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Considerações a propósito de cinco casos de afasia motora

Considerações a propósito de cinco casos de afasia motora

Paulino W. LongoI; Antonio B. LefêvreII

ICatedrático de Neurologia na Escola Paulista de Medicina

IIAssistente de Neurologia na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

A razão de ser das considerações que passaremos a expor reside no caráter prático das mesmas, não sómente no que diz respeito a algumas particularidades observadas no exame dos doentes, como também pelos aspectos muitas vezes curiosos verificados por ocasião da prática dos exercícios de reeducação.

Tôdas as observação aqui referidas apresentam muitas deficiências porque tôdos os doentes são de clínica particular - quatro da clínica do Prof. Paulino W. Longo e um examinado por um de nós juntamente com o Prof. A. Ombredane - o que tornou inexequível a prática de alguns dos exames complementares de rotina em clínica hospitalar; aliás, no que diz respeito pròpriamente ao estudo das afasias, estas provas poderiam ser dispensadas sem grande dano. Em virtude de não pretendermos fazer relato detalhado de cada um dos casos, faremos uma visão de conjunto sôbre as afasias dentro de um critério clínico, apresentando oportunamente as referências sôbre os casos.

Inúmeras têm sido as explicações propostas para os fenômenos verificados nos afásicos, e a quase totalidade delas peca pelo fato de não dispensarem a merecida atenção aos aspectos psicológicos da palavra normal e patológica. Sem uma base sólida fundada em uma investigação psicopatológica, êstes fenômenos tornaram-se extremamente confusos e incapazes de se ajustar a uma interpretação que os abarque em conjunto. Já Baillarger, na metade do século XIX, criticava a explicação do comportamento dos afásicos por uma amnésia ou incoordenação dos movimentos da palavra. O doente algumas vezes pode escrever aquilo que não sabe falar, e, nestes casos, nota-se não a impossibilidade de articular um ou outro fonema mas sim a incapacidade de articular tal fonema ou palavra em um momento oportuno. É facílimo de verificar, examinando afásicos motores, que um determinado fonema que não pode ser pronunciado em uma palavra o poderá ser, de maneira absolutamente correta, em outra palavra, não devendo portanto ser interpretada a não-articulação como sendo devida a uma alteração do mecanismo articular pròpriamente dito. Um de nossos pacientes - L,G. - dizia de maneira esteriotipada a expressão "até logo", sendo, entretanto, incapaz de repetir a mesma expressão voluntariamente. Êstes mesmo paciente, nos exercícios de reeducação, tinha grande dificuldade em pronunciar voluntariamente tôdas as sílabas formadas com a letra "g", inclusive "go", que fazia parte de sua emissão esteriotipada.

Nem se pode tampouco aceitar a explicação de Trousseau, que afirmava serem êstes doentes vítimas de uma amnésia especial cara-terizada pela perda da memória dos movimentos articulatórios; outro paciente nosso - H.N. - dizia "pode entrar" quando batíamos na porta de seu quarto e era incapaz de repetir esta expressão quando ordenávamos. Torna-se quase desnecessário insistir sôbre a precariedade da explicação proposta por Trousseau; é suficiente lembrar como é pequena a intervenção da memória na execução do ato articular, ato puramente reflexo segundo a moderna concepção de Fromment, desligado portanto, no momento de sua execução, de qualquer contacto com a memória de movimentos articulatórios.

Muito menos ainda podemos aceitar a idéia de uma desordem no órgão coordenador da palavra, como pretendia o conceito de Bouillaud, esposado por Pierre Marie e Broca, pois o mesmo contraria formalmente os fatos objetivos verificados na clínica das afasias; um de nossos pacientes - N.M. - cêrca de três meses depois de ocorrido o icto, quando a hemiplegia já havia regredido completamente mas ainda se encontrava inteiramente anártrico, estando nos fundos da loja de que é proprietário, em dado momento, com grande espanto da espôsa, olhou para um caixote de mercadorias e pronunciou de maneira absolutamente correta: "premiado na exposição internacional." Outro paciente - L.G - pessoa de boa cultura e fina educação, incapaz de pronunciar determinado fonema por ocasião de uma sessão de reeducação, pronunciou corretamente a expressão "porca miséria." Poderíamos encadear longa série de exemplos desta natureza; palavras ou frases são pronunciadas esporadicamente pelos afásicos, fato êste que de início desperta grandes esperanças nos familiares, que supõem estar sendo superada a barreira do mutismo que tolhe êstes doentes, esperanças muito em breve abandonadas pela verificação da persistência do quadro patológico. Um de nossos pacientes - E.B. - completamente anártrico, estando à mesa disse, em uma ocasião "não quero mais!" e, em outra, "me dá água."

Foi Hughlings Jackson quem pôs ordem no grande caos que eram as afasias; até que suas obras fossem descobertas pelos neurologistas, reinava a maior das confusões, pois os neurologistas, baseados em um ponto de partida completamente falso que era o associacionismo (corrente psicológica que, diga-se de passagem, sempre gozou de um prestígio muito maior junto aos médicos que aos psicólogos e filósofos), tinham como meta muito mais a descoberta de um centro cerebral onde estivesse coletada a sempre citada mas nunca claramente definida "memória das palavras," do que pròpriamente a interpretação dos dados objetivos fornecidos pelos doentes. A concepção de Jackson partiu da observação acurada e minuciosa dos fatos clínicos; o que havia até então nada mais era que sem-número de interpretações de quadros clínicos sem um conceito geral que englobasse tôdas as observações, aparentemente tão discordantes, dentro de um critério explicativo uno. Os neurologistas associacionistas - a grande maioria - reduziram a linguagem à combinação de imagens verbais sensoriais e cinestésicas cujo despertar se faria ao nível de centros próprios e cuja evocação recíproca seria assegurada por fibras de associação ligando êstes centros entre si. Nasceu daí a tendência a dissociar os quadros de perturbação da palavra em sensoriais, motores e de condução.

Não iremos lembrar aqui os princípios gerais da especulação jack-soniana. Lembraremos apenas, ràpidamente, aquilo que diz respeito aos distúrbios da linguagem que nos interessam no momento. É preciso que tenhamos bem presente o significado do qualificativo "automático", que deve ser considerado especificamente para cada caso em estudo ; é evidente que aquilo que é automático para o professor de filosofia não o é para o trabalhador braçal, e vice-versa.

Alguns autores, entre os quais Abraham Low 1 1 . Low, A. - Studies in Infant Speech and Thought. Univ. of I11. Bull., maio, 1936. , procuraram encontrar uma confirmação para o conceito fundamental proposto por Jackson de que a moléstia reproduz, na dissolução das funções, em ordem inversa, aquilo que se havia prèviamente observado na evolução das mesmas. Êstes autor americano, estudando de maneira exaustiva a evolução da linguagem de três crianças, procurou verificar se na realidade iria encontrar nelas manifestações superponíveis àquelas verificadas nos afásicos. Sua conclusão foi a de que não é possível a afirmação ou negação dêste conceito com tão poucas observações, uma vez que foram muito grandes as diferenças entre os resultados colhidos com as três crianças. Poderíamos esperar que o desenvolvimento destes estudos trouxesse algum elemento para ajuizar sôbre o valor do conceito jack-soniano? A respostas a esta questão foi dada por Alajouanine, Ombredane e Durand 2 2 . Alajouanine, Ombredane e Durand - Le syndrome de désintégration phonétique dans l'aphasie, 1939. , depois de estudarem diversos afásicos sob os pontos de vista neurológico, psicológico e fonético, chegando à conclusão que, por motivos de ordem mecânica articulatoria, a linguagem dos afásicos apresenta as mesmas soluções de facilidade encontradas nas crianças. Porém, como que em uma advertência ao autor americano, os autores lembram que a moléstia, pràticamente nunca, ou mesmo nunca, poderá oferecer um quadro que seja a deprodução exata, em ordem inversa, dos sucessivos movimentos da evolução. E a razão listo é simples, pois Jackson distingue dois tipos de dissolução: uniforme e local. Na primeira, a totalidade do sistema nervoso sofre a ação nociva, como no caso das intoxicações alcoólicas: tôdos os centros são atingidos porém os mais elevados sofrem primeiramente e de maneira mais intensa, a ação danosa do tóxico. Na dissolução local, sòmente uma parte do sistema nervoso é atingida e sómente se alterarão as funções relacionadas com esta parte lesada: sòmente nessas funções será possível encontrar uma passagem do mais voluntário para o mais au tomático, podendo ser, então, atingidas com exclusividade as funções motoras - ou alguma função motora em especial - ou as sensitivas.

Antes de prosseguir, é necessário procurar estabelecer o valor exato da noção de centro nervoso. Segundo a teoria clássica, o cérebro poderia ser dividido em certo número de regiões, cada uma das quais comandaria uma forma específica de motricidade ou de sensibilidade. Cada centro teria posição e função bem definidas. Quanto à posição, nada mais temos a lembrar depois dos resultados obtidos por Sherrington com a excitação do córtex motor; quanto à função, temos a lembrar que os centros cerebrais não são sede de funções mas sim centros de coordenação, focos onde vêm se integrar as atividades nervosas centrais e que determinam o desenvolvimento de certas funções. Os centros representam, segundo Jackson, uma "disposição dos órgãos em ordem composta"; tanto mais o centro de um nível inferior (cornos anteriores da medula, por exemplo) tanto mais o órgão representado é elementar e capaz de funcionar independentemente do resto do corpo segundo um esquema reflexo automático. Ao contrário, os movimentos relacionados com os centros mais elevados são resultantes da combinação de grande número de movimentos de que participam as mais diversas partes do corpo. Ao nível dos centros superiores, voluntários, não é possível estabelecer limites nítidos entre as representações centrais das diversas partes do corpo. Cada porção destes centros representa todo o corpo. Ou, mais claramente, cada parte do corpo tem sua representação cortical específica, porém esta zona representa, também de maneira geral, as outras partes do corpo na medida em que estas vêm colaborar mais ou menos mediata e habitualmente com a parte especificamente considerada. Esta noção é muito importante de ser apreciada, pois as concepções habituais em matéria de localização de funções não são capazes de explicar os fenômenos de afasia. Segundo a noção antiga, as várias funções engendradas nas diversas regiões do córtex reunem-se como os fragmentos de um mosaico para produzir uma forma superior de atividade. Sabe-se, hoje, que as modificações de função do cérebro não são senão a readaptação de um todo a um novo estado criado pelas alterações resultantes da lesão. As repercussões não dependem sómente da sede e da extensão da lesão como também das ca-raterísticas mentais e das aptidões do paciente. Head chama de estado de "vigilância" a êste estado do sistema nervoso em que se estabelece a integração e a adaptação a um fim; êste estado de vigilância é diminuído pelas intoxicações ou pelas lesões substanciais do sistema nervoso. A função do córtex seria sómente a de integração de reações, de uma "mise au point" da atenção, da síntese de experiências anteriores. Head estabelece com muita prudência a relação entre as lesões e os diversos tipos de perda de função, chegando mesmo a afirmar que, muitas vezes, as classificações das perturbações da linguagem não são mais do que etiquetas pregadas sôbre fatos clínicos. Aliás, posteriormente, Pearson, Alpers e Weisenburg3 3 . Pearson, G., Alpers, B. e Weisenburg, T. - Aphasia. A Study of Normal Control Cases. Arch. Neurol. a. Psychiat. 19:281-295 (fevereiro) 1928. , aplicando os testes de Head em indivíduos normais, obtiveram grande número de respostas erradas em tôdas as séries do teste.

Antes ainda de entrarmos pròpriamente no estudo das afasias, devemos recordar outra importante noção, indispensável para a seqüência do raciocínio. Uma lesão do sistema nervoso pode provocar fenômenos de destruição ou de descarga; os primeiros manifestam-se conforme os princípios da dissolução e os segundos, por fenômenos de liberação quando a lesão não está exatamente no centro correspondente a uma função, mas sim na sua proximidade, exercendo sôbre êle uma ação irritante.

As manifestações clínicas das afasias trazem poderoso suporte objetivo para estas noções propostas por Jackson, que até hoje são criticadas por muitos neurologistas, acoimadas de noções apenas teóricas, o que faz crer que os que assim pensam nunca tiveram o cuidado, ou melhor a paciência, de registrar as observações colhidas nos longos e penosos colóquios com os afásicos, e depois procurar interpretá-las como exige o tradicional espírito clínico, dentro de uma concepção única, geral. Verificamos que a lesão submete a linguagem a uma dissolução que vai dos processos mais voluntários aos mais automáticos. O afá-sico perde os usos voluntários e conserva os mais automáticos da linguagem, podendo ser esta perda geral ou local segundo a extensão da lesão, sendo atingidas as funções sensoriais (processos de percepção) ou motoras (processos de elocução ou de linguagem pròpriamente dita). Os sintomas são variáveis segundo a lesão provoque fenômenos de destruição ou de descarga, de tal forma que Jackson mesmo não achava correto o emprêgo do têrmo afasia, preferindo o de distúrbios da linguagem (affections of speech).

Já nos referimos, inicialmente, aos inúmeros paradoxos que pode oferecer o comportamento dos afásicos. Vamos agora procurar compreendê-los depois de estabelecidas estas noções fundamentais. Uma coisa pode-se afirmar como certa: os doentes estão geralmente privados do uso da linguagem mas não do uso da palavra. Dizemos mais: a moléstia carateriza-se pelo balanço de um aspecto positivo - os empregos da linguagem que são ainda realizados pelos pacientes - e um aspecto negativo, correspondente aos aspectos não mais possíveis de serem usados.

Como se manifesta êste aspecto positivo, ou melhor, qual é a linguagem dos afásicos A lesão determina a perda dos aspectos voluntários, enquanto que os automáticos - liberados - muitas vezes estão até exaltados. L. G., senhor de alta posição social, dizia a todo o momento a expressão "porca miséria", contrariando formalmente os seus hábitos que antes da moléstia primavam pelo rigor da linguagem empregada. Outro doente - E. B. dizia, também freqüentemente, "papagaio!" quando tinha qualquer contrariedade; outro - N. M. - a-presentou um fenômeno extremamente curioso e inteiramente original, pois ainda não vimos semelhante na literatura que consultamos. Tratava-se de um paciente de nacionalidade síria, que, quando são, falava exclusivamente o português em casa; poucos dias após o icto, o paciente começou a cantar cançõões árabes, entoando a melodia com absoluta perfeição e, apesar de se encontrar completamente "afásico para o português", conseguia dizer, embora defeituosamerrte, as palavras das canções. Durante cerca de 15 dias, N. M. permaneceu neste estado, cantando durante quase todo o dia, incapaz de pronunciar uma só palavra voluntariamente; é preciso notar que êsse paciente, quando são, era completamente avesso ao canto, tendo sua espôsa afirmado que, durante tôda a vida conjugal, não tinha ouvido o marido cantar uma vez sequer. O afásico perde, pois, a chamada linguagem intelectual que se carateri-za pelo emprêgo proposicional das palavras, isto é, a formação de frases com um sentido. Falar é mais do que empregar palavras; consiste em empregá-las em uma proposição, como disse Jackson.

Jackson classificou as emissões dos afásicos em dois grandes grupos : emissões estereotipadas e emissões ocasionais. As primeiras são subdivididas em quatro subtipos: 1 - jargão, que é linguagem ininteligível para o observador, emitida a todo o propósito, sem qualquer valor proposicional. Um de nossos pacientes - H. N. - ao começar a readquirir a linguagem, empregava uma algaravia impossível de ser registrada, sem qualquer sentido aparente. Um outro - N. M. - dizia a todo momento a expressão "aqua", quer em linguagem espontânea, quer respondendo a questões que lhe eram feitas;

2 - emissão de palavras em linguagem comum mas não tendo para o doente o mesmo sentido. Um de nossos observados - L. G. - dizia a todo momento "até logo"; certo dia, mesmo, pretendendo repreender um filho por qualquer razão, chamou-o próximo a si e, de forma bastante expressiva, suficiente para dar a perceber sua intenção, repreendeu-o usando sómente esta expressão "até logo" em substituição a todas as palavras que pretendia dizer. Outro paciente - G. B. - respondia a tôdas as nossas questões no primeiro exame, com duas expressões pronunciadas perfeitamente; eram elas "Luciano Gualberto" e "emetina". Outro doente - E. B. - sempre que encontrava dificuldade para pronunciar qualquer palavra durante a reeducação, pronunciava em seu lugar outra, "papá", algumas vezes estendia-se com acréscimo de mais sílabas, "pápápápá", até que o interrompêssemos;

3 - emissão estereotipada: pode ser tanto uma frase como uma palavra repetida a todo propósito. Um de nós viu na Clínica Neurológica da Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil, uma antiga afásica que durante anos pronunciava apenas a expressão "é aqui". Nada mais se conseguia extrair desta doente, mesmo com os maiores esforços;

4 - emprêgo de palavras sem valor proposicional: muito freqüentemente são empregadas as expressões "sim" e "não", porém sem valor proposicional. O paciente pode dizer "sim" fazendo com a cabeça o sinal de negação. Estas express,es são muito freqüentemente empregadas com o valor de interjeição.

O segundo grupo, das emissões ocasionais, pode ser subdividido em três subtipos: 1 - sob a influência da excitação, o afásico pode pronunciar automaticamente certas palavras que não chegam a constituir propriamente linguagem: interjeições, frases mortas e as palavras de calão que são de largo uso entre êstes doentes. Já referimos diversos exemplos verificados com nossos pacientes;

2 - emissões estereotipadas da ordem de uma linguagem inferior. As fórmulas de polidez ou de uso muito comum entram nesta categoria: "pode entrar", "obrigado", "até logo" são frases que freqüentemente os afásicos empregam. E' uma linguagem de confecção, como dizia Jackson, que não sofre processos de adaptação diante de circunstâncias particulares;

3 - algumas vezes esta linguagem estereotipada é de um nível mais elevado. Como exemplo, citamos o paciente, já referido acima, que disse "não quero mais" e "me dá água". São respostas adaptadas às circunstâncias porém favorecidas por um estado afetivo especial.

De todos êstes fenômenos, os que nos parecem mais freqüentes são os da linguagem estereotipada. Jackson acreditava que a palavra êstereotipada era aquela que o paciente estava em vias de pronunciar quando sobreveio o icto. Nosso paciente G. B. parece trazer uma confirmação a esta suposição; trata-se de antigo renal, que vinha sendo medicado há muito tempo pelo Prof. Luciano Gualberto; sua emissão estereotipada era exatamente o nome dêste professor, nome que era repetido a todo propósito e que certamente teria vindo ao espírito do paciente no momento em que se sentia acometido pelo icto. Êstes fenômeno de intoxicação pela palavra, absolutamente semelhante à intoxicação pelo gesto encontrada em certos apráxicos, traduz uma supressão da inibição cortical, que em circunstâncias normais impede o fato de organizações tenderem a se repetir por um fenômeno de automatismo.

Vistas assim, de forma dispersa, algumas observações colhidas com nossos doentes, vejamos quais foram os elementos mais importantes colhidos em seus exames neurológicos. Convém assinalar que tôdos êstes doentes apresentavam seus distúrbios em conseqüência de alterações vasculares, em nenhum dos casos devidas à lues. Salientaremos, em primeiro lugar, o fenômeno relatado por tôdos os autores que cuidam do assunto - a inexistência de proporção entre a gravidade da hemiplegia e a da afasia; verificamos que em alguns casos a hemiplegia regredia rapidamente enquanto permanecia grave a afasia ou vice-versa. Fato de extrema importância que verificamos em tôdos os nossos doentes foi a existência de apraxia facial mais ou menos intensa, sendo de notar que o sucesso da reeducação variava inversamente com a gravidade dêste distúrbio. Para ilustrar esta afirmação, podemos lembrar que um de nós está observando na Clínica Neurológica do Hospital das Clínicas (prof. Adherbal Tolosa) um afásico portador de uma apraxia facial excepcionalmente intensa, sem qualquer déficit da percepção, o qual, apesar de tôdos nossos esforços depois de dois meses de reeducação, pronuncia apenas as sílabas "pa, po, ta, mo." e algumas combinações destas sílabas. A existência desta apraxia facial associada à afasia fêz com que classificássemos êstes doentes dentro do grupo das anartrias aprá-xicas, proposto por Gilbert Ballet, derivando dêste fato uma atividade terapêutica especial. Com relação a outra questão muito discutida que vem a ser a relação existente entre os distúrbios da linguagem falada e escrita, podemos adiantar que não encontramos paciente algum que fôsse capaz de exprimir claramente pela escrita aquilo que não podia falar; mesmo usando letras de tipografia, para excluir qualquer dúvida, nossas verificações foram sempre concordes neste ponto. Os pacientes escreviam tão defeituosamente quanto falavam. Verificamos ainda, com absoluta constância, outro fato interessante que consiste na possibilidade dos pacientes poderem pronunciar uma palavra desde que a conseguissem escrever ou vice-versa; de tal forma que pudemos, com nossos pacientes, considerar como perfeitamente superponíveis os defeitos da linguagem falada e escrita.

Com relação à reeducação, tivemos que empregar um processo mixto, adaptável a cada caso; ainda aqui pudemos observar, por feliz fator acidental, um fenômeno bastante interessante e original. De nossos cinco pacientes, um era francês, dois italianos, um alemão e um sírio; pois bem, todos êles, sem exceção, no momento em que começaram a fazer uso da linguagem, encontraram muito maior facilidade para fazê-lo em sua língua natal, apesar de tôdos êles - com excepção apenas de H. N. (francês) - falarem perfeitamente o português, que era sua língua de tôdos os dias. Principalmente com N. M. (sírio) e L. G. (italiano) pudemos verificar bem êste fato; no momento em que, durante as secções de reeducação, apresentávamos alguma figura pedindo ao paciente que a denominasse com o fim de estimular sua linguagem espontânea, freqüentemente, quando isto era muito difícil, em vez da palavra desejada em português, era pronunciada, involuntariamente, uma outra palavra sem qualquer relação com a desejada ou ela mesma, porém em sírio ou italiano, respectivamente. O paciente N. M., depois de mês e meio de reeducação intensiva, pronunciava os algarismos de um a dez, sendo dois dêles, sempre os mesmos, em sírio.

Em linhas gerais, a reeducação de tôdos êstes pacientes, pelo fator já assinalado, com exceção de um em que a apraxia era pouco intensa, afastou-se da linha estabelecida por Fromment4 4 . Fromment, J. - Langage articulé et fonaction verbale. Em G. Roger et L. Binet, Trait de Physiologie Normale et pathologique. T. 10, fasc. 2, 1929. que aconselha o uso de um método natural, constituindo a atividade do reeducador apenas em propor variados meios para a estimulação da linguagem espontânea. A existência da apraxia facial, principalmente da apraxia lingual, exigiu do reeducador o emprêgo de um método mixto em que, além da estimulação, cogitou-se de ensinar ao paciente a posição precisa de cada elemento anatômico durante o ato articular afim de abreviar a cura e evitar que a linguagem readquirida o fôsse com defeitos de articulação.

Dissemos de início que a principal razão de trazermos esta comunicação residia no seu caráter prático. Repetindo estas palavras, agora, pensamos estar fazendo justiça a Hughlings Jackson, cuja concepção sôbre as afasias vem sendo taxada de teórica por muitos neurologistas esquecidos de que o que há de verdadeiramente genial neste grande pesquisador é exatamente - como bem o demonstrou Ombredane nos dois primeiros volumes de seus estudos de psicologia médica 5 5 . Ombredane, A. - Études de Psychologie Medicale. I. Perception et langage. , nos quais em grande parte nos baseamos - o fato de sua concepção não se dirigir a um ou outro setor da patologia nervosa mas sim a tôda ela, de tal maneira que poderemos compreender, por exemplo, as afasias dentro do mesmo espírito com que compreendemos as apraxias e um sem-número de outras manifestações mórbidas do sistema nervoso.

Rua Bolívia, 123 - S. Paulo.

Fromment, J. - Diagnostique des troubles du langage et ses indications thérapeutiques. Paris Med. 2:237-250 (outubro) 1936.

Ombredane, A. - Études de Psychologie Medicale. II. Geste et action.

  • 1. Low, A. - Studies in Infant Speech and Thought. Univ. of I11. Bull., maio, 1936.
  • 2. Alajouanine, Ombredane e Durand - Le syndrome de désintégration phonétique dans l'aphasie, 1939.
  • 3. Pearson, G., Alpers, B. e Weisenburg, T. - Aphasia. A Study of Normal Control Cases. Arch. Neurol. a. Psychiat. 19:281-295 (fevereiro) 1928.
  • 4. Fromment, J. - Langage articulé et fonaction verbale. Em G. Roger et L. Binet, Trait de Physiologie Normale et pathologique. T. 10, fasc. 2, 1929.
  • 5. Ombredane, A. - Études de Psychologie Medicale. I. Perception et langage.
  • 1
    . Low, A. - Studies in Infant Speech and Thought. Univ. of I11. Bull., maio, 1936.
  • 2
    . Alajouanine, Ombredane e Durand - Le syndrome de désintégration phonétique dans l'aphasie, 1939.
  • 3
    . Pearson, G., Alpers, B. e Weisenburg, T. - Aphasia. A Study of Normal Control Cases. Arch. Neurol. a. Psychiat. 19:281-295 (fevereiro) 1928.
  • 4
    . Fromment, J. - Langage articulé et fonaction verbale. Em G. Roger et L. Binet, Trait de Physiologie Normale et pathologique. T. 10, fasc. 2, 1929.
  • 5
    . Ombredane, A. - Études de Psychologie Medicale. I. Perception et langage.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Set 1945
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