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Psiconeuroses alérgicas: A propósito de 5 casos

Psiconeuroses alérgicas. A propósito de 5 casos

Virgilio de Camargo Pacheco; Ibrahim Mathias

Respectivamente, diretor e interno do Sanatório Bela Vista

RESUMO

As toxicoses alérgicas figuram entre os fatores suscetíveis de pôr em cheque e muitas vezes desajustar a personalidade total do paciente. Elas podem oferecer variada gama de intensidade, dando azo a que as psiconeuroses delas derivadas sejam dos mais variados matizes. Baseados em observações pessoais, os autores recordam a questão do balanço somatopsíquico ou psicossomático que, de quando em quando, se observa em neuropsiquiatria, intercâmbio êsse em que uma fixação orgânica, fora do sistema nervoso, pode fazer cessar imediatamente desarranjos mentais algumas vezes severos. Relembram, a respeito, o fato da concomitânia e, em alguns casos alternância, entre distúrbios psíquicos e manifestações cutâneas. Se estados alérgicos são responsabilizados, com freqüência, por variados sintomas em diferentes órgãos da economia, não é de estranhar que isso também se verifique no sistema nervoso, principalmente quando uma labilidade neurovegetativa se conjugar com a toxicose. O limiar alérgico modifica-se de acordocom inúmeros fatores, sobretudo com os estados emocionais de tonalidade agradável ou desagradável. O tratamento das psiconeuroses alérgicas, quase sempre de origem alimentar, divide-se em dois tempos fundamentais: descoberta e remoção dos alérgenos; assistência psicoterápica prolongada e, nos casos mais rebeldes, tratamento complementar psicanalítico que reajuste a personalidade total do paciente e o liberte do reflexo condicionado de que, nestas circunstâncias, por vezes, é presa.

SUMMARY

Allergic toxicoses are sometimes able to disadjust the total personality of the patient. As these toxic allergic states present great variations so the psychoneuroses they originate are apt to assume various modalities. Based on personal observations, the autors recall that, according to the somatopsychic or psychosomatic balance, an organic process localized out of the nervous system is able to cease severe mental symptoms. They also recall the concomitance or alternation between mental disorders and skin manifestations. Like the symptoms that allergic states can produce in other systems, they are able to act upon the nervous system, especially if they are favoured by neurovegetative instability. The allergic threshold changes in accordance with several factors, particularly with the emotinal mood. In order to treat the allergic psychoneuroses, one must look for the allergens and then provide lengthy psychotherapeutic care: sometimes it is necessary psychoanalytic treatment to restore the total personality and to deliver the patient from the conditioned reflex that had been created.

A tendência da moderna neuropsiquiatria é sobrepor, aos quadros nosográficos clássicos, um critério psiocossomático, ou somatopsíquico, em que o paciente é estudado tanto em superfície como em profundidade. Somentedepois dêsse estudo é que o especialista poderá instituir terapêutica pluridirecional visando beneficiar e restabelecer o equilíbrio da personalidade total do paciente. Deve-se ter sempre presentes, de um lado, os conceitos localizacionistas e, de outro, os das escolas psicológicas. Será preciso não esquecer, também, que "processos mais gerais, fisiológicos ou mais exatamente psicofisiológicos, representando perturbações de funções e que são comuns a tôdauma série de pertubações do sistema nervoso" (Baruk), ainda dominam soberana e freqüentemente o cenário das psiconeuroses. E em tais tipos de distúrbios, as infecções focais, as toxinfecções e os estados tóxicos em geral, funcionam como espinhas ir-ritativas suficientemente poderosas para pôr em relevo um terreno propício às psiconeuroses, acionando-o em seguida com a ajuda freqüente de conflitos internos, recalques, estados catatímicos, de que via de regra acha-se pejado o subconsciente dos que, mesmo em época anterior à moléstia atual, já eram potencialmente neuróticos.

Tentando guiarmo-nos por um ecletismo sadio, procuramos nos manter num meio têrmo razoável. Para isso, principalmente quando tratamos das psiconeuroses que não se enquadram, senão de maneira forçada, em um quadro nosográfico bem definido, temos sempre procurado dar o devido valor tanto aos sintomas que dependem do terreno, da constituição do paciente, dos fatores patoplásticos, como os patogenéticos, responsáveis direitos, em determinadas circunstâncias, pela deflagração do quadro psiconeurótico. Seria truísmo recordar que tais agentes patogenéticos tanto podem ser constituídos por uma infecção focal, uma toxinfecção, um fator psicogenético, como por estados tóxicos das mais variadas espécies.

Entre os fatores ocasionais que põem em cheque e muitas vezes desajustam a personalidade total do paciente, nenhum mais capacitado que a toxicóse alérgica. Precisamos lembrar que as psiconeuroses, em geral, seja qual fôr sua etiopatogenia, se distinguem por não apresentarem o aspecto de fixidez e mesmo de monotonia sintomatológica que carateriza os desarranjos psíquicos ligados ao comprometimento de determinados centros cerebrais. Devemos recordar que esta monotonia de sintomas, quando um sistema anatômico preciso é atingido, pode não se referir tão sómente às perturbações motoras e sensitivas, mas também a certas reações emotivas ou pseudo-emotivas como se observa, por exemplo, em determinados casos de epilepsia extrapiramidal e nas síndromes wilsonianas. Diferentemente dêstes sinais de localização, as psiconeuroses caraterizam-se não sómente pelas modificações que são suscetíveis de sofrer sob a ação de circunstâncias exteriores, como também pelo polimorfismo e instabilidade de sintomas só compreensíveis, muitas vezes, aos observadores que os encaram sob o ponto de vista dinâmico e fisiológico.

Por outro lado, as psiconeuroses alérgicas podem confundir-se com as psiconeuroses puramente psicogenéticas porque a toxicóse alérgica é suscetível de oferecer uma gama muito grande de intensidade, dando azo, quando muito leve, a que o doente se apresente com certo ar de comediante, de pitiático, de simulador. Nestes casos, o estado tóxico alérgico apenas entorpece ligeiramente a personalidade total do paciente, tornando-a complicada e artificiosa, com seu poder de síntese comprometido, dificultando justa adaptação à realidade. O paciente torna-se, então, um desajustado, emaranhando-se fácilmente em atitudes complicadas das quais êle mesmo se acusa. Com gran'de esforço de vontade o indivíduo ainda pode controlar-se nesta fase de intoxicação, com risco, no entanto, de entrar num quadro ansioso, mitigado ou não. Aumente-se todavia o grau da toxicóse alérgica, e a personalidade vai-se espessando e passando dos aspectos pseudo-voluntários ou de pseudo-simulação a fases de comprometimento psíquico mais profundo, nas quais podem vir à tona reações da personalidade as mais disparatadas, distúrbios cenestésicos os mais variados, de parceria ou não com fenômenos de franco automatismo e inibição progressiva da consciência.

Os estados alérgicos podem originar, portanto, quadros neuróticos e psicóticos os mais variados, oferecendo mesmo, não raramente, aspectos clínicos que podem criar a impressão de tratar-se de verdadeira entidade nosográfica, desde que não se descubra o alérgeno ou alérgenos responsáveis por êsse estado de cousas. Tal o caso de:

Caso 1 - G. S., branco, solteiro, com 41 anos de idade, mecânico. Êste paciente, que vimos observando há cêrca de 8 anos, já passou por quadros psiconeu-róticos os mais variados e cada vez mais severos. A princípio apresentou distonta neurovegetativa em que havia pronunciado enxerto pitiático; em seguida um quadro em que predominava o enxerto ansioso; depois um estado confusional para, finalmente, apresentar idéias de influência, pseudo-percepções auditivas e transmissões de pensamento, gerando um núcleo persecutório sistematizado.

O paciente, que sempre apresentou distúrbios digestivos - abdome doloroso à pressão, língua saburrenta - é portador de eczema escrotal que, por vezes, desaparece quase completamente, para ressurgir com bastante intensidade. As melhoras e pioras do estado mental do observando coincidiam com os surtos e desaparecimento do eczema e não com os métodos terapêuticos de choque a que o submetemos por várias vezes.

Há meses, quando a síndrome parafrênica mostrava tendência para firmar-se, o eczema retornou com maior intensidade que nunca, alastrando-se pelo corpo todo, a ponto de levá-lo à cama. Durante os três meses que durou essa erupção cutânea, houve completo restabelecimento dos distúrbios psiconeuróticos, a ponto de pessoas da família dizerem que se tratava de cura espontânea e milagrosa. No entanto, com as melhoras progressivas do eczema, a síndrome parafrênica foi retornando, de forma a haver necessidade de interná-lo; nessa ocasião, colegas que não conheciam a evolução do caso tiveram a impressão de que se tratava de autêntica parafrenia. Nós, no entanto, que não temos mais dúvida de que tudo depende de uma toxicose alérgica, estamos iniciando investigações no sentido de descobrir e eliminar o alérgeno ou alérgenos, responsáveis diretos por êsse estado de cousas.

Êste caso é, por várias razões, bastante instrutivo. Em primeiro lugar, traz à tona, novamente, a importância que se deve dar à lei dos estados em neuropsiquiatria. Se êstepaciente fossevisto por diferentes especialistas nos diversos estádios progressivos de sua psiconeurose alérgica, poderia dar a impressão, sucessivamente, de pitiático, psicastémco, portador de neurose compulsiva, caso de confusão mental e, finalmente, de síndrome parafrênica ou mesmo de verdadeira parafrenia. Estas etapas evolutivas de certos distúrbios, que podem ser condicionadas tanto pelas infecções focais, por toxinfecções, como também pelas psicoses em geral, principalmente as alérgicas, são suscetíveis de criar, no espírito do observador menos atento, ilusões nosográficas que entorpecem o elan do clínico no sentido de investigar o agente etiológico, muitas vezes removível, com restabelecimento subseqüente e integral de tais indivíduos.

Em segundo lugar, constitui êstecaso mais um exemplo do balanço psicossomático que se observa em neuropsiquiatria, intercâmbio êsseem que uma fixação orgânica, fora do sistema nervoso, pode fazer cessar imediatamente desarranjos mentais, às vezes severos.

Em terceiro, revive a velha questão da concomitância e, muitas vezes, alternância entre distúrbios psíquicos e manifestações cutâneas, fato para o qual Mira y Lopes chamou particularmente a atenção. Vários observadores referem-se a mudanças, temperamentais seguindo-se ao desaparecimento de manifestações cutâneas, mudanças essas suscetíveis de levar o paciente até a auto-eliminação.

Não é sómente a pele que pode dar origem a uma alternância psicossomática de origem alérgica, como nos é dado verificar pelo seguinte caso:

Caso 2 - j. B. P. A., branco, brasileiro, solteiro, com 73 anos de idade. Tratava-se de indivíduo de baixa estatura, bastante obeso. A não ser um pronunciado grau de enfisema pulmonar, nada de importante foi assinalado no exame somático, neurológico, e nos antecedentes hereditários. Até a eclosão da primeira crise depressiva, o paciente nunca havia apresentado manifestações neuróticas ou psicóticas. Desde a mocidade sofre de acessos asmáticos muito violentos, costumando apresentar vários deles durante o ano.

No decorrer de 1931, ao contrário do que acontecera nos anos anteriores, o paciente não apresentou crise asmática alguma. Considerava-se curado, quando entrou, pela primeira vez, em uma crise depressiva de colorido melancólico, sendo internado em 2 dezembro 1931. Por essa ocasião, mostrava-se insone, inapetente, com língua saburrosa. Queixava-se de lassidão, desânimo, estava pessimista quanto ao futuro, pensava estar falido e que os seus iriam passar as maiores privações. Ao lado disso, notava-se diminuição da atenção espontânea, a atenção provocada extremamente fatigável, havia bradipsiquia e aversão ao interrogatório, pois êste o cansava extraordinariamente. Assim manteve-se até fins de janeiro 1932, época em que começou a melhorar progressivamente, tendo tido alta, curado, em 5 fevereiro. Retornando à casa, passou mais de seis meses sem ser acometido de asma; passado êste tempo os acessos se reiniciaram com o mesmo ritmo antigo.

Em 1936, novo interregno nos acessos asmáticos, seguido de nova crise depressiva, tendo permanecido dois meses internado e saindo em remissão completa. Em novmebro 1944, outra internação; desta feita, porém, quando; após um mês, ia em plena crise depressiva, foi acometido, subitamente, de violento acesso asmático noturno, tendo amanhecido perfeitamente curado de sua depressão mental. Em abril dêste ano o paciente foi internado, pela quarta vez, com sua costumeira crise depressiva. Interessante é notar que, em caminho, teve ligeiro acesso asmático, ficando livre da depressão por espaço de algumas horas; quando seu filho, que o acompanhava, principiou a pensar na possibilidade de desistir da internação, o paciente mergulhou de novo na síndrome depressiva. Esteve internado por dois meses, tendo alta novamente livre da depressão.

Êste caso dá, igualmente, margem a comentários. Constitui outro exemplo de balanço, de intercâmbio psicossomático ou, melhor, somato-psíquico, entre acessos asmáticos e sintomatologia mental de colorido melancólico, uns substituindo a outra, fazendo lembrar o que ocorre por vezes na epilepsia. Aliás, não são poucos os autores, entre os quais Klein, Forman e Beauchemin, que falam da correlação entre estados alérgicos e certas formas de epilepsia.

Êste caso faz recordar, ainda, o fato do sistema nervoso ter parte nos processos de imunidade relativa ou definitiva, tanto para os estados alérgicos como para certas moléstias infecciosas; van Bogaert já se referiu a casos em que processos encefalíticos sem manifestações cutâneas conferiam imunidade para certas moléstias eruptivas. Em nosso caso, por ocasião do terceiro internamento, a crise asmática - sobrevindo quando a depressão somatopsíquica já chegava ao fim - completou a finalidade desta, que era a de conferir um estado imuno-alérgico, embora temporário. Já na quarta crise depressiva, o acesso asmático - ocorrendo logo no início desta - apesar de benéfico, não foi suficiente para dessensibilizar, embora temporariamente, nosso observando; isto foi feito pela própria evolução de seu desarranjo psíquico.

Para não haver dúvidas sôbrea severidade de algumas toxicoses alérgicas, basta lembrar experiências feitas em animais de laboratório por investigadores americanos. Poindexter injetou, na artéria renal de coelho, sangue humano lavado do tipo A; duas semanas mais tarde, injetou na mesma artéria certa quantidade do mesmo sangue; notou, no rim correspondente à artéria em que o sangue foi injetado, extensas hemorragias capilares, edemas e outras manifestações de anafilaxia local; o rim do lado oposto não mostrava fenômeno de anafilaxia local mas apresentou sinais indicativos de uma sensibilização geral do organismo.

Constitui verdade inconteste o fato de estados tóxicos de natureza alérgicas serem incriminados, em clínica médica, por variados sintomas com sede em diferentes órgãos da economia; discinesias vesiculares, distúrbios hepáticos, intestinais, retites alérgicas verificáveis pela retossig-moidoscopia, rinites, acessos asmáticos, são ocorrências freqüentes com que se deparam os clínicos gerais. Não admira pois que, também para o sistema nervoso, haja distúrbios dessa gênese, principalmente quando a ela se conjuga uma labilidade heurovegetativa.

Não é fácil explicar a patogênese dos estados alérgicos, porque são várias e por vezes contraditórias as teorias, que se erguem em terreno movediço. Não sendo alergistas e tratando tal assunto de maneira acidental, julgamos ter sido Squier quem ventilou a questão com mais clareza. Para êsseautor, alérgico é aqueleque, em dada ocasião, adquiriu sensibilidade para determinada substância estranha específica - em geral uma proteína - e reagiu com a produção de anticorpos contra essa substância. Parte dessas reaginas circula na corrente circulatória e parte está ligada às células dos vários órgãos e vísceras. Todaa vez que as células teciduais sensibilizadas encontram-se com a substância estranha, há uma reunião explosiva no interior ou na superfície do órgão, libertando-se então a histamina ou outra substância semelhante. Tal substância irá, por sua vez, exercer ação química específica, qual a de aumentar a permeabilidade vascular, produzir edemas, espasmos da musculatura lisa e mesmo, nas reações mais severas, queda da pressão sangüínea, choque e até colapso. Para Poindexter, os fenômenos alérgicos decorrem de uma imunização incompleta, pois se os anticorpos estivessem circulando em quantidade suficiente, como seria o caso de indivíduo completamente imunizado, os antígenos agressores seriam neutralizados silenciosamente na torrente sangüínea sem qualquer fenômeno de choque.

Errôneo é afirmar-se que, se um indivíduo fôr alérgico para certa substância, a mais leve exposição a ela é suficiente para desencadear a explosão alérgica. Êste conceito apenas em alguns casos corresponde à realidade dos fatos. A verdade é que cada indivíduo tem seu limiar alérgico para uma dada substância, limiar êsse que pode baixar ou subir de acordocom circunstâncias fortuitas. A êste respeito, Poindexter, nota que os fenômenos alérgicos estão de certo modo subordinados a inúmeros fatores, como sejam: predisposição hereditária, amadurecimento sexual, disendocrinias, grau e condições de exposições do indivíduo ao agente causal, particularidades constitucionais e anormalidades físicas das cavidades pelas quais o agente causal pode penetrar no organismo, infecções anteriores ou infecções focais que tendem a perturbar o equilíbrio físico-quimico normal do conteúdo de certas cavidades revestidas por epitelio, perturbações eletrolíticas dos fluidos - especialmente sódio e potássio - que afetam a irritabilidade do parassimpático, avitaminoses e, enfim, fatores pessoais que aumentam ou diminuem a ação dos enumerados acima. O aumento ou diminuição dêsses fatores acessórios e a combinação possível de vários deles no mesmo indivíduo explicam a. intermitência, o caráter por vezes periódicos das psiconeuroses alérgicas.

Em nossa opinião, concorde, aliás, com o que dizem muitos autores modernos, o limiar alérgico está sobretudo ligado a fatores emocionais que o podem levantar ou baixar de maneira surpreendente, conforme sejam de matiz agradável ou desagradável. Suponhamos, diz Squier, que um determinado indivíduo tenha, para o ovo, um limiar alérgico de 100 unidades hipotéticas; está claro que poderá ingerir impunemente 80 ou mesmo 90 unidades dêssealimento, sem que tenha qualquer fenômeno de choque; é suficiente, no entanto, que sobrevenha um fator emocional com efeito depressivo, representando um acréscimo de 30 unidades, para que as 100 unidades sejam ultrapassadas e haja a reunião explosiva de antígeno agressor com a reagina. Neste sentido, relatamos o seguinte caso:

Caso 3 - X., branco, brasileiro, casado, médico, com 45 anos de idade. Em criança, foi excessivamente tímido, hiperemotivo, de saúde delicada. Até onde alcança sua memória de evocação, relembra que foi sempre um dispéptico, com fenômenos de aerofagia e freqüentes distúrbios gástricos, hepáticos e intestinais; portador de rinite espasmódica persistente, não resolvida por várias intervenções cirúrgicas, inclusive correção do desvio do septo nasal. Até os 20 anos teve saúde geral precária mas, daí em diante, até os 39 anos, mercê da prática de esportes e de uma reação natural do organismo, suas condições de saúde, seu vigor físico aumentaram de muito, embora continuasse a ser dispéptico crônico.

Em 1939, ao par de um episódio gripal muito severo a que não deu a devida atenção, sobrevieram grandes preocupações de ordem financeira e não menores apreensões decorrentes da saúde precária de um filho de tenra idade. O paciente, que nunca deixou de se emocionar fácilmente, de ter leve inclinação para o pessimismo, viu agravados seus distúrbios digestivos, ao mesmo tempo que surgiam em cena os primeiros sintomas francamente neuróticos: flatulência excessiva, crises de ansiedade difusa, extrema irritabilidade, pessimismo, inapetência, atordoações freqüentes, cansaço fácil tanto físico como mental, vômitos biliosos, dôres abdominais sobretudo localizadas no colon transverso e hipocondrio direito, palpitações, extrassístoles e duas crises de taquicardia paroxística com a duração de 15 a 20 minutos, respectivamente. Êsse estado de cousas arrastou-se até 1941 sem qualquer alteração. Nessa data, descobriu-se que o paciente era portador de amebíase crônica; submeteu-se a tratamento incompleto, mal suportado, com algumas melhoras sobretudo com referência às condições gerais de saúde. Em 1942, foi amigdalectomizado, também com melhoras discretas no conjunto de sintomas, sem, contudo, resolver êsse estado de cousas, pois continuou a trabalhar e a levar vida aparentemente normal, à custa de tremendo esforço volitivo.

Em princípios de 1943, os testes cutâneos para alergia foram negativos, com exceção do leite, para o qual não houve reação francamente positiva, mas bastante suspeita. Absteve-se dêsse alimento durante 15 dias, tendo melhoras acentuadas e rápidas dos distúrbios digestivos, dos fenômenos neuróticos e do apetite. Continuavam, contudo, as atordoações, as extrassístoles, as crises subintrantes de cefa-léia, a rinite espasmódica. Abandonou o uso de café, mesmo tendo os testes cutâneos sido negativos para esta substância; desde então, desaparecimento rápido dos últimos sintomas, volta à saúde somatopsiquica com aumento progressivo e rápido da curva ponderal.

Convém frisar que, das duas vezes que o paciente tentou voltar ao uso dêsses dois alimentos, a título de experiência, foi castigado, no caso do leite, por violenta retite alérgica e retorno dos distúrbios digestivos e, no do café, pelo reaparecimento das extrassístoles, de ligeira crise de taquicardia paroxística, das sensações vertiginosas e da rinite espasmódica.

A importância e freqüência do fator emocional no deflagramento dos fenômenos alérgicos é tão pronunciada que certos entusiastas atribuem a êle um papel por assim dizer primordial, exclusivo, na produção de muitos fenômenos alérgicos. Assim é que, para Alexander, psicanalista húngaro, certas formas de asma simbolizariam, em não poucos casos, a angústia do chamado desmame psicológico ou, por outras palavras, o receio de tornar-se independente do amor materno: o indivíduo luta entre o desejo e o temor de tal ato, o efeito seria um contração espasmódica dos músculos de Reisessen. Estas interpretações são favorecidas pelo fato de as manifestações alérgicas apresentarem, em geral, uma reação rápida, bizarra, caraterizada pelo aumento da permeabilidade capilar, edema tecidual e espasmo dos músculos lisos, não permanecendo nenhuma modificação residual no tecido, depois do desaparecimento da crise aguda.

De outro lado, estão os alergistas intransigentes, que dão importância capital, nas moléstias alérgicas, ao encontro explosivo do alergeno com a reagina resultante dêsseencontro, tão fatal como aquela de um ácido e uma base no interior de um tubo de ensaio. Estribam-se para isso em certos fatos experimentais, tais como a possibilidade da transmissão passiva e local da alergia; assim, se injetarmos sangue de um indivíduo alérgico a determinada substância, na pele de outro paciente e colocarmos em contacto com essa região a substância alergizante, poderemos presenciar manifestações alérgicas localizadas.

Como sempre sóe acontecer, a verdade está, em nossa opinião, com os que adotam o meio têrmo, isto é, com os que afirmam que os fenômenos alérgicos estão subordinados, pelo menos inicialmente, a uma união ruidosa do alérgeno com a reagina, união essa que pode ser grandemente modificada e até mesmo bloqueada pelos agentes psicógenos.

Assim é que Clarkson relata o caso de uma jovem de 18 anos cujo teste Intracutâneo era positivo para o ovo. Repetindo êsseteste com a paciente em sono hipnótico, a experiência resultou negativa e tornou a mostrar-se positiva com a doente em estado normal.

Muitas vezes, o que leva a admitir origem psicógena pura para certos fenômenos alérgicos é que, depois de certo tempo, se produzem verdadeiros reflexos condicionados. Tal o caso de célebre literato, Marcei Proust se não nos falha a memória, que, sendo alérgico ao polen de determinada flor, foi acometido por violento acesso asmático quando, certo dia, viu-se frente a ela, tendo verificado, depois, que a flor era artificial. A respeito dos reflexos condicionados pós-alérgicos, há casos verdadeiramente curiosos, como o daquele médico alemão e seu assistente que, depois de várias experiências no sentido de produzirem neles mesmos acessos de asma, acabaram asmáticos crônicos. Êsses reflexos condicionados são, por vezes, tão perfeitos que objetos, situações, recordações ou mesmo certas palavras impregnadas de intensa tonalidade afetiva, podem reproduzir sintomas primitivamente dependentes de uma sensibilização alérgica. Essa, a nosso ver, a razão que levou Marshall a criar seu conceito de psicoalergia, visando filiar às leis da alergia fenômenos que se passam no terreno da psicologia.

Brown e Gotein, num estudo - "Mind in Asthma and Allergy" - observaram 80 doentes, sendo 40 asmáticos e 40 portadores de manifestações alérgicas diversas, e chegaram à conclusão de que em todos eles havia acentuado grau de desajustamento neurótico, tomando ora a forma de anomalias do caráter, ora de distúrbios emocionais. Não temos dúvidas que, entre os alérgicos em geral e principalmente entre os portadores de asma, há muitos indivíduos desajustados. Nestes casos, os acessos asmáticos, embora inicialmente alérgicos, ficam, depois, subordinados à influência das constelações anímicas inconscientes, aos complexos e aos processos psíquicos reprimidos. Achamos, no entanto, que não são são raros os asmáticos sem qualquer componente neurótico. Algumas vezes o componente neurótico parece estar diretamente subordinado à ansiedade legítima e normal, oriunda do pânico que os acessos asmáticos amiudados provocam. Aqui, o enxerto de matiz neurótico não é mais que um epifenómeno e cessa automaticamente com o desaparecimento dos acessos asmáticos. Tal o caso de:

Caso 4 - C. T., branca, brasileira, solteira, com 40 anos de idade. Esta paciente, asmática desde a puberdade, viu, a partir de 1938, seus acessos agravarem-se em freqüência e intensidade. Nessas condições, a paciente, que não tem antecedentes neuróticos tanto pessoais como familiares, passou a apresentar-se deprimida, ansiosa, irritadiça e inquieta. Ao lado da terapêutica destinada a combater essa sintomatologia psíquica acessória, fizemos tratamento auto-hemoterápico por via subcutânea, embora não tivéssemos pretenções de curar o processo asmático.

Ao cabo de 10 aplicações, em quantidade ascendente até 20 c.c, os acessos asmáticos cessaram e, com isso, desapareceu inteiramente o enxerto neurótico. Sendo pessoa de nossa amizade, com certa freqüência sabemos que continua até a presente data sem acessos asmáticos e inteiramente ajustada em sua vida interna e exterior. Digamos de passagem que, em outros casos de asma com epifenômenos. neuróticos, temos repetido êsse método terapêutico sem resultados apreciáveis.

Ainda como argumento em prol do papel da emoção no desencadeamento dos fenômenos alérgicos, Katherine Mac Innis pesquisou sintomas clínicos de alergia em 7000 psicopatas portadores de psicoses severas, encontrando em todo êssegrupo sómente 5 pacientes alérgicos, ou seja, 0,07%; êsteresultado está em flagrante contraste com a incidência geralmente aceita em matéria de alergia, que dá um alérgico para cada 7 pessoas. A autora atribuiu ao embotamento da emotividade nos portadores de graves psiçopatias, a responsabilidade por essa ocorrência. Estamos de acordo que em grande parte é verdadeira tal asserção. Devemos lembrar, no entanto, como o prova mossa segunda observação, que não raramente a crise mental já constitui manifestação de alergia. Tanto isso é verdade que essa mesma autora verificou, posteriormente, que três dêsses pacientes manifestavam o ritmo típico do balanço psicossomático, com manifestações somáticas alérgicas quando se mitigavam os fenômenos psíquicos e vice-versa.

Mais um exemplo do papel destacado que a emotividade, os conflitos e os recalques têm no bloqueio ou produção dos fenômenos alérgicos, é dado pelo que tivemos ocasião de verificar em alguns pacientes internados com o rótulo de alcoolistas, mas nos quais o etilismo era apenas uma cortina de fumaça atrás da qual se escondia uma personalidade desajustada, cheia de complexos e recalques de todo gênero. Em tais individuos, não é raro aparecerem, depois de algum tempo de internação, manifestações alérgicas tais como urticárias, rinites espasmódicas e recrudescimento de eczemas. Essas manifestações eram sobretudo freqüentes quando se aproximava a data da saída de tais pacientes, fato que os emocionava fortemente. O caso que relatamos a seguir é ilustrativo:

Caso 5 - O. C, pardo, brasileiro, com 39 anos de idade. Êsse paciente, que desde a infância mostrou-se tímido, excessivamente escrupuloso, com tendência a raptus de ansiedade difusa, foi acometido, na puberdade, por acessos asmáticos que se repetiam amiudadamente. Aos 19 anos, em uma festa, começou a fazer uso de bebidas alcoólicas, verificando que a timidez desaparecia como por encanto, ao mesmo passo que se sentia mais senhor de si, mais dono de sua vontade. Passou a beber diariamente, notando, agradavelmente surpreso, que o álcool, além de reajustá-lo passageiramente, fazia com que os acessos asmáticos se tornassem muito raros e incomparavelmente mais mitigados. Passar do uso ao abuso de tão heróica terapêutica foi questão de pouco tempo. Por várias vezes o paciente tentou abster-se do álcool, mas em todas elas os acessos asmáticos retornavam com redobrada violência.

Ultimamente, começou a sentir os efeitos psicossomáticos do etilismo, tudo culminando com o aparecimento de pseudo-percepções auditivas de fundo terrorista e zoopsias freqüentes que entraram logo a condicionar delírio alcoólico típico. Tal o motivo pelo qual foi ter à nossa presença. Infelizmente, logo depois, perdemos o paciente de vista, não nos sendo possível dar informes sôbre a evolução do caso.

A variedade de alérgenos é enorme. Para termos idéia aproximada a respeito, basta lembrarmos que as próprias células do organismo podem tornar-se proteínas estranhas e, sob determinadas condições, servirem como agentes sensibilizadores: os oftalmologistas conhecem a oftalmía simpática, conseqüente ao trauma do corpo ciliar ou do cristalino; os clínicos gerais, as manifestações alérgicas após as transfusões de sangue submetido a manobras mais ou menos ásperas, mesmo que se tenha feito a transfusão de homotipos; as manifestações alérgicas depois do dano ou morte de um grupo de células que perderam seu suprimento de sangue; respostas alérgicas das articulações, rins, ou de outro órgão ou tecido nos quais prévios traumas químicos ou físicos converteram estas células em corpos estranhos; sensibilidade às substâncias medicamentosas, aos analgésicos do tipo da aspirina; muitos tipos de pólens, pelos de roupa e outros alérgenos domésticos; tipos especiais de "rouges" e pós de arroz; luz solar e parasitas domésticos. Isso sem falar em alergia bacteriana, pois sabemos que, neste terreno, simples mudança do pH vaginal, dando origem a uma flora inespecífica, pode causar dermatite do pênis, sensibilizando-o ao menor trauma. Outrossim, o estreptococo, hospedeiro habitual da garganta de um dos cônjuges, pode sensibilizar o outro. Devemos lembrarmo-nos ainda que, via de regra, os estados alérgicos aumentam a instabilidade neurovegetativa, baixando o limiar de sensibilização, permitindo que o paciente seja alergizado por mais de um agente.

No entanto, apesar desta imensa variedade de substâncias sensibi-lizadoras, temos a impressão de que, quando se trata de psiconeuroses alérgicas, na grande maioria dos casos está em cena uma proteína estranha, de origem bacteriana ou, ainda mais freqüentemente, provinda de alimentos que o paciente vem ingerindo há meses ou anos. Isso porque, nestes últimos casos, a ação sensibilizante é duradoura e continua, podendo dar origem não sómente a alterações anatômicas mais ou menos localizadas, como também a distúrbios cenestésicos e distonias neuro-vegetativas severas e prolongadas.

Quanto ao tratamento das psiconueroses alérgicas, a conduta do especialista decorre do que acabamos de expor e divide-se fundamentalmente em dois tempos. No primeiro, descoberta e remoção do ou dos agentes sensibilizantes, sejam eles quais forem. No segundo, assistência psicoterápica prolongada e, nos casos mais rebeldes, tratamento complementar psicanalítico, que reajuste a personalidade do indivíduo e o li-"berte do reflexo condicionado em que, nestas circunstâncias, por vezes mergulha.

Tanto no primeiro como no segundo caso, a cooperação ativa do paciente auxiliará de maneira poderosa o neuropsiquatra a combater as manifestações psiconeuróticas conseqüentes e decorrentes de tal ou qual estado alérgico.A descoberta do alérgeno é tarefa delicadíssima. Com o advento da cuti e intradermo-reação, houve grande entusiasmo nesse sentido mas, com o decorrer dos tempos, êsse método de investigação, embora útil em muitos casos, tem-se mostrado falho. Ainda recentemente Leon Unger publicou interessante caso de uma senhora portadora de hemicrania, a qual desapareceu após a supressão de determinados alimentos; no entanto, a cuti e intradermoreação tinham resultados negativos.

Mesmo precindindo dos exames, radiológicos e retossigmoidoscó-picos, que oferecem dados úteis, certos sinais clínicos podem fazer pensar em um estado alérgico digestivo; entre êsses sinais de presunção, estão a língua saburrosa, a sensação intermitente de ardor nos tratos grastro-intestinal e urinário, as aftas bucais, o herpes labial, a sensação de plenitude gástrica e intestinal, a flatulência, as discinesias vesiculares sem causas explícitas, as dôres abdominais vagas e difusas, grande lassidão, os estados nauseosos sem causa aparente e as crises diarreicas. Nestes casos, podemos tentar a cuti e intradermo-reação; mas ainda que estas resultem negativas, é lícito propor o expediente da supressão dos alimentos de que o paciente costuma fazer uso, cada um por sua vez e pelo espaço de 15 dias. Se persistirem imodifiçados os sintomas, entra novamente no regime alimentar a substância eliminada, saindo outra em seu lugar, e assim por diante. E' obvio notar que, para o cliente concordar e seguir tal prescrição, é necessário que tenha certo grau de inteligência e cultura, pois em caso contrário não se convence e fica até decepcionado em notar que atribuímos seus distúrbios psiconeuroticos, pelo menos em parte, a substâncias alimentares de que sempre fêz uso e que são, no seu entender, perfeitamente inócuas. Em alguns casos, terá vantagens o emprego da autohemoterapia.

Trabalho apresentado à Secção de Neuro-Psiquiatria da Associação Paulista de Medicina em 5 outubro 1945.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1945
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