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Meningite meningocócica curada pela penicilino-sulfamidoterapia

REGISTRO DE CASO

Meningite meningocócica curada pela penicilino-sulfamidoterapia

Fernando O. BastosI; J. Batista dos ReisII

IDocente-livre e assistente de Cl. Psiquiátrica da Fac. Med. Univ. São Paulo (Prof. A. C. Pacheco e Silva). Chefe de Clínica da C. Saúde do Instituto Paulista (Prof. Paulino W. Longo)

IIAssistente de Laboratório do Serviço de Neurologia da Escola Paulista de Medicna (Prof. Paulino W. Longo)

Podemos dividir em quatro fases a evolução do tratamento da meningite meningocócica: 1.a fase - Dieulafoy1 1 . Dieulafoy, G. - Manuel de Pathologie Interne, Tomo III. Masson Cie., Paris, 1901. , referindo-se à meningite meningocócica, descreve, com clareza de exposição e abundante descrição dos sintomas, os quadros clínicos próprios da moléstia; como terapêutica, porém, aconselha apenas recursos meramente sintomáticos: balneoterapia, ventosas escarificadas, aplicação de sangue-sugas, administração de brometos, de cloral ou de morfina. Com referência ao prognóstico, assinala que, excetuando-se as recrudescências epidêmicas, a meningite meningocócica é curável na proporção de 14 a 40% dos casos. É esta a fase em que não se dispunha de outro meio terapêutico além da punção lombar: é o período, portanto, em que só se fazia o diagnóstico, sendo o tratamento praticamente nulo.

2.a fase - Em 1906, surge a soroterapia meningocócica e o primeiro ensaio curativo desta moléstia. Já era, sem dúvida, um processo com o qual se obtinham bons resultados; entretanto não podiam estes ser considerados como muito animadores, pois a mortalidade continuava alta e as sequelas neuropsíquicas representavam uma interrogação quanto ao futuro do paciente. Mesmo após o aperfeiçoamento da soroterapia, com a introdução, em 1931, do soro antitóxico de Ferry, que, segundo Hoyne2 2 . Hoyne - cit. in Ratner, B. - Allergy, anaphylaxis and immuno-therapy. The Williams & Wilkins Co., Baltimore, 1943. , melhorava o prognóstico e diminuia as complicações, ainda o prognóstico da meningite era muito mau. Além disso, a soroterapia por via lombar apresentava os perigos consequentes à introdução do soro na raque, isto é: irritação das meninges, aracnoidite, possíveis bloqueios subaracnóideos.

3.a fase - A sulfamidoterapia veio trazer grande progresso na terapêutica da meningite meningocócica e das meningites em geral, aparecendo, depois de 1936, os primeiros relatos positivos sobre o assunto. Desde essa época, a soroterapia foi dispensada na maioria dos casos, devendo ser reservada, consoante a opinião de Hoyne, para os casos graves, acompanhados de manifestações hemorrágicas cutâneas. Assim, pois, a rapidez com que a maioria dos autores abandonou a soroterapia indica a grande eficiência da sulfamidoterapia nesta moléstia. Tal método terapêutico veio, destarte, melhorar extraordinariamente o prognóstico da meningite meningocócica, havendo autores relatado a mortalidade de apenas 4% com o seu uso (Gregory, West e Stevens3 3 . Gregory, West e Stevens - cit. in Ratner, loc. cit. 2. ).

4.a fase - A era da penicilinoterapia veio muito próxima à da sulfa, ainda quando a eficácia desta última era comprovada por sucessivas e numerosas estatísticas. Assim, pelo fato de que a sulfamida oferecia resultados muito bons na meningite meningocócica, a penicilina só foi experimentada quando passou a ser produzida em quantidade maior. A penicilinoterapia encontrou, na meningite meningocócica, uma de suas aplicações mais brilhantes; é disso documentação evidente o trabalho de Rosenberg e Arling4 4 . Rosenberg, D. H. and Arling, P. A. - Penicilin in the treatment of meningitis J. A. M. A., 125: 1001 (agosto, 12) 1944. , no qual são relatados 65 casos, com 64 curas, tendo o único perdido dado entrada no hospital já moribundo. Em nosso meio, um de nós (J. B. Reis) colaborou com os Drs. Gomes de Mattos e P. Refinetti5 no tratamento de dois casos de meningite meningocócica em crianças, tendo-se obtido a cura de ambos sem seqüelas, em curto prazo, com a associação penicilina-sulfadiazina. É, todavia, necessário anotarmos a observação de Meads e col.6 6 . Meads e col. - cit. in Herrell, W. E., loc. cit. 8. , que, entre 9 casos de meningite meningocócica, verificaram 5 nos quais o meningococo se mostrou relativamente resistente à penicilina, sugerindo esta comunicação que a sulfamidoterapia não pode ser abandonada ainda em tal indicação.

Como bem acentua Kolmer7 7 . Kolmer, T. A. - Penicilinoterapia. Trad, brasileira, 1946. , o tratamento deve ser o mais precoce possível. Há casos de evolução muito rápida e, além disso, as sequelas poderão ser devidas ao período de latência sem tratamento. Outro fato que reputamos importante na terapêutica da meningite meningocócica é a associação da sulfa e da penicilina, pois elas parecem atuar sinergicamente, ou, pelo menos, não existe contra-indicação para seu uso associado e há forte evidência clínica de que a combinação é favorável8 8 . Herrell, W. E. - Penicillin and Other Antibiotic Agents. W. B. Saunders Co., 1945. .

A orientação geral do tratamento é a de se fazer a penicilinoterapia por via cisternal ou lombar, inicialmente, cada 12 horas, na dose de 10.000 U. Ox., até o desaparecimento das bactérias no liquor; em seguida, injeções diárias até melhoria evidente das condições humorais (células abaixo de 100 por mm3.) e melhoria clínica convincente. Ao mesmo tempo, faz-se administração intramuscular cada 3 horas, dia e noite, no dose de 20.000 U. Ox. até melhoria clínica definitiva. A sulfamidoterapia deve ser instituída desde o primeiro dia de doença, segundo o esquema clássico e de acordo com as condições do paciente. Se este estiver em coma ou não for cooperante, faz-se, de início, a introdução venosa de sulfadiazina sódica, até que as suas condições permitam a utilização da via oral. Durante a terapêutica, deve-se administrar quantidade abundante de líquidos.

Passamos ao relato sucinto do caso que nos foi dado observar: R. R. P., branco, brasileiro, casado, médico, com 22 anos de idade, residente em São Paulo. Manifestou os pródromos da moléstia no dia 1 de setembro de 1945: calafrios, mal-estar geral, cefaléia, febre que atingiu 38,6°C. Depois: agravação da cefaléia, vômitos, início de excitação confusional. No dia seguinte (quando foi solicitada a presença de um de nós), apresentava excitação confusional, com onirismo franco; hipertermia, cefaléia intensa, rigidez da nuca e da coluna vertebral, sinais de Kernig e de Brudzinski.

Pedido, imediatamente, um exame do líquido cefalorraqueano, foi este extraído e examinado dentro de poucas horas, de tal modo que o paciente pôde iniciar, sem perda de tempo, a terapêutica intensiva pela penicilina endo-raqueana e intramuscular e pela sulfadiazina por via muscular, como demonstra o quadro anexo, onde está resumida tôda a terapêutica realizada e os sucessivos resultados dos exames do liquor.* * Utilizamos a Penicilina Parke-Davis e a Sulfadiazine Abbott.

O paciente suportou bem o tratamento, tendo o estado confusional cedido por completo já no dia 3 de setembro, o que lhe permitiu colaborar com todo o interesse para o rigor do tratamento.

O exame hematológico, em 12 de setembro, acusou: "Glóbulos brancos: 8.000 por mm3. Glóbulos vermelhos: 4.720.000 por mm3. Taxa de hemoglobina: 90%. Valor globular: 0,9. Hemograma: mielócitos 1%; metamielócitos 3%; bastonetes 10%; segmentados 52%; eosinófilos 2%; basófilos 0%; linfócitos 24%; monócitos 8%. Grande desvio para a esquerda dos neutrófilos (até mielócitos), com ligeira monocitose absoluta. Alguns neutrófilos degenerados, com granulações tóxicas alfa. Glóbulos vermelhos: forma e dimensões normais; diâmetro médio 6,8; coloração normal; algumas hemácias policromatófilas. Plaquetas normais. Hematozoários não foram observados" (Sylvio Boock).

Em 16 de setembro, o paciente teve alta do hospital. Passou quinze dias numa fazenda e regressou à Capital, tendo-nos visitado nessa ocasião: estava curado. Encontrâmo-lo na rua, bem disposto e nada manifestando de anormal, em dezembro de 1945.

Rua Cândido Espinheira, 786 - São Paulo

Apresentado à Secção de Neuro-Psiquiatria da Associação Paulista de Medicina, em 5 dezembro 1945.

  • 1. Dieulafoy, G. - Manuel de Pathologie Interne, Tomo III. Masson Cie., Paris, 1901.
  • 2. Hoyne - cit. in Ratner, B. - Allergy, anaphylaxis and immuno-therapy. The Williams & Wilkins Co., Baltimore, 1943.
  • 4. Rosenberg, D. H. and Arling, P. A. - Penicilin in the treatment of meningitis J. A. M. A., 125: 1001 (agosto, 12) 1944.
  • 7. Kolmer, T. A. - Penicilinoterapia. Trad, brasileira, 1946.
  • 8. Herrell, W. E. - Penicillin and Other Antibiotic Agents. W. B. Saunders Co., 1945.
  • *
    Utilizamos a Penicilina Parke-Davis e a Sulfadiazine Abbott.
  • 1
    . Dieulafoy, G. - Manuel de Pathologie Interne, Tomo III. Masson Cie., Paris, 1901.
  • 2
    . Hoyne - cit. in Ratner, B. - Allergy, anaphylaxis and immuno-therapy. The Williams & Wilkins Co., Baltimore, 1943.
  • 3
    . Gregory, West e Stevens - cit. in Ratner, loc. cit. 2.
  • 4
    . Rosenberg, D. H. and Arling, P. A. - Penicilin in the treatment of meningitis J. A. M. A.,
    125: 1001 (agosto, 12) 1944.
  • 6
    . Meads e col. - cit. in Herrell, W. E., loc. cit. 8.
  • 7
    . Kolmer, T. A. - Penicilinoterapia. Trad, brasileira, 1946.
  • 8
    . Herrell, W. E. - Penicillin and Other Antibiotic Agents. W. B. Saunders Co., 1945.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Mar 1946
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