oscilação encontrada no número de células após cada injeção. Se houvesse irritação, a injeção diária deveria produzir irritação gradativa, à qual corresponderia uma elevação crescente do número de leucócitos. Contudo, o aparecimento de hemácias nas últimas injeções nos obriga a admitir a existência de um processo congestivo local, o qual poderia ser ocasionado por uma irritação, a não ser que o próprio choque terapêutico fosse o agente da congestão local. Outra conclusão que podemos tirar do estudo da citologia do liquor é que a intensidade da reação celular influi ponderavelmente na fórmula citológica e que o aparecimento de polinucleares neutrófilos está condicionado à maior intensidade da irritação ou choque terapêutico. Esta concordância foi referida por Tassovatz em estudo realizado com soro de cavalo. O aparecimento de polinucleose no liquor de neuroluéticos após injeção de penicilina está em oposição às conclusões da tese de Marques dos Santos. Outro fato que também está em discordância com essa tese é termos encontrado linfomononucleose no único caso que medicamos com líquor normal. Não se tratando, nesse caso, de neurolues, a reação deveria processar-se à custa dos polinucleares neutrófilos.

A reação meníngea se traduz, também, por outras alterações. Observamos hiperalbuminorraquia em perfeita concordância com a hipercitose, pois, quando esta aumentava, aquela sofria proporcional aumento. O aumento da taxa de proteínas totais durante as injeções intra-raquidianas de penicilina, em média não ultrapassou os números iniciais de 0,05 a 0,10 grs. %o. Assim, se a taxa de proteínas totais de um liquor, anteriormente à injeção de penicilina, era de 0,30 grs. por litro, seu aumento médio não ultrapassou 0,35 a 0,40 grs. por litro. Acima dessa cifra média, só observamos 3 casos, nos qnais as reações citológicas foram, paralelamente, muito severas. No primeiro, encontramos até 100 células por mm3, sem modificação da fórmula; a quantidade de proteínas totais aumentou de 0,30 grs. a mais que o número inicial. No segundo caso, encontramos até 250 células por mm3; a fórmula alterou-se, mostrando maior percentagem de polinucleares neutrófilos, que alcançaram 72%; neste caso, o aumento das proteínas totais alcançou 0,60 grs. além da cifra inicial. No terceiro caso, foi encontrada hipercitose de 220 células por mm3, apareceram sintomas de lesão radicular com anestesia em sela no períneo, retenção de esfincteres, a hiperalbuminorraquia ultrapassou de 1,90 grs. a quantidade inicial. Neste caso, a elevada taxa de proteína nos fez pensar que o incidente neurológico apresentado durante a penicilinoterapia fosse motivado por aracnoidite adesiva, bloqueando o canal raquidiano; no entanto, as provas manométricas de Stookey infirmaram essa hipótese.

Não dosamos as globulinas. As reações habituais de pesquisa desses componentes protéicos não sofreram alterações devido, principalmente, ao fato de que eram, quase sempre, fortemente positivas desde o início do tratamento.

No único caso tratado em que o liquor era normal, não houve aumento da taxa de proteínas totais e não se positivaram as reações de Pandy e Nonne, assim como não se modificaram as reações coloidais nem se positivou a reação de Wassermann. A única alteração foi a hipercitose. Esse fato talvez indique maior labilidade da meninge neuroluética, permitindo a passagem de substâncias do tecido nervoso ou mesmo do sangue para o líquido cefalorraquidiano. A irritação ou choque terapêutico produziria a hipercitose, mas não seria suficiente, numa meninge normal, para permitir a passagem de proteínas do soro sangüíneo capazes de aumentar a taxa protéica do liquor e alterar suas reações coloidais.

Nos 15 casos de neurolues parenquimatosa que tratamos, as reações coloidais estavam alteradas no sentido de uma curva parenquimatosa, antes do início da medicação. Com as injeções intra-raquidianas de penicilina, elas não se alteraram, a não ser quando aparecia grande hipercitose (mais que 100 células por mm3) e grande hiperalbuminose (aumento da taxa de proteínas totais além de 0,10 grs. %o, acima da taxa inicial). Nessas ocasiões, as reações coloidais se modificaram, com tendência a tornar-se de tipo mixto - parenquimatoso e meníngeo.

Fato de grande interesse foi a reativação das reações de Wassermann e Steinfeld. De maneira geral, à medida que íamos prosseguindo na terapêutica, a reação de Wassermann, assim como a de Steinfeld, ia-se tornando mais positiva, fato que pudemos acompanhar bem, fazendo a reação quantitativa. Casos em que a reação de Wassermann era positiva com 0,6 cm3 de liquor foram-se tornando positivos com 0,5, 0,4, 0,3 e mesmo 0,2 cm3 de liquor. Esta reativação das reações serológicas de desvio de complemento é bem conhecida, supondo-se, no caso do liquor, que seja devida a uma rotura da barreira hemoliquórica, com a passa gem de reaginas do sangue para o liquor ou então, à mobilização das reaginas do próprio tecido nervoso, por rotura da barreira neuroliquórica. Seria fato análogo ao observado por Vizioli8 8 . Vizioli, F. - Le spirochete nel liquor dei paralitici progressivi in seguito a reazione meningee acute artificialmente provocate. Riv. di neurol., 7: 65 (fevereiro) 1934. a respeito do número de espiroquetas encontrados no líquido cefalorraquidiano de paralíticos gerais. Esse autor demonstrou que, após o desencadeamento de uma reação meníngea aguda, o número de espiroquetas encontrados no liquor aumentou de 4,1% a 12,5%. Vizioli conclui por uma facilitação da passagem dos treponemas do sangue ao liquor, ou então uma distribuição diferente, isto é, uma mobilização dos germes do sistema nervoso para as meninges.

  • 1 Goldman, D. - Serum meningitis. Arch. Pathol., 9: 1027 (maio) 1930.
  • 2. Tassovatz, B. - L'action non spécifique du sérum de cheval sur les méninges normales et sur les méninges en état d'inflammation septique. Presse méd., 42: 240 (fevereiro, 10) 1934.
  • 3. Santos, A. M. - Sobre um novo método de diagnóstico da lues nervosa. Tese de doutoramento na Fac. Med. Univ. Rio de Janeiro. Tip. Ranulpho Guimarães edit., Rio de Janeiro, 1933.
  • 4. Jacchia, L. - Sulle reazione citologiche del liquor luético e sopra un nuovo método di diagnostico delia neurolue. Riv. di neurol., 5: 499 (outubro) 1932.
  • 6. Neymann, C. - Experiments in the treatment of dementia paralytica with penicillin. J. A. M. A., 128: 433 (junho, 9) 1945.
  • 7. Goldman, D. - Treatment of neurosyphilis with penicillin. J. A. M. A., 128: 274 (maio, 26) 1945.
  • 8. Vizioli, F. - Le spirochete nel liquor dei paralitici progressivi in seguito a reazione meningee acute artificialmente provocate. Riv. di neurol., 7: 65 (fevereiro) 1934.
  • 1
    . Goldman, D. - Serum meningitis. Arch. Pathol.,
    9: 1027 (maio) 1930.
  • 2
    . Tassovatz, B. - L'action non spécifique du sérum de cheval sur les méninges normales et sur les méninges en état d'inflammation septique. Presse méd.,
    42: 240 (fevereiro, 10) 1934.
  • 3
    . Santos, A. M. - Sobre um novo método de diagnóstico da lues nervosa. Tese de doutoramento na Fac. Med. Univ. Rio de Janeiro. Tip. Ranulpho Guimarães edit., Rio de Janeiro, 1933.
  • 4
    . Jacchia, L. - Sulle reazione citologiche del liquor luético e sopra un nuovo método di diagnostico delia neurolue. Riv. di neurol.,
    5: 499 (outubro) 1932.
  • 5
    . Informação pessoal.
  • 6
    . Neymann, C. - Experiments in the treatment of dementia paralytica with penicillin. J. A. M. A.,
    128: 433 (junho, 9) 1945.
  • 7
    . Goldman, D. - Treatment of neurosyphilis with penicillin. J. A. M. A.,
    128: 274 (maio, 26) 1945.
  • 8
    . Vizioli, F. - Le spirochete nel liquor dei paralitici progressivi in seguito a reazione meningee acute artificialmente provocate. Riv. di neurol.,
    7: 65 (fevereiro) 1934.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Mar 1946
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