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Encéfalo-meningite tuberculosa

REGISTRO DE CASOS

Encéfalo-meningite tuberculosa

J. F. Monteiro Salles

Chefe de Laboratório do Instituto Penido Burnier (Campinas)

A tuberculosa intracraniana, não obstante a volumosa literatura que lhe tem sido dedicada, encerra muitas questões obscuras ou difíceis de interpretar, em virtude da sua exteriorização polimorfa do ponto de vista neurológico e humoral. No tocante ao diagnóstico e, em especial, às alterações do líquor, há, muitas vezes, casos desconcertantes e, até mesmo, passíveis de interpretação errônea. Nos livros de neurologia, o capítulo da tuberculose intracraniana, de regra, está todo escrito sob a única rúbrica de meningite tuberculosa, sendo salientado sempre o caráter polimorfo dessa meningite. Ao lado dos quadros típicos, contrastam as formas ditas atípicas que pouco ou nada apresentam de meningite propriamente dita. Lange1 1 . Lange, O. - O liqüido cefalorraquidiano em clínica. Edição da Cia. de Melhoramentos de S. Paulo, 1937, págs. 95-102. adverte que, na prática, compreende-se como meningite tuberculosa tôdos os processos meníngeos, sejam primitivos ou secundários, desde que aparecem no líquor as alterações peculiares a um processo inflamatório com a presença do bacilo de Koch. A meningite é, em muitos casos, apenas elemento secundário, sendo principais as lesões intraparenquimatosas. Entretanto, o fato dos tratadistas apresentarem sob a única rubrica de meningites tuberculosas, todo o assunto da tuberculose intracraniana, dificulta sobremaneira a orientação diagnostica diante de um caso atípico. Foi o que nos aconteceu recentemente, no caso que, resumidamente, passamos a relatar:

R. K. M., com 6 anos de idade, atendido em 5 de fevereiro de 1945 na secção de oftalmologia do Instituto Penido Burnier, pelo Dr. Souza Queiroz (ficha 129160). A doença datava de 20 dias, iniciada por cefaléia, febre, e depois, sonolência. Do ponto de vista oftalmológico, apresentava paralisia bilateral do reto externo e paralisia da pupila no OE, que estava em midríase média. Estase venosa ligeira, revelada pela tortuosidade das veias retinianas. Tratava-se de criança abatida, com 39° C de temperatura axilar, sonolenta, com o olhar vago, apresentando espôço dos sinais de Kernig e Brudzinsky, ausência de rigidez da nuca, hiperestesia cutânea acentuada, hipotonia muscular generalizada com abolição dos reflexos tendinosos dos membros inferiores. Os demais órgãos e aparelhos nada apresentavam digno de nota. Diante dêste quadro elínico, dos dados oftalmológicos e do histórico, pensamos em meningite tuberculosa. Neste sentido conduzimos as primeiras provas, iniciadas com a raquicentese.

A punção suboccipital forneceu líquor límpido e incolor, formando-se ligeiro retículo fibrinoso; citologia - 28 células por mm8; cloretos - 7,91 grs. por litro; glicose - 0,92 grs. por litro; proteínas totais - 0,45 grs. por litro (Nissl) ; r. Pandy e Nonne levemente positivas; r. Takata-Ara positiva (tipo misto) ; r. benjoim 00012.22100.00000.0; r. Wassermann negativa; exame bacterioscópico após sedimentação prolongada (Gram e Ziehl-Nielsen) ; êste exame demonstrou, após pesquisa exaustiva, duas formações álcool-ácido-resistentes em bastonetes, encontradas num mesmo campo, pouco típicas porque mais curtas e mais espessas que habitualmente.

Algumas das pesquisas confirmavam a primeira impressão clínica (retículo de Mya, existência das duas formas bacilares). As demais, em especial as dosagens de glicose e cloretos que mostravam cifras elevadas, infirmavam o diagnóstico. A reação de Takata-Ara, habitualmente intensamente positiva, com viragem da coloração nos processos tuberculosos, resultou levemente positiva e ainda assim de tipo misto; a reação do benjoin coloidal forneceu resultado de tipo parenquimatoso; as globulinas estavam pouco aumentadas. Tais elementos vinham pôr em cheque a identidade das formações bacilares vistas pelo exame bac-terioscópio; em conseqüência, êste resultado foi encarado como duvidoso, tanto mais que não fora possível encontrar outros bacilos em pesquisas subseqüentes.

Admitimos, então, como possível, um processo encef ali tico, possivelmente a moléstia de Von Economo. Para esta conclusão nos baseamos nos seguintes dados: o quadro clínico era predominantemente encefalítico; a evolução da moléstia fazia já supor a sua fase final, visto como o doente estava na quarta semana de doença e, portanto, seriam de esperar mais evidentes os sinais da meningite tuberculosa no que se refere ao quadro liquórico; a curva central do benjoin, a hiperglicor-raquia e a hipercloretorraquia davam o cunho peculiar de um processo encef alítico em contraste com o que acontece nos processos meningíticos; a radiografia do tórax, enfim, resultara inteiramente normal. Nesta ordem de ideias, reformamos o primitivo diagnóstico, ficando com o de encefalite. até que outros elementos viessem confirmar ou infirmar uma ou outra hipótese. Assim, foi feita a inoculação em cobaio da suspensão do sedimento do líquor e a criança ficou em observação, medicada do ponto de vista sintomático com soros glicosado e cloretado isotônicos, com analépticos cárdio-vásculo-pulmonares e, do ponto de vista anti-infeccioso, com salicilato de sódio.

O estado geral agravou-se paulatinamente. O torpor acentuou-se, apareceram movimentos involuntários dos membros superiores, contrações tônicas dos inferiores, instalou-se uma paraplegia central flácida e incontinência esfincteriana, não mais foi possível a alimentação; a temperatura se manteve elevada, com pequenas remissões matinais. Dois dias depois da primeira punção fizemos outra, lombar, obtendo: líquor límpido e incolor com formação de retículo de Mya; bacterioscopia negativa, apesar de feita sôbre o sedimento de centrifugação de todo o volume retirado (18 cc.) ; citologia - fórmula leucocitária - linfócitos 72%, médios mo-nonucleares 5%, grandes mononucleares 6%, polinucleares neutrófilos 17%; proteínas totais - 0,55; glicose - 0,55 grs. por litro; cloretos - 6,24 grs. por litro; r. Pandy e Nonne levemente positivas; r. Takata-Ara positiva (tipo misto); h. benjoim - 00002.22222.00000.0; reação do triptofano negativa; reação de Levin-son negativa.

Com êste novo resultado pensamos estivesse confirmado o diagnóstico de encefalite, baseados nos fatos seguintes; curva do benjoim atingindo a zona parenquimatosa; ausência de bacilos álcool-ácido-resisten-tes confirmando a suspeita de que a primeira bacterioscopia tivesse sido falsa; as globulinas e a reação de Takata-Ara não sofreram modificações em relação ao primeiro exame; glicorraquia normal - a queda observada em relação ao primeiro exame foi relacionada à falta de alimentação e conseqüente agravação da autofagia do doente (tivemos o cuidado de puncionar no período da manhã, com grande intervalo portanto da última injeção de sôro glicosado feita na véspera) ; o mesmo se diga quanto à cloretorraquia; não havia pleocitose que viesse confirmar um processo meningítico; não houve agravação no quadro li-quórico, como seria de esperar tanto pela evolução grave da doença quanto pelo fato dêste segundo exame ter sido feito com líquor colhido por via lombar; finalmente, as reações de Levinson e do triptofano, tidas como bons elementos no diagnóstico diferencial, resultaram negativas.

O quadro clínico agravou-se progressivamente, apareceram contraturas dos membros inferiores, o menino aos poucos entrou em coma, falecendo ao cabo de 3 dias, tendo sido diagnosticada, definitivamente, encefalite epidêmica de Von Economo. Tempos depois, entretanto, revendo a cobaia inoculada, encontramos uma adenopatia caseosa generalizada contendo bacilos de Koch. Voltamos, portanto, ao primeiro diagnóstico etiológico de tuberculose, embora nos parecesse razoável manter o diagnóstico clínico de encefalite que, por motivos independentes de nossa vontade, não pudemos confirmar pelo estudo necroscópico.

Não temos intenção de fazer estudo bibliográfico do debatido assunto da tuberculose intracraniana. Apenas recordamos que casos atípicos de meningites tuberculosas, os mais variados quanto às alterações liquóricas (desde ausência de pleocitose com presença de bacilos, até pleocitose muito intensa e aparecimento intermitente de bacilos e hiper-glicorraquia) já têm sido relatados na literatura, conforme se poderá ver no excelente livro de Lange 2 2 . Lange, O. - Loc. cit. 1. . Por outro lado, Vbto Bernales 3 3 . Voto Bernales, J. - Tuberculosis cerebral. Estúdio anátomo-clínico. Rev. de Neuro-Psiquiatria (Lima) 5:165-270 (junho) 1942. evidenciou bem as dificuldades diagnosticas entre as várias formas revestidas pela localização encefálica da tuberculose. É intenção nossa, comentando o caso ora relatado, acentuar os pontos seguintes:

1 - a dificuldade para interpretar corretamente um caso como o apresentado. Tal dificuldade é devida ao fato de ser pouco clara a divisão adotada nos livros de neurologia no referente ao assunto. De fato, sempre é encarada a meningite como elemento dominante. Ora, não foi isso que observamos mas sim um quadro encefalítico bem cara-terizado, tanto clínica quanto humoralmente. E' claro que sempre há um comprometimento meníngeo nos processos difusos do encéfalo, comprometimento êsse que é traduzido pelas alterações mais ou menos peculiares do líquor, sem que por isso possamos falar propriamente em meningite. E' o que acontece, por exemplo, na neurolues parenquimatosa, na encefalite epidêmica, na moléstia de Heine-Medin. Por outro lado, há comprometimento mais ou menos acentuado da substância nervosa nas fases terminais das meningites graves, purulentas ou tuberculosas. Mas nestas eventualidades o quadro humoral da meningite é típico, dominante, não dando lugar a dúvidas, mormente se o estudo li-quórico fôr feito em série. Tal não se deu em nosso caso. Daí interpretarmos o quadro como de encefalite primitiva, considerando a meningite secundária às lesões parenquimatosas. Desde já fica claro que não poderíamos pensar na forma tumoral da tuberculose encefálica, nem na chamada comicial de Voto Bernales;

2 - os casos atípicos de meningite tuberculosa não passam, a nosso ver, de encefalites ou de encéfalo-meningites; é o que acontenceu no caso publicado por Corrêa Lemos4 4 . Corrêa Lemos - Meningite tuberculosa tardia de forma delirante no adulto. Rev. Bras. Med. (Rio de Janeiro) 2:295 (abril) 1945. . Não fôsse o aparecimento dos bacilos da tuberculose, pela pesquisa direta ou pela inoculação, casos como o nosso seriam rotulados como de encefalites do tipo epidêmico. Em conseqüência, impõe-se a inoculação, nos casos duvidosos ou de bacterioscopia negativa, como elementos de rotina diante de quadros encéfalo-meningíticos não purulentos. Essa prática virá revelar, possìvelmente, maior incidência da tuberculose intracraniana na prática civil ou mesmo hospitalar;

3 - deve-se anotar a presença de bacilos de Koch em líquor límpido, sem reação leucocitária importante. O fato de ter sido negativa a pesquisa no líquor da segunda punção não pode ser interpretado como a presença intermitente do bacilo, porque não foi praticada a inoculação dêste segundo líquor. Confirmamos também o valor da formação espontânea do retículo de fibrina (retículo de Mya) para orientação diagnostica. Nos casos não suspeitados bastará o aparecimento dêste retículo para que as pesquisas sejam orientadas na descoberta do agente tuberculoso.

4 - as demais provas humorais, para o diagnóstico da tuberculose intracraniana, ficam em segundo plano. A nosso ver as dosagens químicas poderão servir para fundamentar o diagnóstico anatômico, isto é, para avaliar do predomínio na localização das lesões. Haveria hipogli-corraquia e hipocloretorraquia nas formas meningíticas; hiperglicorra-quia e hipercloretorraquia, nas encefalíticas;

5 - de acôrdo com a nossa e com a alheia experiência, e baseados nos quadros relatados na literatura compulsada, poderemos encarar a tuberculose intracraniana, para fins práticos na clínica, sob triplo ponto de vista: a - a forma meningítica pròpriamente dita, bem carate-rizada clínica e humoralmente; b - a forma encefalítica, que comporta dois grupos, difuso e localizado, de acôrdo com a sintomatologia e com os achados anatômicos; c - a forma mista, encéfalo-meníngitica (sinais clínicos de encefalite, reação humoral do tipo ainda encefalítico com presença de bacilos e retículo de Mya).

Isto de forma alguma pretende ser uma classificação. Apenas uma sistematização que deverá ser criticada com o prosseguimento da nossa experiência. Dentre as várias classificações propostas, nenhuma poderá ser adotada do ponto de vista exclusivamente prático se se atentar que, na clínica civil, é excepcional a possibilidade de efetuar a necropsia. Na última classificação que temos em mãos, a de Voto Bernales, muito boa porque baseada numa crítica extensa do problema, não encontramos razões suficientes para aceitar a forma comicial. Esta, é claro, pertence à forma encefalítica (ou encéfalo-meningítica) localizada. Dado o polimorfismo clínico e humoral da moléstia, uma classificação baseada no9 sintomas seria perfeitamente supérflua.

Instituto Penido Burnier, Campinas - S. Paulo.

  • 1. Lange, O. - O liqüido cefalorraquidiano em clínica. Edição da Cia. de Melhoramentos de S. Paulo, 1937, págs. 95-102.
  • 3. Voto Bernales, J. - Tuberculosis cerebral. Estúdio anátomo-clínico. Rev. de Neuro-Psiquiatria (Lima) 5:165-270 (junho) 1942.
  • 4. Corrêa Lemos - Meningite tuberculosa tardia de forma delirante no adulto. Rev. Bras. Med. (Rio de Janeiro) 2:295 (abril) 1945.
  • 1
    . Lange, O. - O liqüido cefalorraquidiano em clínica. Edição da Cia. de Melhoramentos de S. Paulo, 1937, págs. 95-102.
  • 2
    . Lange, O. - Loc. cit. 1.
  • 3
    . Voto Bernales, J. - Tuberculosis cerebral. Estúdio anátomo-clínico. Rev. de Neuro-Psiquiatria (Lima) 5:165-270 (junho) 1942.
  • 4
    . Corrêa Lemos - Meningite tuberculosa tardia de forma delirante no adulto. Rev. Bras. Med. (Rio de Janeiro) 2:295 (abril) 1945.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Set 1945
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