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Penicilinoterapia em um caso de neurite óptica luética

SIMPÓSIO- PENICILINOTERAPIA NA NEUROSSÍFILIS

Penicilinoterapia em um caso de neurite óptica luética

Paulino W. LongoI e J. M. Taques BittencourtII

ICatedrático de Neurologia na Escola Paulista de Medicina

IIAssistente de Neurologia na Fac. Med. Univ. São Paulo (Prof. Adherbal Tolosa)

A terapêutica da neurite óptica luética sempre apresentou sérias dificuldades, sendo sua evolução quase sempre progressiva e o resultado final, a amaurose. Associada ou não a outras formas de neurolues parenquimatosa, na maioria das vezes à tabes, raramente à paralisia geral, seu tratamento passou a ser feito nestes últimos anos, pela terapêutica antiluética precedida da malarioterapia. Mesmo assim, ainda perduraram as dificuldades, pois o quinino - necessário para cortar o surto malárico - e o arsênico - a melhor arma antiluética - não podiam ser usados devido a sua ação maléfica sôbre o nervo óptico. Procurou-se contornar tais dificuldades, empregando plasmódios obtidos de fonte conhecida, capazes de produzir acessos de elevada temperatura, ciclo regular e, principalmente, sujeitos a sofrer a ação do azul de metileno, e utilizando, como agente químico antiluético, os sais de bismuto solúveis desde que o arsênico, e mesmo o mercúrio, têm sido contra-indicados. Os cuidados, a técnica e o resultado deste método terapêutico foram estudados por um de nós11. Longo, P. W. - Resultado da malarioterapia na atrofia do nervoóptico devida a lues. Arq. Inst. Penido Burnier (Campinas), 4: 183 (dezembro) 1936. , em 20 casos. Os resultados foram encorajadores, pois, em dois casos, foi observado o alargamento do campo visual de modo bastante nítido após um ano; em onze, houve duradoura melhora da visão; em cinco, houve estacionamento do processo; só em dois casos houve piora.

Quando se tornou evidente o efeito da penicilina sobre a lues, pensou-se em empregar este medicamento na neurite óptica luética, pois viria sanar as dificuldades aventadas. Já no primeiro trabalho sobre o tratamento da neurolues pela penicilina, publicado por Stokes e colaboradores,22. Stokes, J. H. e col. - The action of penicillin in late syphilis. J. A. M. A., 126: 73 (setembro, 9) 1944. havia referência a sete casos de atrofia óptica primária. Desses, nenhum piorou, a maioria estacionou e um caso melhorou, lenta mas definitivamente, quer quanto ao campo visual, quer quanto ao exame do líquido cefalorraquidiano. Contudo, em trabalho posterior, o próprio Stokes33. Stokes, J. H. e col. - Penicillin in neurosyphilis. J. A. M. A., 128: 653 (junho, 30) 1945. concluiu que a tabes e a neurite óptica, que na maioria dos casos se lhe associa, são, entre as as formas de neurolues parenquimatosa, as que mais resistência oferecem ao tratamento. Também Solomon, em trabalho apresentado à Sociedade Neurológica de Boston, em 15 março 1945,44. Solomon, H. C. e col. - Penicillin treatment of neurosyphilis. J. Nerv. a. Ment. Dis., 102: 304 (setembro) 1945. relatou que, dos seis casos por ele tratados, cinco mostraram uma aparente parada da perda visual e um piorou.

Em vista desses resultados dos autores americanos, tentamos a penicilinoterapia em um caso de atrofia óptica luética associada a tabes. Os resultados altamente encorajadores que obtivemos nos levam a relatar este caso.

Trata-se de A. S. que, em agosto 1944, começou a ter dificuldade em distinguir as cores. Até janeiro 1945, essa dificuldade persistiu, acentuando-se a ponto de só distinguir as tonalidades escura e clara. Assim, o verde-escuro era confundido com preto, e o verde-claro, confundido com vermelho-claro. Nessa época, iniciou-se a perda da acuidade visual e o doente começou a sentir dores musculares. Fez reação de Wassermann no soro sangüíneo que resultou fortemente positiva. No mês seguinte, apesar do tratamento anti-luético, não reconhecia pessoas a 30 metros e em maio, a 3 metros. Em agosto, a leitura tornou-se difícil e a potência sexual diminuiu rapidamente. O exame neurocular, realizado em 16 agosto, mostrou: estática e motricidade oculopalpebrais fisiológicas. Pupilas rígidas à luz direta, reagindo normalmente aos movimentos de acomodação e convergência. Diâmetros pupilares fisiológicos. Meios oculares normais. Palidez total das papilas: atrofia simples de tipo descendente. Visão: OD = 1/10; com OE conta dedos a 4 metros. Perimetria com mira de 5/333: redução concêntrica. Não distingue cores. Conclusão: atrofia descendente dos nervos ópticos. (Durval Prado) O exame neurológico revelou: abolição dos reflexos osteotendinosos nos membros inferiores; cremastéricos superficiais e profundos presentes; reflexos cutâneos normais; sensibilidade normal. Não havia sinal de Romberg; não havia ataxia; esfincteres normais, assim como a força muscular e o tono. O exame do líquido cefalorraquidiano mostrou: punção suboccipital em decúbito lateral; pressão inicial 6 (manómetro de Claude); liquor límpido e incolor; citologia 48,8 células por mm3 (linfócitos 90%, médios mononucleares 8% e grandes mononucleares 2%); cloretos 7,00 grs por litro; proteínas totais 0,20 grs por litro; reações de Pandy e Nonne fortemente positivas; reação do benjoim coloidal 22222.12221.00000.0; reação de Takata-Ara fortemente positiva (tipo luético); reação de Meinicke (M. K. R. II) positiva com 0,2 cm3; reação de Wassermann fortemente positiva com 0,07 cm3.

Iniciamos o tratamento em 17 agosto, utilizando penicilina Squibb, por via intramuscular e intratecal. Foram injetadas 20.000 U. Ox. cada 3 horas no músculo e injeções diárias intratecais em doses crescentes, até alcançar a dose total de 2.500.000 U. Ox. O tratamento durou 11 dias; nos dois primeiros, fizemos 20.000 U. Ox. por via intra-raquidiana, do terceiro ao nono dia fomos aumentando 10.000 U. Ox. cada dia, até que, nos dois últimos dias injetamos 100.000 U. Ox. O decurso do tratamento foi satisfatório, pois só houve pequena reação térmica no primeiro dia, sensação de calor na cabeça durante as injeções intratecais do medicamento e uma reação psíquica no penúltimo dia, com leve delírio e alucinações visuais. A via utilizada foi sempre a suboccipital.

Fizemos exames diários do líquido cefalorraquidiano durante o tratamento e, depois do término dele, colhemos material todos os meses, para que pudéssemos seguir a evolução do processo inflamatório. Dessa maneira, pudemos observar (quadro 1) que, durante o tratamento, a pressão do liquor nunca ultrapassou os limites considerados normais; o número de células aumentou, durante o tratamento, não de maneira progressiva, mas irregularmente, com grandes variações diárias, formando uma curva com oscilações abruptas; a fórmula citológica permaneceu praticamente a mesma durante todo o tratamento, não tendo sido encontrados polinucleares neutrófilos e as variações observadas consistiram no aumento da percentagem das grandes células mononucleadas, em íntima relação com o aumento do número total de elementos figurados; não houve variação da taxa de cloretos, ao passo que a de proteínas totais cresceu de 0,20 grs para 0,30 grs por litro; as reações de Pandy e Nonne foram sempre fortemente positivas, assim como a de Takata-Ara. Trinta dias depois de terminado o tratamento, observamos um decréscimo da taxa de proteínas totais para 0,15 grs. por litro; as reações de Pandy e Nonne tornaram-se de menor intensidade. Nos meses subsequentes, o líquido cefalorraquidiano foi melhorando continuamente, a ponto de constatarmos, noventa dias depois da última injeção de penicilina, que o número de células voltara praticamente ao normal; a taxa de proteínas totais permaneceu na metade da que fôra encontrada no primeiro exame; as reações de Pandy e Nonne só revelaram opalescência; a reação de Takata-Ara diminuiu de intensidade, e a curva do benjoim coloidal quase normalizou-se. As reações de Wassermann e Steinfeld (quadro 2) mostraram, durante o tratamento, uma tendência contínua à reativação. A reação de Wassermann, que era fortemente positiva com 0,05 cm3 no dia da primeira injeção de penicilina, tornou-se fortemente positiva com 0,02 cm3 na ocasião da 8.a injeção. A reação de Steinfeld, que era fortemente positiva com 0,07 cm3 no início do tratamento, tornou-se fortemente positiva com 0,04 cm3. Terminado o tratamento, verificamos que as reações serológicas gradualmente diminuíam de intensidade e, no último exame realizado, três meses depois do tratamento, a reação de Wassermann resultou fortemente positiva, somente com 0,1 cm3 quando antes o era com 0,05 cm3, e a reação de Steinfeld sòmente com 0,4 cm3, enquanto que o era anteriormente com 0,08 cm3.



Da mesma maneira, seguimos a evolução do processo óptico, com exames neuroculares mensais (Dr. Durval Prado), os quais evidenciaram melhoras nítidas da acuidade visual e aumento dos campos visuais (fig 1). Em 12 setembro, a visão era de 0,15 em OD. quando antes era de 0,10 e via dedos a 4 metros em OE. Perimetria 5/333 mostrou aumento dos campos. Melhora da acuidade visual em OD. Aumento dos campos visuais, maior em OD. Permanece a acromatopsia. Em 16 outubro, o exame mostrou: pupilas em miose, rígidas à luz e contraindo-se à convergência. Visão OD = 0,15 e OE = dedos a 4 metros. Conquanto não houvesse aumento numérico da acuidade visual, notamos grande facilidade nas informações. Permanece a mesma acromatopsia. Aumentaram os campos visuais, principalmente do olho direito.

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  • 1 Longo, P. W. - Resultado da malarioterapia na atrofia do nervoóptico devida a lues. Arq. Inst. Penido Burnier (Campinas), 4: 183 (dezembro) 1936.
  • 2. Stokes, J. H. e col. - The action of penicillin in late syphilis. J. A. M. A., 126: 73 (setembro, 9) 1944.
  • 3. Stokes, J. H. e col. - Penicillin in neurosyphilis. J. A. M. A., 128: 653 (junho, 30) 1945.
  • 4. Solomon, H. C. e col. - Penicillin treatment of neurosyphilis. J. Nerv. a. Ment. Dis., 102: 304 (setembro) 1945.
  • 1
    . Longo, P. W. - Resultado da malarioterapia na atrofia do nervoóptico devida a lues. Arq. Inst. Penido Burnier (Campinas),
    4: 183 (dezembro) 1936.
  • 2
    . Stokes, J. H. e col. - The action of penicillin in late syphilis. J. A. M. A.,
    126: 73 (setembro, 9) 1944.
  • 3
    . Stokes, J. H. e col. - Penicillin in neurosyphilis. J. A. M. A.,
    128: 653 (junho, 30) 1945.
  • 4
    . Solomon, H. C. e col. - Penicillin treatment of neurosyphilis. J. Nerv. a. Ment. Dis.,
    102: 304 (setembro) 1945.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Mar 1946
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