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Tratamento da esclerose em placas pelo sôro hemolítico anti-humano

Tratamento da esclerose em placas pelo sôro hemolítico anti-humano

Dante Giorgi; João Baptista dos Reis

Assistentes de Clínica Neurológica na Escola Paulista de Medicina (Prof. Paulino Longo)

A esclerose em placas continua a preocupar os neurologistas que se esforçam em encontrar sua etiologia, descrever sua patologia, fixar seus limites nosológicos e classificar suas formas, a fim de tornar possível o diagnóstico mais precoce e a instituição de terapêutica eficiente para sustar a evolução e impedir as recaídas.

Com o decorrer dos anos as teorias se sucedem, cada autor tendo idéias próprias sôbre o agente causador, sendo, porém, escassos os fatores que comprovem essas idéias. Culturas de macerados de tecido nervoso de doentes com esclerose em placas deram resultados os mais diversos, levando pesquisadores de renome a erros grosseiros ; pesquisas bioquímicas indicaram alterações graves e fizeram entrever algumas causas das alterações neurológicas, porém, não foi possível até o momento determinar em animais o aparecimento de lesões nervosas semelhantes às da esclerose em placas. Mesmo sob o ponto de vista da patogenia das lesões anatômicas, ainda há discussão quanto ao início e evolução das lesões observadas, não se sabendo se há lesão vascular inicial nem tampouco se a desmie-linização tem origem tóxica, infeciosa ou traumática.

Por tôdas essas dúvidas, é enorme o número de teorias etio-patogênicas e métodos de tratamento propostos, cada autor apresentando teoria e método de tratamento próprios, com casuística variável em número, em geral relatando resultados favoráveis.

Os resultados obtidos no tratamento da esclerose em placas devem ser criticados comparando-os, como fez Putnam1 1 . Putnam, T. J. - T. A. M. A., 112:2488 (junho, 17) 1939. , com a evolução de casos sem tratamento. Êste autor chegou às seguintes conclusões: 1) a esclerose em placas tem tendência mais ou menos acentuada a remissões espontâneas. Num total de 133 casos, remissões surgiram em 69%; de modo geral, a sintomatologia inicial, após aparecimento mais ou menos rápido, se atenua, podendo mesmo desaparecer completamente. O desaparecimento completo dos primeiros sintomas deu-se em 44% dos pacientes. Remissões são muito mais freqüentes nos doentes de ambulatório que nos internados ; 2) a observação dos resultados obtidos com os métodos mais comuns de tratamento revela 35% a 60% de doentes melhorados, com média geral de 47,5%, em 1407 casos analisados, sendo tais resultados encorajadores; 3) o critério de sucesso de um tratamento de esclerose em placas provavelmente deverá ser o da capacidade de prevenir recaídas.

Não iremos discutir tôdas as teorias e métodos terapêuticos empregados; nos deteremos apenas na exposição do método de tratamento proposto por Laignel-Lavastine e Koressios, isto é, o tratamento pelo sôro hemolítico anti-humano, método que tivemos oportunidade de empregar em 5 pacientes.

Laignel-Lavastine admite, para explicar a etiopatogenia da esclerose em placas, duas fases em sua evolução. Na primeira, ou fase de ataque, o agente etiológico (tóxico, infeccioso, traumático ou endocrínico) atuaria sôbre a medula determinando um distúrbio de caráter trófico. A segunda fase se carateriza pelo aparecimento das placas de esclerose, que se iniciam por modificações da bainha de mielina, em seguida às quais surge a gliose. Esta fase é traduzida por modificações humorais, das quais a principal é o aumento dos lipóides fosforados no sangue. Ainda nesta fase apareceriam as substâncias mielolíticas, descritas por Weil e Bricker, capazes de, in vitro, produzirem a desmielinização de fibras de medula de ratos. Entretanto, ainda não há acôrdo no sentido de saber se tais substâncias são a causa ou o efeito da desmielinização.

Laignel-Lavastine e Koressios acreditam que o agente etiológico é, em geral, um vírus e, baseando-se nas pesquisas de Valée e Krause que demonstraram que certos vírus neurotrópicos têm a propriedade de ser adsorvidos pelos glóbulos vermelhos, atribuíram ao sangue dos doentes de esclerose em placas um poder de antígeno, preparando um sôro para tratamento dos doentes portadores de tal moléstia. Os soros de coelhos assim preparados adquiriam poder hemolítico, ainda que não muito elevado, para glóbulos vermelhos do homem.

A hipótese dêsses autores, segundo a qual os glóbulos vermelhos seriam vetores de um vírus neurotrópico específico da esclerose em placas os levou a escolher, como antígeno injetável no coelho, o sangue total desfibrinado em lugar de glóbulos lavados, pois esta última operação pode alterar os glóbulos vermelhos, privando-os do vírus adsorvido.

O sôro assim obtido, injetado no doente em doses adequadas, determina reações gerais, locais e focais. Da observação dos fenômenos locais, Koressios propôs uma reação intradérmica que seria específica da esclerose em placas. Consiste em injetar intradèr-micamente pequena quantidade (0,1 cc) de sôro hemolítico dissolvido em sôro fisiológico: nos doentes portadores de esclerose em placas formar-se-ia, após 24 horas, um halo de 5-6 cms. de diâmetro de coloração avermelhada e com duração de 2-3 dias.

Êsses diversos fenômenos gerais locais e focais permitem distinguir na ação do sôro hemolítico fenômenos comuns aos sôros e fenômenos de tipo focal, mielitico próprios do sôro hemolítico de Laignel-Lavastine e Koressios. A ação do sôro hemolítico seria do tipo anafilático inverso, isto é, a primeira dose já seria suficiente para desencadear os fenômenos séricos. Contudo, quer se trate de reação do tipo anafilático inverso ou de reação inespecífica, nada se sabe sobre o modo de ação do sôro hemolítico na esclerose em placas.

Penacchietti2 2 . Citado por Laignel-Lavastine, M. e Koressios, N. T. - Recherches sémiologiques, sérologiques, cliniques et thérapeutiques sur la sclérose en plaques, Ed. Maloine S. A., Paris, 1938. , após estudar a ação do sôro hemolítico em indivíduos portadores de outras afecções neurológicas, não tendo obtido reações focais de exacerbação dos sintomas, concluiu ter o sôro uma ação eletiva específica na esclerose em placas. Esta ação não é semelhante à dos outros sôros que exigem doses mais elevadas, nem se trata de reação anafilática simples que poderia ser obtida com qualquer sôro. Êste autor acredita existirem, no plasma dos indivíduos com esclerose em placas, substâncias proteicas que são adsor-vidas pelos glóbulos vermelhos, substâncias essas que se originam nos focos de gliose e que, injetadas no coelho, geram anticorpos capazes de alergizar, nos doentes, os focos da lesão. Esta conclusão de Penicchietti discorda das de Laignel-Lavastine para o qual o sôro teria ou uma ação direta sôbre o sistema nervoso ou uma ação indireta por neutralização das lipases que circulam em excesso no sangue e que provêm das zonas de desmielinização do neuraxe.

Entretanto, nenhuma dessas conclusões se enquadra nos conhecimentos atuais sobre o modo de ação dos sôros. Para Laignel-Lavastine estaríamos em presença de um fenômeno cientificamente novo para cuja explicação seriam necessários novos conhecimentos. O sôro hemolítico provoca, certamente, quando injetado em indivíduos portadores de esclerose em placas, reações violentas (intra-dermo-reação de Koressios) obtidas sòmente com êste sôro. É um fato de observação ainda não explicado cientificamente. Outros autores, como Beck e Martini, negam terminantemente a especificidade do método, assim como os resultados favoráveis do tratamento 3 3 . Beck e Martini - J. A. M. A., 115:168 (julho, 13) 1940. Rua Senador Paulo Egídio, 15 - S. Paulo .

Por várias vezes tentamos preparar o sôro empregando sangue total, como indica Laignel-Lavastine porém, após 3-4 injeções, o coelho vinha a falecer sùbitamente em choque sérico. Um de nós (Reis) propôs empregar hemácias lavadas, com o que conseguimos praticar uma série maior de injeções com o fim de obter um sôro de teor hemolítico mais elevado. Obtivemos com êste método sôros hemolíticos cujo poder variava de 1:40 a 1:60. As doses administradas variaram de 1 cc. a 4 cc, por via intramuscular, em dias alternados ou cada 3 dias, conforme a reação observada, em séries de 5-6 injeções. Em alguns pacientes, as séries foram repetidas; nesses casos devem ser levadas em conta as reações séricas comuns a qualquer sôro.

Passamos a resumir os dados principais das observações que tivemos oportunidade de fazer.

Observação 1 - A. P. T., com 24 anos de idade, brasileiro, comerciário, examinado em 1941. Incapacidade de andar há 4 anos, Início da .moléstia em 1935, com grande fraqueza nos membros inferiores; a marcha tornou-se irregular, pois sentia os membros- inferiores pesados. Em um mês ficou impossibilitado de andar. Em 1936, esteve em tratamento na Santa Casa de S. Paulo, com o diagnóstico de esclerose em placas, sendo medicado pelo salicilato de sódio intravenoso e solganal intra-raquidiano. Teve melhoras, conseguindo andar. Algum tempo depois, a sintomatologia inicial se acentuou e o paciente desde 1939 não consegue andar.

Exame neurológico - Incapacidade para a marcha; consegue permanecer sentado, apresentando oscilações. Incoordenação do tipo cerebelar nos membros superiores e inferiores. Fôrça muscular conservada. Reflexos profundos exaltados; clono das rótulas e dos pés. Reflexos cutâneo-abdominais abolidos. Sinal de Ba-binski bilateral. Sensibilidade superficial conservada; profunda, ao diapasão, abolida até as espinhas íliacas. Nistagmo espontâneo. Fala monótona.

Aplicamos 4 séries de sôro hemolítico anti-humano sem resultado algum.

Observação 2 - L. C. N., com 50 anos de idade, solteira, enfermeira, examinada em janeiro de 1941. Está doente há 8 anos, queixando-se de fraqueza nas pernas, falta de equilíbrio, diminuição da acuidade visual e incontinência urinária.

Exame neurológico - Aumento da base de sustentação; incapacidade para permanecer de pé apoiada, quer sôbre o membro inferior esquerdo quer sôbre o direito isoladamente. Não há Romberg. Marcha ebriosa; com os olhos fechados, desvio para a direita. Não há paralisias ou paresias. Fôrça muscular e tono conservados. Leve incoordenação nos membros inferiores. Reflexos profundos vivos e simétricos. Reflexos cutâneo-abdominais presentes. Reflexos cutaneoplan-tares não foram obtidos. Sensibilidade íntegra. Fala monótona, arrastada, ana-salada. Nistagmo horizontal espontâneo. Exame do liqüido céfalo-raquidiano: punção lombar; pressão inicial 14; provas de Stookey normais; citologia 0,8 por mm3 3 . Beck e Martini - J. A. M. A., 115:168 (julho, 13) 1940. Rua Senador Paulo Egídio, 15 - S. Paulo ; albumina 0,20 grs. por litro; r. Pandy negativa; r. benjoim - .......... 00000 00000 00000 0; r. Takata Ara negativa; r. Wassermann negativa. Reações sorológicas para a lues negativas.

Foram aplicadas duas séries de sôro hemolítico anti-humano atingindo até 3 cc. por injeção. Notamos alguma melhora no início do tratamento, tudo voltando, depois, ao estado anterior.

Observação 3 - M. A. L., com 43 anos de idade, solteira, doméstica, examinada em 1941. Está doente há 2 anos, queixando-se de fraqueza das pernas com queda fácil e sensações parestésicas de formigamento nos membros inferiores; tremores nas mãos.

Exame neurológico - Perturbação grave da estática com grande dificuldade de manter a posição erecta, com nítida lateropulsão para a direita e, freqüentemente, retro e anteropulsão. Dificuldade de mudar de posição. Não há Romberg. Marcha atáxica, titubeante. Fôrça muscular levemente diminuída. Hipotonia muscular. Reflexos profundos vivos, pendulares; clono das rótulas e pé direito. Sinais de Babinski e Oppenhaim esboçados à esquerda e nítidos à direita. Reflexos cutâneos-abdominais abolidos. Sensibilidade íntegra. Fala monótona, escandida. Nistagmo espontâneo. Reações sorológicas para a lues negativas. Exame do liqüido céfalo-raquidiano: punção lombar; pressão inicial 11 ; provas de Stookey normais; citologia 0,4 células por mms; proteínas totais 0,52 grs. por litro; r. Pandy, opalescência; r. Weichbrodt, negativa; r. Nonne, leve opalescência; cloretos, 7,25 grs. por litro; r. benjoim - 00000 02220 00000 0.; r. Takata Ara negativa; r. Wassermann, negativa; r. fixação de complemento para cisticercose, negativa (J. B. Reis). Exame neurocular: fundos normais; não há escotomas relativos ou absolutos; leves abalos nistagmiformes no olhar extremo lateral (J. Mendonça de Barros).

Foram aplicadas 3 séries de injeções de sôro hemolítico anti-humano. Após a primeira série, feita em fins de 1941, vimos novamente a doente em julho de 1942, quando acusava algumas melhoras no equilíbrio e coordenação persistindo os sinais piramidais. A segunda série foi aplicada em fins de 1942; persistiram as melhoras. A terceira foi feita no início de 1944. Atualmente a paciente está em remissão social, ocupando-se dos afazeres da casa; nítidas as melhoras da marcha, conseguindo subir e descer escadas; permanecem ainda os sinais piramidais.

Observação 4 - A. B. S., com 36 anos de idade, marceneiro, brasileiro, examinado em 1943. Está doente há 2 anos, queixando-se de fraqueza nas pernas e dificuldade na marcha.

Exame neurológico - Equilíbrio perturbado; a estação erecta faz-se com aumento da superfície de sustentação. Não há Romberg. Marcha atáxica com claudicação do membro esquerdo. Tono muscular conservado. Fôrça muscular diminuída nos membros inferiores, principalmente à esquerda; incoordenação dos movimentos, de tipo cerebelar; tremor fino, intencional, nos membros superiores. Reflexos patelares e aquilianos vivos, mais acentuados à esquerda. Sinal de Babinski à esquerda. Sensibilidade íntegra. Nistagmo espontâneo. Exame do liqüido céfalo-raquidiano : punção suboccipital; pressão inicial 31; citologia 0,8 células por mm3 3 . Beck e Martini - J. A. M. A., 115:168 (julho, 13) 1940. Rua Senador Paulo Egídio, 15 - S. Paulo ; proteínas totais 0,14 grs. por litro; r. Pandy, negativa; r. Nonne negativa; cloretos 7,25 grs. por litro; r. benjoim - 00000 02200 00000 0; r. Takata Ara negativa; r. Wassermann negativa; r. Eagle negativa (J. B. Reis). Exame do aparêlho cócleo-vestibular: nistagmo espontâneo com caraterísticos de nistagmo de origem central. Às provas instrumentais, as reações induzidas, sem qualquer caráter de localização, sugerem lesão central disseminada. Ambos os labirintos são hiperexcitáveis (A. Perella).

Foram feitas duas séries de sôro hemolítico anti-humano sem qualquer resultado; êste doente foi visto em julho de 1944 e seu estado permanecia inalterado.

Observação 5 - J. B. F., com 34 anos de idade, brasileiro, comerciário, examinado em 1944. Queixa-se de distúrbios da marcha há 4 anos.

Exame neurológico - Marcha atáxico-ebriosa; equilíbrio prejudicado; a estática sôbre um dos membros inferiores é impossível. Incoordenação dos movimentos de tipo cerebelar, principalmente no membro superior direito. Tono muscular diminuído. Reflexos profundos exaltados, com esbôço de clono da rótula e pé esquerdos. Reflexos cutâneo-abdominais presentes. Cutaneoplantares ausentes. Não há sinal de Babinski. Nistagmo horizontal espontâneo. Reações se-rológicas para a lues negativas; exame do liqüido céfalo-raquidiano nada de anormal revelou (O. Lange). Exame neurotológico: nistagmo espontâneo de tipo central; hiperexcitabilidade vestibular instrumental bilateral (J. Rezende Barbosa).

Foi feita uma série de sôro hemolítico anti-humano com resultados favoráveis principalmente quanto à coordenação e estática; o doente consegue permanecer de pé sôbre um dos membros; continuam os reflexos vivos. No momento está sendo submetido a nova série.

CONCLUSÕES

Dos 5 casos observados, foram obtidos bons resultados em um, sendo que as melhoras perduram há 3 anos (observação 3) ; em outro caso, de observação mais recente, tais melhoras ainda persistem após 6 meses (observação 5) ; nos três restantes, os resultados não foram animadores (observações 1, 2 e 4).

Reservamos o conceito de resultado favorável à melhoria clínica com desaparecimento de alguns dos sinais e sintomas ao lado de melhoras do estado geral do paciente (melhora do tono, estática e motilidade voluntária).

Em que pese a possibilidade de remissões espontâneas, podemos dizer que as remissões obtidas em dois de nossos casos coincidiram com o tratamento feito e que remissões não haviam aparecido até o início da terapêutica por nós instituída. Não pretendemos excluir completamente a hipótese de uma remissão espontânea. Devemos, porém, insistir sôbre a utilidade dêste método, que poderá ser empregado com relativa facilidade e permitir a obtenção de resultados favoráveis. Tal fato autoriza a empregá-lo no tratamento de uma moléstia que até a data atual tem desafiado as tentativas terapêuticas mais diversas.

Entregue para publicação em 16 abril 1945

Trabalho apresentado à Secção de Neuro-Psiquiatria da Associação Paulista de Medicina em 9 março 1945

  • 1
    . Putnam, T. J. - T. A. M. A.,
    112:2488 (junho, 17) 1939.
  • 2
    . Citado por Laignel-Lavastine, M. e Koressios, N. T. - Recherches sémiologiques, sérologiques, cliniques et thérapeutiques sur la sclérose en plaques, Ed. Maloine S. A., Paris, 1938.
  • 3
    . Beck e Martini - J. A. M. A., 115:168 (julho, 13) 1940.
    Rua Senador Paulo Egídio, 15 - S. Paulo
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Jun 1945
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