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Sobre as síndromes vasculares do tronco encefálico: Estudo de sete casos

Resumos

Depois de passarem em revista a sintomatologia geral das lesões do tronco encefálico, os AA. relatam as observações clínicas de seis pacientes portadores de síndromes vasculares do bulbo, protuberância ou pedúnculos cerebrais, discutindo, a propósito de cada um dos casos, a sede e etiologia da lesão. As observações evidenciam a complexidade que podem assumir os distúrbios consecutivos às lesões vasculares do tronco encefálico e ainda o fato de tais distúrbios não corresponderem, numerosas vezes, aos esquemas classicamente estabelecidos das lesões bulbares, protuberanciais ou pedunculares, em razão de serem os processos vasculares da região frequentemente múltiplos, amplos e localizados em níveis diversos. Os AA. recordam, a seguir, alguns dados fundamentais sobre a irrigação do tronco do encéfalo e sobre a etiopatogenia das lesões, considerando especialmente a arteriosclerose e a sífilis dos vasos da base. Estudam os aspectos clínicos da trombose do tronco basilar, relatando, a propósito, uma observação anátomo-clínica, na qual a sintomatologia induzira ao diagnóstico de hemorragia cerebral (córtico-subcortical ou capsular) com inundação ventricular; a necrópsia revelou, entretanto, a existência de trombose do tronco basilar e amolecimento da metade esquerda da protuberância. Finalmente, os AA. analisam, do ponto de vista etiopatogênico, as observações relatadas.


After considering the general symptomatology of lesions of the brain stem, the authors report the clinical observation of six patients presenting vascular syndromes related with the medulla, pons and midbrain, discussing, for each case, the localization and etiopathogeny of the lesion. These observations show the degree of complexity that may be attained by disturbances due to vascular lesions and demonstrate the fact that, in many instances, such disturbances do not correspond to the established syndromes of the medulla, pons and peduncles, since these lesions are often large, multiple and occur at several levels. The authors refer to some of the fundamental data on the blood supply of the brain stem as well as on the etiopathogeny of the lesions, taking into consideration chiefly the arteriosclerosis and syphilis of the basal vessels. There follows a clinical discussion of the thrombosis of the artéria basilaris and the report of a case clinically diagnosed as cerebral hemorrhage (cortico-subcortical or capsular) with inundation of the ventricles, which case the necropsy proved to be thrombosis of the artéria basilaris and softening of the left lateral half of the pons.


Sobre as síndromes vasculares do tronco encefálico. Estudo de sete casos

Oswaldo Freitas JuliãoI; Roberto Melaragno FilhoII

IAssistente de Clínica Neurológica Fac. Med. Universidade de S. Paulo

IIAssistente volunt. de Clínica Neurológica Fac. Med. Univers. de S. Paulo

RESUMO

Depois de passarem em revista a sintomatologia geral das lesões do tronco encefálico, os AA. relatam as observações clínicas de seis pacientes portadores de síndromes vasculares do bulbo, protuberância ou pedúnculos cerebrais, discutindo, a propósito de cada um dos casos, a sede e etiologia da lesão.

As observações evidenciam a complexidade que podem assumir os distúrbios consecutivos às lesões vasculares do tronco encefálico e ainda o fato de tais distúrbios não corresponderem, numerosas vezes, aos esquemas classicamente estabelecidos das lesões bulbares, protuberanciais ou pedunculares, em razão de serem os processos vasculares da região frequentemente múltiplos, amplos e localizados em níveis diversos.

Os AA. recordam, a seguir, alguns dados fundamentais sobre a irrigação do tronco do encéfalo e sobre a etiopatogenia das lesões, considerando especialmente a arteriosclerose e a sífilis dos vasos da base. Estudam os aspectos clínicos da trombose do tronco basilar, relatando, a propósito, uma observação anátomo-clínica, na qual a sintomatologia induzira ao diagnóstico de hemorragia cerebral (córtico-subcortical ou capsular) com inundação ventricular; a necrópsia revelou, entretanto, a existência de trombose do tronco basilar e amolecimento da metade esquerda da protuberância.

Finalmente, os AA. analisam, do ponto de vista etiopatogênico, as observações relatadas.

SUMMARY

After considering the general symptomatology of lesions of the brain stem, the authors report the clinical observation of six patients presenting vascular syndromes related with the medulla, pons and midbrain, discussing, for each case, the localization and etiopathogeny of the lesion.

These observations show the degree of complexity that may be attained by disturbances due to vascular lesions and demonstrate the fact that, in many instances, such disturbances do not correspond to the established syndromes of the medulla, pons and peduncles, since these lesions are often large, multiple and occur at several levels.

The authors refer to some of the fundamental data on the blood supply of the brain stem as well as on the etiopathogeny of the lesions, taking into consideration chiefly the arteriosclerosis and syphilis of the basal vessels. There follows a clinical discussion of the thrombosis of the artéria basilaris and the report of a case clinically diagnosed as cerebral hemorrhage (cortico-subcortical or capsular) with inundation of the ventricles, which case the necropsy proved to be thrombosis of the artéria basilaris and softening of the left lateral half of the pons.

As lesões do tronco encefálico acometendo, na maioria das vezes, estruturas concernentes às mais diversas funções nervosas, acarretam, habitualmente, sintomatologia exuberante, variada e complexa, motivo pelo qual se prestam particularmente a estudos semiológicos, em especial aos de caráter topográfico. Com efeito, representando o tronco encefálico a zona de união entre medula, cerebelo e cérebro, por êle trafegam, em feixes mais ou menos condensados, as vias condutoras da motricidade, voluntária e automática, as vias sensitivas, superficiais e profundas, as cerebelares, vestibulares e as vias de associação (feixes longitudinal posterior e fundamental medial); nele se encontram ainda os núcleos de quase todos os nervos cranianos (III ao XII pares), além de estruturas próprias, muitas das quais intimamente relacionadas ao sistema extra-piramidal (núcleo rubro de Stilling, substância negra de Sömmering, olivas bulhares, etc.). Por tais motivos e ainda porque a mencionada porção do neuraxe apresenta dimensões relativamente exíguas, compreende-se a razão pela qual lesões, muitas vezes mínimas, podem acarretar sintomatologia tão polimorfa. Desordens motoras, sensitivas, cerebelares, alterações da tonicidade muscular e do equilíbrio, distúrbios decorrentes do acometimento dos diversos pares cranianos manifestam-se, com efeito, suas lesões do tronco encefálico, sob múltiplos aspectos, associando-se de forma variada, prestando-se, assim, à caraterização das diversas síndromes classicamente conhecidas. Alguns atributos de que se revestem essas desordens são, contudo, merecedores de maior atenção por desempenharem papel de indiscutível relevo no diagnóstico topográfico das lesões do eixo encefálico: referimo-nos a certas peculiaridades dos distúrbios motores (hemiplegias alternas) e sensitivas, das alterações cerebelares e vestibulares. Assim, quanto aos distúrbios sensitivos, será de grande interesse a verificação de dissociações de sensibilidade (dissociação tipo tábido nas lesões medianas e tipo siringomiélico nas laterais), como também a topografia de tais distúrbios (hemianestesia alterna nas lesões bulbares e protuberanciais inferiores; hemianestesía em todo o hemicorpo, heterolateral à lesão, quando esta residir na porção superior da protuberância ou no mesencéfafo).

Quanto às perturbações da série cerebelar, em geral unilaterais, manifestam-se, via de regra, homolateralmente à lesão (consequência do duplo entrecruzamento da via cerebelo-rubrospinhal: decussações de Wernekink e de Forel); todavia, em casos especiais, podem apresentar-se no lado oposto ao da lesão, bastando, para isso, que o processo lesionai se localize na parte alta do mesencéfalo, em planto superior à decussação dos pedúnculos cerebelares superiores (entrecruzamento de Wernekink). Por conseguinte, lesões do tronco encefálico atingindo simultaneamente as vias cerebelares e as motoras piramidais (cujo entrecruzamento se processa na parte mais inferior do bulbo), acarretarão as desordens correspondentes, cerebelares e piramidais, no mesmo lado do corpo, superpostas, ou, ao contrário, em lados diferentes (homolaterais as cerebelares e heterolaterais as piramidais), conforme a lesão se encontre, respectivamente, acima da decussação de Wernekink, ou entre esta e a decussação piramidal.

Finalmente, o interesse do estudo das desordens vestibulares nas lesões bulbopontopedunculares, subordina-se à frequência com que, nesses processos, são sacrificadas as vias vestibulares centrais. O caráter desarmônico que então manifestam as reações vestibulares representa critério valioso para o diagnóstico topográfico lesional. Neste sentido, é sempre oportuno destacar o valor do esquema proposto por Isaac Jones, que teve o mérito, de facilitar a compreensão das dissociações das reações tônicas consequentes à excitação vestibular, contribuindo, dessa maneira, para a precisão do diagnóstico. Sobre a aplicabilidade desse esquema na clínica e também sobre a importância desempenhada pelo exame neurotolaringológico no diagnóstico das lesões do tronco encefálico já se expressaram, entre nós, em convincentes relatórios, Mario Ottoni de Rezende1 1 . Ottoni de Rezende, M. - Contribuição da otorrinolaringologia ao diagnóstico das afecções bulboprotuberanciais. Rev. de Otolaringol. de S. Paulo, 6: 261-345 (julho-agosto) 1938. , J. E. Rezende Barbosa2 2 . Rezende Barboza, J. E. - As vias vestibulares nas lesões bulbares. Rev. Brasil, de Otorrinolaringologia, 7: 485-540 (dezembro) 1939. , Oswaldo Lange3 3 . Lange, O. - Semiologia das provas dos braços estendidos. Rev. Brasil, de Otorrinolaringologia, 9: 315-383 (setembro-outubro), 1941. e Adherbal Tolosa4 4 . Tolosa, A., - Contribuição otorrinolaringológica ao diagnóstico das moléstias nervosas. Rev. de Biol. e Med. 1: 198-213 (julho-agosto) 1940. .

Lembradas assim, sumariamente, algumas das particularidades mais importantes que manifestam as lesões do tronco do encéfalo, passaremos a expor as observações dos casos por nós examinados, interessantes pela sintomatologia que exibem e pelos comentários que sugerem.

Observação 1 - J. M. C, 42 anos, brasileiro, branco, operário. Internado na 6.a Enfermaría de Medicina de Homens (Serviço do Prof. Celestino Bourroul) em 29 de maio de 1942. Em março de 1942, após ter sido acometido de violentas crises de tontura giratória, acompanhadas de vômito, sofreu um icto, em consequência do qual permaneceu desacordado durante quatro dias. Ao voltar a si, notou que os membros do lado direito se apresentavam paralizados e a boca repuxada para a esquerda; tinha diplopia, não sabendo informar se havia ou não estrabismo. A palavra era difícil e confusa. Percebeu ainda diminuição da sensibilidade em todo o hemicorpo direita Um ou dois mésese após, notou que os movimentos dos membros, à esquerda, executavam-se imperfeitamente e com alguma dificuldade; neste mesmo lado, manifestou-se ainda tremor do membro superior.

Antecedentes: Cancro venéreo há 12 anos, com adenite satélite. Etilista inveterado. Exame clínico geral: Gânglios palpáveis, ligeiramente aumentados. Tibialgia discreta. Aparelho circulatório: hiperfonese da 2.a bulha aórtica. Não há sinais de arteriosclerose. Pressão arterial 100-70.

Exame neurológico: O paciente mantém-se com dificuldade na posição erecta, "necessitando alargar a base de sustentação. A marcha só é possível com apoio, observando-se, mesmo assim desvios e tendência à queda. Paresia facial, tipo central, à direita. Força muscular praticamente normal em todos os segmentos (talvez ligeiramente diminuída nos flexores das mãos). Manobras deficitárias de Raimiste, Barré, Mingazzini e "pé de cadáver": negativas. As provas índex-nariz e calcanhar-joelho revelam dismetria acentuada, decomposição dos movimentos e assinergia, à esquerda. Neste lado nota-se ainda disdiadococinesia e positividade das provas do copo dágua, do indicador (Barany) e de Stewart-Holmes. Tremor, tipo "intencional", do membro superior esquerdo. Hipotonia muscular, mais pronunciada nos membros inferiores. Palavra monótona e lenta. Reflexos: medioplantar e aquileu pouco evidentes de ambos os lados. Os patelares exibem caráter pendular. À direita os reflexos patelar, condilofemural, estilo-radial e bicipital são mais nítidos que à esquerda. Mentoneiro, oro-orbicular e nasopalpebral vivos. Cutaneoplantar normal à esquerda e invertido à direita (Sinal de Babinski). Cremastéricos, superficial e profundo, ausentes à direita e fracos à esquerda. Abdominais não foram obtidos. Reflexos de automatismo: parecem positivas à direita as manobras de Babinski, Pierre Marie-Foix e das percussões repetidas. Sincinesias: prejudicada a interpretação das provas; o ato de tossir determina, às vezes, adução involuntária do membro inferior direito. Sensibilidade: hipoestesia táctil e térmica no hemicorpo direito (menos intensa na face), com hiperestesia dolorosa. Sensibilidade dolorosa à pressão profunda (pressão das massas musculares e pinçamento da pele) exaltada no lado direito do corpo. Sensibilidade segmentar, visceral e estereognóstica normais.

Exame neurotorrinolaringológico (Rezende Barbosa): "Paresia facial, tipo central, à direita. Hipotonia do masseter direito. Hemilíngua direita mais larga, mais flácida, mas com movimentos conservados e com discreto desvio de sua ponta para a direita. Paresia do palato mole à esquerda. Paresia da parede posterior da faringe à esquerda. Corda vocal esquerda mais lenta? Ramo externo dos espinhais livres. Sensibilidade e sensorio conservados em todos territórios mucosos, inclusive nas fossas nasais. VIII par craniano - Cocleares: audição no limiar do normal em ambos os lados. Vestibulares: ausência de nistagmo espontâneo. Prova calórica fria: 15 cc. água a 17° e cabeça 60° atrás. OD: após 7", nistagmo horizontal para o lado oposto, rítmico, de boa intensidade, durante 1'57". Inclinação discreta do corpo e braços para o lado excitado. Ausência quase completa de sensação vertiginosa. OE: após 15", nistagmo horizontal para o lado oposto, rítmico, de intensidade menor que o anterior, durante 1'23" Discreta inclinação dó corpo e braços para o lado excitado. Sensação vertiginosa praticamente ausente. Conclusões: Trata-se, sem dúvida, de uma síndrome central. Interessante, entretanto, é que nem todos os pares cranianos apresentam déficit motor do mesmo lado, senão vejamos: paresia facial, tipo central, à direita; hipotonia do masseter direito; discreto desvio da ponta da língua para a direita; hiperexcitabilidade, muito discreta, do vestíbulo direito; paresia do palato mole à esquerda; paresia da parede posterior da faringe à esquerda; paresia da corda vocal esquerda?"

Exame neurocular (Mendonça de Barros): Motilidade extrínseca normal. Conjuntivas hiperemiadas e leve perda de substância da pálpebra inferior de OE. Pupilas anisocóricas, levemente dilatadas, esquerda maior. Ambas se mostram fixas não reagindo à luz (direto e consensual) bem como no movimento associado de acomodação-convergência. Sensibilidade corneoconjuntival normal. Visão: OD - 1; OE - 1. Fundos oculares normais.

Exames complementares: R. Wassermann no sangue, fortemente positiva (++). Liqüído céfalo-raqueano (O. Lange, 9-6-942): Punção lombar, em decúbito lateral. Líquor límpido e incolor. Citologia: 86,4 por mm3 (linfomononucleose). Albumina: 0,30 grs. por litro4 R. Pandy: fortemente positiva (++) R. Benjoim: 12222.22221.00000.0. R. Takata-Ara: fortemente positiva (++) tipo luético. R. Wassermann: fortemente positiva (++) com 0,5 cc. R. Steinfeld: fortemente positiva (++). Novo exame do líquor em 28-8-942: Punção lombar. Citologia: 5,6 por mm3. Albumina: 0,40 grs. por litro. R. Pandy: fortemente positiva (++) R. Benjoim: 12210.12221.00000.0. R. Takata-Ara: fortemente positiva (++) tipo luético. R. Wassermann: fortemente positiva (++) com 0,5 cc. R. Steinfeld: fortemente positiva (-|-|-) com 0,5 cc.

Comentários: Em resumo, podemos esquematizar da seguinte maneira a sintomatologia observada no presente caso (fig. 1): à direita: 1 - Síndrome piramidal: presença do sinal de Babinski e dos reflexos de automatismo; vivacidade dos reflexos patelar, estilo-radial e bicipital; paralisia do facial inferior, tipo central; 2 - Síndrome sensitiva: alterações das sensibilidades superficiais em todo o hemicorpo direito; 3. - Distúrbios no domínio de pares cranianos: discreta hiperexcitabilidade do vestíbulo; hipotonia do masseter; hemilíngua hipotônica, desviando-se a ponta da língua para a direita quando projetada para fora da boca. À esquerda: 1 - Síndrome cerebelar: perturbações do equilíbrio estático e dinâmico, dismetria, assinergia, disdiadococinesia, decomposição dos movimentos, tremor "intencional"; 2 - Paresia do palato mole, da parede posterior da faringe e da corda vocal.


A topografia revestida pelos distúrbios piramidais, sensitivos e cerebelares evidencia, desde logo, o acometimento do tronco encefálico, em sua metade esquerda. Quanto ao nível exato do foco lesionai, as duas seguintes hipóteses parecem-nos mais razoáveis: lesão da protuberância em sua porção superior, ou lesão do pedúnculo cerebral (naturalmente abaixo da decussação de Wernekink). Realmente, a hipoestesia superficial de todo o hemicorpo direito, e também a paralisia facial direita (tipo central), mostram que o limite inferior da lesão corresponde, pelo menos, à porção superior da protuberância, porisso que somente a este nível todas as fibras condutoras das sensibilidades superficiais, inclusive as da face, se encontram incorporadas ao feixe espinhotalâmico do lado oposto. A lesão pode mesmo não se limitar ao pedúnculo ou à protuberância, mas atingir simultaneamente esses dois segmentos, mesmo porque o bulbo também se acha afetado. Com efeito, a existência de lesões bulbares concomitantes deve ser admitida, em virtude de haver sido comprovada pelo exame neurotolaringológico a participação dos últimos pares cranianos: glossofaríngeo e vagospinhal à esquerda, auditivo (parte vestibular) e hipoglosso, à direita.

No tocante à etiopatogenia, a síndrome observada decorre certamente de amolecimento consequente à endoarterite luética. A existência de passado venéreo-sifilítico e a forte positividade da reação de Wassermann no sangue, ao lado das alterações específicas observadas no líquor, documentam plenamente a intervenção da sífilis como fator etiológico. Neste sentido, merecem registro especial os resultados das reações praticadas no líquor céfalo-raqueano, uma vez que indicam a existência de lesões parenquimatosas, naturalmente associadas às lesões mesenquimais: reação de Steinfeld fortemente positiva com 0,5 cc. e reação do benjoim coloidal francamente positiva nas zonas parenquimatosa e intermediária. Em virtude de tais resultados, foi instituída a malarioterapia como o tratamento mais conveniente no caso em apreço.

Observação 2 - O. V., 41 anos, branco, brasileiro, comerciante. Examinado em 9 de novembro de 1942 (Clínica particular). Há dois anos, pelo menos, vem sofrendo de crises anginóides e de hipertensão arterial (pressão máxima de 230 a 250, segundo refere). No dia 2-X-942, ao acordar, notou que os movimentos do lado direito executavam-se com dificuldade e irregularmente; o lado esquerdo do corpo apresentava-se "adormecido" e tinha a sensação de zumbido no ouvido esquerdo. Não conseguia falar, embora entendesse tudo o que se lhe dizia. Nos primeiros dias da moléstia, notou ainda diplopia, que posteriormente desapareceu; nega estrabismo. A fala tornou-se difícil e arrastada, confusa. Sensação vertiginosa rotatória quando estende a cabeça para trás. Engasga-se com facilidade, sem haver, contudo, refluxo de liqüido pelas narinas. Cefaléia difusa.

Antecedentes: passado venéreo acidentado; submeteu-se a prolongado tratamento anti-sifilítico. Exame clínico geral: Aparelho circulatório: hiperíonese da 2.a bulha aórtica. Pressão arterial: 190-115. Pulso: 96 batimentos por minuto.

Exame neurológico: Instabilidade na posição erecta, mesmo com alargamento da base de sustentação. Motricidade: força muscular conservada tanto nos membros superiores como nos inferiores. Manobras de Mingazzini, Barré, Raimiste negativas. A execução dos movimentos voluntários demonstra nítida ataxia, tipo cerebelar, a direita (dismetria pronunciada, assinergia, adiadococinesia). Tremor de oscilações amplas, no membro superior direito (verificado quando o paciente, sentado, apóia esse membro no leito pela palma da mão, conservando o antebraço ligeiramente fletido). Tono muscular ligeiramente diminuído à direita. Marcha difícil, necessitando apoio; desvios e alargamento da base. Palavra disártrica; lenta, anasalada e confusa. Refletividade: Sinal de Babinski nítido à direita, como também o sinal de Rossolimo. À esquerda, o reflexo cutaneoplantar apresenta-se geralmente em flexão, porém algumas vezes esboça-se extensão, rápida, do grande dedo; Rossolimo ausente desse lado. O sinal de Mendel-Bechterew não foi obtido em ambos os lados. Reflexos abdominais prejudicados. Cremastéricos presentes, praticamente iguais. Mediopúbico: nítidas as respostas superior e inferior direita. Reflexos osteotendíneos dos membros superiores pouco evidentes de ambos os lados. Patelares e aquileus vivos, especialmente à esquerda. Palmomentoneiro nítido dos dois lados. Não há clono nem automatismos. Sincinesias de coordenação presentes à direita (positividade das provas da adução e abdução associadas, de Cacciapuoti e Hoover). Sensibilidade: hipoestesia táctil, dolorosa e térmica em todo o hemicorpo esquerdo (subjetivamente, sensação de calor nessa região). Noção das atitudes segmentares e estereognosia conservadas. Sensibilidade óssea normal de ambos os lados. Distúrbios tróficos e vasomotores: ligeiro edema da mão direita. Pé e perna esquerdos mais frios que à direita. Sudorése igual nos dois lados.

Exame neurotorrinolaringológico: (Rezende Barbosa) - "Congestão e hipoestesia da mucosa nasal à esquerda. Língua sem desvio da ponta, não atrófica, com movimentos conservados, Hipoestesia da mucosa bucal, palato, faringe e laringe à esquerda. Palato mole lerdo, com discretíssima paresia à esquerda? Nistagmo do palato mole, inclusive úvula, com componente rápido para a direita. Parede posterior da faringe lerda à esquerda. Hemilaringe esquerda lerda. VIII par craniano: Cocleares: OD: audição no limiar da normalidade, com voz cochichada a 4 metros. OE: hipoacusia tipo percepção, com voz cochichada a 40 centímetros, diminuição da percepção para C5. Rinne positivo, Weber lateralizado do lado direito e Schwabach diminuído. Vestibulares: ausência de nistagmo espontâneo. Prova calórica fria: 20 cc. e cabeça 60° atrás. OD: após 10", nistagmo horizontal para o lado oposto durante 1'34", média frequência, boa intensidade, rítmico. Sensação vertiginosa rotatória típica, idêntica à espontânea, sem qualquer reação motora. OE: após 9", idem, idem, para o lado oposto durante 1'32". Idem, idem, idem. Conclusões: Em resumo, há: hipoestesia dos territórios mucosos à esquerda; discreta paresia do véu mole, parede posterior ia faringe e laringe esquerdas; nistagmo do véu do paladar (movimentos mioclôlicos); hipoacusia, tipo percepção, à esquerda; sistemas vestibulares respondendo dentro de cifras normais".

Exames complementares; Dosagem de uréia no sangue: 0,44 grs. por litro. R. Wassermann e Kahn no sangue: negativas.

Comentários: Em suma, observamos neste enfermo (fig. 2); à direita: síndrome cerebelar (dismetria, assinergia, disdiadococinesia) e síndrome piramidal (sinais de Babinski e Rossolimo, sincinesia de coordenação). A esquerda: síndrome sensitiva (hipoestesia táctil, dolorosa e térmica em todo o hemicorpo); síndrome piramidal frusta: sinal de Babinski duvidoso, reflexo patelar e aquileu mais exagerados que à direita. Hipotermia na perna e pé (contrastando com a sensação subjetiva de calor no hemicorpo). Pares cranianos: hipoacusia de tipo percepção, paresia do palato mole, com nistagmo deste e da úvula (componente rápido para a direita); paresia da parede posterior da faringe e da hemilaringe.


Em presença de tal sintomatologia, parece-nos perfeitamente admissível a existência de uma lesão ao nível da protuberância superior e à direita. Assim, o feixe espinhotalâmico seria afetado numa região em que se apresenta já integralmente constituído, ocasionando as desordens sensitivas no hemicorpo esquerdo; o comprometimento do pedúnculo cerebelar superior, abaixo do entrecruzamento de Wernekink explicaria, por outro lado, a síndrome cerebelar evidenciada à direita. A exaltação do reflexo patelar esquerdo e o comportamento atípico do cutaneoplantar desse lado poderiam ser filiados a eventual acometimento das fibras piramidais, por extensão da referida lesão além da linha mediana.

A síndrome piramidal à direita, a paresia do palato mole, da parede posterior da faringe e hemilaringe esquerdas, a hipoacusia, fazem supor, contudo, a existência de outra lesão ao nível do hemibulbo esquerdo, atingindo a via piramidal e os núcleos (ou fibras) do vago e coclear.

A homolateralidade das síndromes cerebelar e piramidal sugere naturalmente, à primeira vista, a ocorrência de uma lesão peduncular, acima da decussação de Wernekink, à esquerda; todavia, a presença da síndrome sensitiva à esquerda, e não à direita, torna mais provável, em nossa opinião, a hipótese acima formulada (lesão protuberancial alta, direita, e lesão bulbar esquerda). É oportuno, a propósito desta observação, recordar a classificação das síndromes cerebelopiramidais proposta por Pierre Marie e Foix em estudo que realizaram sobre as formas clínicas e diagnóstico das hemiplegias cerebelares sifilíticas5 5 . Marie, P. e Foix, Ch.. - Formes cliniques et diagnostic de l'hémiplégie cérébelleuse syphilitique. Semaine Médicale, 33: 145-152 (março, 26) 1913. . Distinguem esses autores três aspectos clínicos fundamentais: 1) Síndrome cerebelopiramidal homo-lateral, com paralisia mais ou menos completa do nervo oculomotor comum do lado oposto. O grau de comprometimento do III par permitiria, nesses casos, avaliar a intensidade da lesão do núcleo rubro. 2) Síndrome cerebelopiramidal homolateral, com disartria mais ou menos persistente. Os autores observaram dois casos desse tipo, ambos de etiologia sifilítica. A disartria que os doentes apresentavam lembrava a da paralisia geral: os pacientes suprimiam sílabas, tornavam-nas confusas ao falar rapidamente ou ao pronunciar as palavras de prova. Essas alterações da articulação da palavra foram consideradas pelos autores como fenômenos pseudobulbäres. (No enfermo que observamos, os distúrbios da palavra - lenta, confusa, anasalada - parecem depender, essencialmente, do acometimento das vias cerebelares). 3) Síndrome cerebelopiramidal homolateral, acompanhada de fenômenos talâmicos (síndrome cerebelotalâmica).

Quanto à etiopatogenia da nossa observação 2, trata-se provavelmente de amolecimento conseqüente a endarterite luética, apesar da negatividade atual das reações de Wassermann e de Kahn no sangue.

Observação 3 - A. J. R., sexo feminino, 20 anos, brasileira, casada. Examinada em 18 de novembro de 1942. (Clínica particular). Em fevereiro de 1942, foi acometida, pela manhã, de sensação vertiginosa violenta, acompanhada de vômitos e perda do equilíbrio. Esta crise repetiu-se algumas horas após e no dia seguinte não conseguiu mais levantar-se em virtude das tonturas e do desequilíbrio. Notou então que não. percebia o gosto dos alimentos no lado direito da boca e que, por ocasião da deglutição, os líquidos refluíam pelo nariz. A mastigação também prejudicou-se em virtude da falta de força no maxilar (sic). A palavra alterou-se, tornando-se incompreensível e monótona. A acuidade auditiva diminuiu sensivelmente à direita e, deste mesmo lado, o olho tornou-se "seco e inflamado" (sic). Notou mais tarde que era incapaz de diferençar as sensações do quente e do frio na metade esquerda do corpo, enquanto que, do lado direito, os movimentos executavam-se irregularmente e sem energia. Neste mesmo lado surgiram, por ocasião dos movimentos, tremores, que posteriormente se estenderam à cabeça e ao outro lado do corpo.

Antecedentes: Sarampo, coqueluche, varicela e parotidite epidêmica, na infância. Um único filho, sadio. Nega abortos ou natimortos. Exame clínico geral: Bulhas cardíacas normais. Pressão arterial: 120-8. Pulso: 100.

Exame neurológico: Instabilidade na posição erecta; queda em todas as direções. Tremores intensos da cabeça e dos membros, especialmente à direita, acentuando-se com os movimentos. Metricidade voluntária: Força muscular ligeiramente diminuída no membro inferior direito, onde as manobras deficitárias de Barré e do "pé de cadáver" mostram-se positivas. Prova de Raimiste: negativa. Manobra dos braços estendidos: afastamento e abaixamento do braço direito. Nítida ataxia tipo cerebelar nos membros superior e inferior direitos: dismetria, assinergia, decomposição dos movimentos, positividade da prova de Stewart-Holmes. Também à esquerda a prova calcanhar-joelho revela a existência de dismetria, porém muito mais discreta que à direita. À movimentação passiva encontra-se certa resistência nos membros do lado direito. Palavra monótona e escandida. Mastigação e deglutição prejudicadas. Marcha impossível. Refletividade: Aquileu presente, vivo à direita. Patelar direito exaltado, provocando trepidações epileptóides. Estilo-radial, bicipital, cubitopronador e tricipital mais vivos à direita. Cutaneoplantar ausente à direita e em flexão à esquerda. Negativas as manobras de Schäffer, Oppenheim e Gordon. Ausentes os sinais de Mendel-Bechterew e de Rossolimo. Reflexos abdominais pouca evidentes. Palmomentoneiro não obtido, assim como os reflexos nasopalpebral, oro-orbicular e massetérico. Corneopalpebral abolido à direita. Não há automatismos nem sincinesias. Presente o clono da rótula, à direita. Sensibilidade: à direita hipoestesia táctil, dolorosa e térmica, apenas na hemiface (anestesia do território superior). À esquerda, hipoestesia táctil, dolorosa e térmica em todo o hemicorpo (a sensibilidade dolorosa e principalmente a térmica são as mais afetadas); sensibilidades profundas conservadas, com exceção da palestésica, que se encontra diminuída na região superior da hemiface direita.

Exame neurotorrinolaringológico (Rezende Barbosa): "Facial parético em seu ramo inferior à direita. Sensibilidade da mucosa nasal diminuída à direita, estando o reflexo nasopalpebral ausente. Hipoestesia de toda mucosa (da boca, palato, faringe e laringe) à direita. Língua sem desvio, hipotonia ou atrofia. Palato mole com paresia à direita. Paresia da parede posterior da faringe à direita, com sinal da cortina típico para a esquerda. Paralisia da corda vocal direita. VIII par craniano: Cocleares: hipoacusia, tipo percepção, à direita, com voz cochichada a 20 centímetros. Rinne positivo, Schwabach encurtado e Weber lateralizado para a esquerda. Vestibulares: ausência de nistagmo espontâneo. Prova calórica: cabeça 60° atrás e 20 cc. de água fria. OD: nihil. OE: após 10", nistagmo horizontal para o lado oposto durante 1'24", boa intensidade, rítmico. Discreta sensação vertiginosa sem reação motora. Com 50 cc. de água fria. OD: após 45 nistagmo horizontal para o lado oposto, quase imperceptível e durante curtíssimo tempo, sem qualquer reação. Conclusões: hipoestesia da mucosa nasal, bucal, inclusive do palato mole, à direita; paresia facial à direita; hipoacusia tipo percepção e hipoexcitabilidade vestibular à direita; paresia do constritor superior da faringe à direita; paralisia do véu mole e corda vocal à direita; hipoestesia da mucosa faringolaríngea à direita."

Exame neurocular (Durval Prado): O.D. 1/6; O.E. 2/3. Diminuição da fenda palpebral direita. Queratite neuroparalítica à direita. Meios e fundos: normais. Campos visuais: indetermináveis devido ao tremor.

Exames complementares: Exame elétrico da face (C. V. Savoy): Ligeira hipoexcitabilidade do masseter direita Exame do líquido céfalo-raqueano (O. Lange): Punção suboccipital. Pressão inicial 12 (Claude). Líquor normal. R. Wassermann no sangue: negativa.

Comentários: Em síntese, observamos, nesta paciente (fig. 3): à direita: síndrome cercbelar (ataxia, dismetria, disdiadococinesia, tremor intencional, positividade da prova de Stewart-Holmes); síndrome piramidal (hiperreflexia profunda, clôno, positividade das manobras deficitárias de Barre e do pé); distúrbios decorrentes do comprometimento de pares cranianos (hipoestesia da hemiface, queratite anestésica em OD, hipoexcitabilidade elétrica do masseter, hipoacusia tipo percepção e hipoexcitabilidade vestibular, paresia do constritor superior da faringe, do véu mole e hipoestesia da mucosa faringolaríngea). À esquerda: hipoestesia das sensibilidades superficiais em todo o hemicorpo. Discreta hipermetria e tremores (fenômenos estes muito mais atenuados que à direita).


A sintomatologia observada retrata, a nosso ver, a existência de uma lesão no segmento bulboprotuberancial, à direita: o acometimento de vários pares cranianos desse lado, a ocorrência de desordens cerebelares também à direita e as alterações sensitivas à esquerda estão, com efeito, de acordo com essa localização. Alguns distúrbios observados à direita (vivacidade dos reflexos profundos, clôno e positividade das manobras deficitárias de Barre e do pé) levantam, ainda, a suspeita da existência de lesão piramidal à esquerda; contudo, a ausência de outras manifestações da série piramidal (Babinski ou equivalentes, automatismos, sincinesias, etc.) não nos autoriza a afirmar categoricamente a existência de tal lesão. Neste mesmo sentido, a invasão do lado esquerdo pela lesão bulboprotuberancial seria confirmada pelos discretos fenômenos cerebelares evidenciados à esquerda. Esta observação é ainda sobremodo interessante pela presença de mioclonias da úvula e de tremores da cabeça. É oportuno recordar que nas lesões do tronco encefálico a síndrome mioclônica pode ocorrer não apenas nos territórios subordinados a nervos cranianos (mioclenias do véu, palato, faringe, laringe) como também nos de inervação raqueana (músculos intercostais, diafragma); desses vários tipos, as mioclonias da úvula são porém as mais frequentes. Segundo o esquema proposto por Guillain e Mollaret6 6 . Guillain, G. e Mollaret, P. - Deux cas de myoclonies synchrones et rhythmées vélo-pharyngo-oculo-diaphragmatiques. Pm Neurologique 2: 545-566 (novembro) 1931. , três localizações principais são responsáveis pelo aparecimento da síndrome mioelônica: a) lesões do feixe fundamental medial, e eventualmente do feixe longitudinal posterior; b) lesões da oliva bulbar, do núcleo denteado do lado oposto e das estruturas que unem entre si essas formações; c) lesões no pedúnculo cerebelar superior. As lesões do tronco encefálico sendo ordinariamente múltiplas e bilaterais, compreende-se a dificuldade, na maioria dos casos, de apurar-se precisamente qual das estruturas afetadas é a responsável pelas manifestações mioclônicas obervadas.

Quanto à ocorrência de tremores na cabeça, acentuando-se por ocasião da execução de movimentos voluntários desse segmento, subordinam-se talvez ao acometimento dos pedúnculos cerebelares superiores, pois de acordo com as verificações de Pierre Marie e Foix7 7 . Marie, P. e Foix, Ch. - cit. por Guillain e Alajouanine in Pathologie du Mésocéphale. Nouveau Traité de Medicine, vol. XX, Masson et Cie., Paris, 1935. , as hipercinesias podem manifestar-se nas lesões protuberanciais altas ou pedunculares justamente em conseqüência do comprometimento daqueles pedúnculos cerebelares.

Etiopatogenia: A sintomatologia observada decorre evidentemente de amolecimento das regiões apontadas. A negatividade dos exames complementares realizados, a inexistência de dados anamnésticos precisos sobre os antecedentes mórbidos, não nos permitiram, contudo, precisar a etiologia do processo causador do amolecimento.

Observação 4: A. M., 33 anos, brasileiro, lavrador, casado, internado na 1.a Enfermaria de Medicina de Homens (Serviço do Prof. A. Almeida Prado) em 15 de outubro de 1943. A moléstia iniciou-se há aproximadamente quatro anos, de maneira súbita, por tonturas, cefaléia e fraqueza nas pernas. Estas ficaram "bambas" e, ao andar, cambaleava como um ébrio (sic); também não podia movimentar muito a cabeça, porque era acometido de fortes tonturas e vertigens, tendo a impressão de que os objetos ao redor giravam. A dor de cabeça persistiu nos meses seguintes, localizando-se predominantemente na região occipital. Desde o início da enfermidade, notou ainda uma certa dificuldade na execução dos movimentos dos membros à esquerda, sobretudo para os movimentos mais delicados. Posteriormente, manifestaram-se distúrbios da deglutição; desde essa época engasga-se com facilidade, porque os alimentos "param" na garganta (sic).

Antecedentes: Nada digno de registro. Nega passado venéreo-luético. Exame clínico geral: Bulhas cardíacas normais. Pressão arterial: 165-110.

Sistema nervoso: Na posição erecta, aumenta a base de sustentação e inclina ligeiramente o tronco para a frente; aproximando os pés, notam-se oscilações para todos os lados, mesmo estando com os olhos abertos. Durante a marcha evidenciam-se desvios (principalmente para a esquerda), anteflexão do tronca e cabeça inclinada para a direita Motricidade: Paresia do facial inferior esquerdo (tipo central), com nítido repuxamento da boca para a direita. Diminuição da força muscular do esternoclidomastóideo esquerdo e dos membros do mesmo lado; manobra deficitária de Mingazzini positiva à esquerda (coxa e perna). Prova de Barré: discretas oscilações à esquerda. Manobras de Raimiste e dos braços estendidos: francamente positivas à esquerda. Coordenação dos movimentos: perfeita à direita, comprometida à esquerda, onde se evidencia nítida ataxia de tipo cerebelar, dismetria, assinergia, adiadococinesia, decomposição dos movimentos. Hipotonia muscular em todos os membros. Ligeira disartria. Disfagia. Reflexos: medioplantar e aquileu vivos à esquerda, normais à direita. Patelar, estilo-radial, cubitopronador, bicipital e tricipital vivos de ambos os lados, predominantemente à esquerda. Mentoneiro, oro-orbicular e nasopalpebral vivos. Sinais de Rossolimo e Mendel-Bechterew da mão presentes bilateralmente. No pé apenas se obtém o sinal de Rossolimo, aliás de maneira inconstante, à esquerda. Cutaneo-plantar: sinal de Babinski esboçado à esquerda, notando-se às vezes tendência à abertura dos dedos em leque; à direita o reflexo cutaneoplantar é duvidoso. Manobras variantes negativas. Cremastéricos mais nítidos à direita. Não foram obtidos os reflexos abdominais inferiores, o palmomentoneiro e o sinal de Babinski da mão. Automatismo: negativas as manobras de Pierre Marie-Foix e de Babinski; pelas percussões repetidas obtém-se a extensão do grande dedo à esquerda. Sincinesias: esboçadas à esquerda as sincinesias de coordenação (Raimiste e Cacciapuoti). Sensibilidade: Hipoestesia táctil, dolorosa e térmica no hemicorpo direito, Sensibilidade segmentar, estereognóstica, visceral normais; vibratória comprometida (?) nos membros inferiores.

Exame neurotorrinolaringológico (Rezende Barbosa): "Face: paresia facial, tipo central, à esquerda. Trigêmeo motor: nihil. Trigêmeo sensitivo: reflexo mucoso nasopalpebral lerdo de ambos os lados. Hipoestesia da mucosa bucal em ambos os lados? Língua: ligeiro desvio da ponta à esquerda. Hemilíngua esquerda encarquilhada, ainda não atrofiada, hipotõnica, com limitação dos movimentos à direita. Palato mole: paresia do hemipalato esquerdo. Parede posterior da faringe: paresia da hemifaringe esquerda com esboço do sinal de cortina para a direita. Hipoestesia bilateral da parede posterior. Laringe: epiglote desviada à esquerda. Paresia da hemilaringe esquerda. Ramos externos dós espinhais íntegros. VIII Par craniano: Cocleares: Audição no limiar da normalidade em ambos oslados. Vestibulares: Nistagmo espontâneo horizontal, com componente oblíquo, em ambos olhares laterais, intenso, de média frequência, não influenciado pelas posições dadas à extremidade cefálica. Prova calórica fria com a cabeça 60° atrás e 20 cc. de água fria - OD: sem latência, nistagmo horizontal, com componente oblíquo, para o lado oposto durante 1'50", de média frequência, contado somente ao olhar direto devido ao espontânea Ausência completa de sensação vertiginosa rotatória, de suores frios, mal-estar ou náuseas, em oposição ao grande desvio segmentar e tendência à queda para a direita; OE: sem latência, nistagmo para o lado oposto durante 1'56", com as mesmas características anteriores, contado ao olhar direto somente. Ausência completa de sensação vertiginosa bem como não se verificou qualquer inclinação, desvio segmentar ou mesmo sensação de quebra do tono corporal à esquerda. Prova rotatória: 10 voltas em 20" com a cabeça 30° à frente. Da esquerda para a direita pós-nistagmo para a esquerda: 40". Desvio do braço direito cerca de 90° à direita sem desvio do esquerdo. Sensação vertiginosa quase nula. Da direita para a esquerda pós-nistagmo para a direita: 36", Sensação vertiginosa quase nula. Conclusões: paresia facial, tipo central, à esquerda; desvio da ponta da língua à esquerda; paresia do hemipalato esquerdo; paresia da parede posterior da faringe à esquerda com esboço de sinal de cortina para a direita; paresia da hemilaringe esquerda com epiglote reclinada à esquerda; nistagmo espontâneo, de tipo central; interrogatório dos sistemas vestibulares, às provas calórica fria e rotatória, com respostas atípicas, predominando ao lado do aumento do batimento do nistagmo, a ausência completa de reação vertiginosa, em ambos os lados, e a ausência de reação motora segmentar quando da excitação à esquerda (comprometimento do feixe deiterospinhal à esquerda?)".

Exame neurocular (Durval Prado): Nistagmo no olhar lateral D. e E. Diâmetros e reação pupilares: normais. Acuidade visual: sem correção OD = 2/3; OE = 1. Campos visuais (5/333): normais.

Exames complementares: R. Wassermann no sangue; negativa. Líqüido céjalo-raqueano (O. Lange): Punção suboccipital. Pressão inicial 12 (Claude). Células: 0,4 por mm3. Líquor normal.

Comentários: Em síntese, evidenciamos neste caso (fig. 4): à esquerda: síndrome cerebelar (dismetria, assinergia, adiadococinesia, etc), síndrome piramidal (predominantemente deficitária) e comprometimento de pares cranianos bulhares (hemilíngua hipotônica, encarquilhada; paresia do hemipalato e da hemilaringe, paresia da perede posterior da faringe). A direita: síndrome sensitiva (hipoestesia táctil, dolorosa e térmica) e vivacidade reflexa.


Destaca-se ainda a existência de nistagmo espontâneo horizontal ao olhar direto, com componente oblíquo nos olhares laterais.

A sintomatologia observada traduz, essencialmente, o padecimento bulhar à esquerda, donde as alterações dos mencionados pares cranianos, as desordens cerebelares homolaterais à lesão e as sensitivas heterolaterais. Os resultados obtidos à pesquisa das provas vestibulares sugerem, de acordo com a opinião do otorrinolaringologista, o acometimento do feixe deiterospinhal à esquerda.

Ademais, é também provável a existência de outra lesão, instalada em nível mais superior, possivelmente protuberancial anterior, predominante à direita, e que condicionaria não só a hiperreflexia generalizada,, mas, principalmente, a síndrome piramidal esquerda (síndrome deficitária, paresia facial esquerda tipo central, alterações dos reflexos profundos e superficiais desse lado).

Etiopatogenia: o início brusco e a evolução dos distúrbios denunciam claramente a origem vascular da lesão. Não tendo sido apurada a participação da sífilis como fator etiológico, acreditamos ser a arteriosclerose o processo verdadeiramente responsável pelo amolecimento bulboprotüberancial ocorrido.

Observação 5: F. N., 48 anos, português, casado, lavrador. Internado na l.a Enfermaria de Medicina de Homens (Serviço do Prof. A. Almeida Prado) em 28 de agosto de 1943 Há ano e meio, sem causa aparente imediata, começou a apresentar, de modo imprevisto e súbito, refluxo de alimentos por via nasal, tanto de líquidos como de sólidos. Na mesma ocasião, a voz alterou-se, tornando-se fanhosa. Notou ainda diminuição progressiva da audição à direita, de tal sorte que atualmente acusa surdez total desse lado. Seis meses depois de iniciada a doença, começou a apresentar certa dificuldade em realizar os movimentos dos membros superior e inferior direitos; concomitantemente, surgiu sensação de "dormência" e de "picadas" na mão e dorso do pé do mesmo lado. Sobre os antecedentes familiais e pessoais, nada digno de registro. Nega passado venéreo-sifilítico.

Exame clínico geral: Tipo leptossomático. Mucosas algo descoradas. Dentes em mau estado de conservação. Pulso: 86 batimentos por minuto. Pressão arterial: 155 x 110 mms. de Hg. Artérias periféricas com paredes duras, lisas. Artérias temporais salientes e sinuosas. À ausculta do coração, hiperfonese e modificação de timbre da 2.a bulha aórtica, acompanhada de sopro sistólico no foco aórtico. Nada digno de nota para o lado dos demais aparelhos.

Exame neurológico: Sinal de Romberg esboçado; nítido quando sensibilizado. Marcha talonante à direita, acompanhada de um certo grau de espasticidade do mesmo lado. Movimentos voluntários limitados à direita, com ligeira diminuição da força muscular. Manobras deficitárias de Mingazzini (queda da perna), Barre (oscilações), Raimiste e "braços estendidos" positivas à direita. Manobra do pé negativa. Ausência de incoordenações musculares. Tonicidade normal. Reflexos osteotendinosos e cutâneos normais e iguais de ambos os lados. Ausência dos reflexos patológicos de Mendel-Bechterew e Rossolimo, de clono, trepidações e sincinesias. Palavra nasalada (rinolalia). Disfagia: refluxo de alimentos pelo nariz. Sensibilidade: hipoestesia para todas as formas de sensibilidade superficial no hemicorpo direito. Perda da sensibilidade segmentar nos dedos do pé, à direita.

Exame neurotorrinolaringológico (Rezende Barbosa): Paresia do músculo orbicular dos lábios à direita. Hipoacusia do tipo condução à direita. Paresia do palato mole à direita. Paresia bilateral da parede posterior da faringe. Paresia bilateral das cordas vocais (mais acentuada à direita?). Hemilíngua esquerda mais alta, hipotônica, com movimentos da ponta limitados para a direita. Diminuição da sensibilidade das fossas nasais, mais acentuada à esquerda. A diminuição da sensibilidade da boca, palato e faringe é bilateral. Nervos vestibulares: Prova calórica fria: OD: 20 cc. com cabeça a 60° atrás. Praticamente sem latência. Nistagmo horizontal para o lado oposto: 2'8", média frequência, rítmico, com reações harmônicas (braços desviam-se para o lado do componente lento). OE: idem, idem - 2'15.

Exame neurocular (Durval Prado): Estática oculopalpebral, motricidade extrínseca, diâmetros e reações pupilares: fisiológicas. Meios e fundos: normais. Acuidade visual (sem correção): OD 2/3; OE 2/3.

Exames complementares: R. de Wassermann no sangue: negativa. Exame do liqüido céfalo-raqueano (O. Lange): Punção lombar em decúbito lateral. Pressão inicial 12 (Claude). Stookey normal. Límpido e incolor. Citologia: 1,2 por mm3. Albumina: 0,40 grs. por litro. R. Pandy: positiva (+). R. Benjoim: 00000.12221.00000.0. R. Takata-Ara: negativa. R. Wassermann: negativa com 1 cc.

Comentários: Trata-se, em resumo, de um paciente que apresenta distúrbios decorrentes do comprometimento de vários pares cranianos, principalmente bulbares, aliados a uma síndrome motora deficitária e uma síndrome sensitiva à direita (fig. 5). As alterações evidenciadas pelo exame neurotolaringológico atestam o acometimento bulbar predominante e a bilateralidade do processo, condicionando distúrbios nos territórios subordinados aos nervos glossofaríngeo, vagospinhal e trigêmeo sensitivo de ambos os lados.


A hipoestesia táctil, dolorosa e térmica, entretanto, interessa também a face (hemiface direita), e por conseguinte a lesão ultrapassa superiormente os limites do bulbo visto como apenas no terço superior da protuberância, as fibras sensitivas correspondentes à face terminam o seu cruzamento incorporando-se ao eixe espinhotalâmico. O comprometimento do facial inferior direito confirma este modo de ver.

Parece-nos portanto razoável localizar a lesão no segmento bulboprotuberancial, predominantemente à esquerda, conquanto nitidamente bilateral ao nível do bulbo.

Uma particularidade interessante deste caso consiste na dissociação verificada entre as síndromes deficitária piramidal e de libertação. Realmente, é incontestável o déficit motor à direita e nenhum sinal de libertação está presente: os reflexos osteotendineos são de amplitude praticamente igual de ambos os lados do corpo e estão ausentes os sinais de Babinski e equivalentes, os reflexos de automatismo e as sincinesias.

Quanto à etiopatogenia, trata-se provavelmente de um processo de angiosclerose condicionando isquemia dos territórios mencionados. O paciente é, com efeito, portador de hipertensão arterial e apresenta sinais de arteriosclerose generalizada, sendo, portanto bastante provável a extensão do processo de angiosclerose aos vasos cerebrais. Por outro lado, o exame clínico e o laboratório não forneceram argumentos suficientes para justificar outras hipóteses etiopatogênicas mais satisfatórias para o caso em apreço.

Observação 6: M. S., 49 anos, branco, brasileiro, soldado, examinado no Ambulatório do Serviço de Neurologia em 10 de janeiro de 1943. Há 15 dias notou subitamente desvio da boca e alteração da fala, que se tornou fanhosa e fina (sic). No dia seguinte, a boca apresentava-se mais nitidamente desviada para a esquerda e não conseguia bochechar, em virtude do refluxo de líqüidos pelo nariz; os movimentos da língua tornaram-se difíceis e a deglutição dos alimentos sólidos também se prejudicou, motivo pelo qual passou três dias sem poder alimentar-se (sic). Teve tonturas giratórias violentas e "fraqueza" dos membros inferiores; muitas vezes ao andar desequilibrava-se como um bêbado. A salivação tornou-se excessiva, escoando para fora da boca, obrigando-o a usar ininterruptamente o lenço. Refere ainda "adormecimento" da hemiface direita. Nega distúrbios visuais ou auditivos; ligeira cafaléia.

Antecedentes: Cancro venéreo há mais de 10 anos; adenite inguinal supurada à esquerda. Exame clínico geral: Constituição pletórica. Hiperfonese da 2.a bulha no foco aórtico. Pressão arterial: 190-90. Varizes no membro inferior esquerdo.

Exame neurológico: Motricidade: Nítido desvio da boca para a esquerda (paresia facial direita, tipo central). Nos membros superiores e inferiores, a força muscular é normal e a coordenação dos movimentos perfeita. Manobras deficitárias negativas. Marcha e tono muscular normais. Palavra de tonalidade grave, nasalada, confusa e às vezes disártrica. Reflexos: patelar direito mais nítido que o esquerdo; estilo-radial, cubitopronador, bicipital e tricipital nítidos e iguais de ambos os lados; oro-orbicular e nasopalpebral vivos. Abdominais pouco evidentes (prejudicados pelo panículo adiposo); cremastéricos, superficiais e profundos, normais. Cutaneoplantar em flexão à esquerda; no lado direito o reflexo é duvidoso, esboçando-se, algumas vezes, a extensão do grande dedo. O reflexo palmomentoneiro é nítido de ambos os lados, evidenciando-se, à direita, a contração associada do cuticular do pescoço. Sensibilidade: hipoestesia táctil, dolorosa e térmica na hemiface direita. Sensibilidades profundas normais. Não há Romberg.

Exame neurotorrinolaringológico (Rezende Barbosa): "Hipoestesia da mucosa da fossa nasal direita, com diminuição do reflexo nasopalpebral direito. Hipoestesia da mucosa bucal e do palato à direita. Paresia facial, tipo central, à direita. Língua sem desvio da ponta, com motilidade conservada. Paresia bilateral do palato mole. Paresia bilateral da parede posterior da faringe sem sinal de cortina. Hipoestesia de toda faringe e laringe. Paresia bilateral dos abdutores da laringe. VIII par craniano: Cocleares: audição no limiar da normalidade em ambos os lados. Vestibulares: ausência de nistagmo espontâneo. OD: prova calórica, água fria após 9", nistagmo horizontal para a esquerda, de média frequência, rítmico, de boa intensidade, durante 1'37". Sensação vertiginosa rotatória idêntica à espontânea sem reação motora. OE: após 8", nistagmo horizonto-rotatório para o lado oposto, durante 1'20", Reações idênticas à prova anterior. Conclusões; déficit sensitivo à direita no território do V par: paresia facial, tipo central, à direita; paresia bilateral do palato mole; paresia bilateral da parede posterior da faringe; paresia bilateral dos abdutores da laringe; déficit sensitivo da faringe e laringe; resposta perversa, à prova calórica fria, do vestíbulo esquerdo".

Exame neurocular (Durval Prado): Estática oculopalpebral, motricidade extrínseca, diâmetro e reflexos pupilares: fisiológicos. Meios: à esquerda leucoma central. Fundos: normais em A. O. Sensibilidade: abolida no lado direito (conjuntiva, córnea e pele das pálpebras). Acuidade visual: (sem correção) OD 1/4; OE 1/10. Refração: hipermetropia. Acomodação: presbiopia. Conclusões: Anestesia corneoconjuntival e palpebral direita. Leucoma central à esquerda. Ambliopia e redução dos campos.

Exames complementares: R. Wassermann no sangue negativa. Líquido cefalo-raqueano normal (O. Lange).

Comentários: A sintomatologia apurada neste caso limita-se, essencialmente, ao acometimento de vários pares cranianos, protuberanciais e bulbares, alguns bilateralmente (donde paresia do palato mole, parede posterior da faringe, abdutores da laringe) e outros apenas de um lado (hipoestesia táctil-dolorosa e anestesia térmica na hemiface direita; paresia facial, tipo central, à direita). Este acometimento uni ou bilateral de vários nervos protuberanciais e bulbares (trigêmeo, facial, glossofaríngeo, vagospinhal) permite localizar a lesão na calota do segmento bulbo-protuberancial, atingindo o bulbo de ambos os lados.


A paresia do facial inferior direito, tipo central, a maior vivacidade do reflexo patelar direito e a resposta em extensão (inconstante) do reflexo cutaneoplantar desse mesmo lado constituem manifestações que sugerem, naturalmente, comprometimento piramidal; contudo, a ausência de outras desordens da série deficitária piramidal ou de libertação impede que a existência de tal processo seja afirmada peremptoriamente. O início dos distúrbios sob a forma de icto denuncia a origem vascular da lesão nervosa: trata-se provavelmente de lesão isquêmica consequente a angiospasmo ou trombose, sobrevindo em indivíduo portador de arteriosclerose e hipertensão.

CONSIDERAÇÕES GERAIS

As observações apresentadas, além de evidenciarem a complexidade que podem assumir os distúrbios consecutivos às lesões vasculares do tronco encefálico, comprovam o fato de tais distúrbios ordinariamente não se enquadrarem nos esquemas, classicamente estabelecidos, das várias síndromes bulbares, protuberanciais e pedunculares, o que se compreende por serem as lesões vasculares frequentemente amplas, múltiplas e muitas vezes localizadas em níveis diversos8 8 . As síndromes clássicas seriam, na opinião de Foix e Hillemand, raramente determinadas por amolecimentos, evidenciando-se geralmente nos casos de tumores, tubérculos ou hemorragias. Foix, Ch. e Hillemand, P. - cit. por Guillain de Alajouanine loc. cit. 7: 103. . Justificam-se, assim, as dificuldades de interpretação da sintomatologia e do exato diagnóstico topográfico desses processos, ao contrário do que ocorre quando a lesão, restrita e bem delimitada, permite estabelecer precisamente a relação entre a síndrome observada e o vaso acometido. A propósito, recorde-se que as síndromes vasculares do tronco do encéfalo dependem originariamente do comprometimento das artérias vertebrais, do tronco basilar, das artérias cerebrais posteriores e das cerebelares (superior, média e póstero-inferior) Assim, as síndromes vasculares bulbares subordinam-se habitualmente à obliteração das artérias vertebrais e cerebelares posteriores, as síndromes protuberanciais à do tronco basilar e artérias cerebelares médias, as síndromes pedunculares à das artérias cerebrais posteriores e cerebelares superiores. Os estudos de Foix e Hillemand sobre a irrigação do tronco do encéfalo, calcados em dados anátomo-clínicos, são hoje clássicos e reconhecem três grupos principais de artérias, com origem no tronco basilar: 1) artérias paramedianas, que irrigam essencialmente as formações existentes no pé da protuberância e bulbo (fibras piramidais, fibras pontocerebelares, núcleos da ponte, Reil mediana, etc.); 2) artérias circunferenciais curtas, encarregadas da nutrição do território lateral do tronco encefálico (região olivar, pedúnculo cerebelar médio, Reil lateral, etc.); 3) artérias circunferenciais longas (cerebelares superior, média e inferior), que presidem à irrigação das formações dorsais do segmento (calota, lâmina quadrigêmea e cerebelo).

Etiopatogenia - As lesões vasculares do tronco do encéfalo reconhecem como causa precípua os. processos isquêmicos da substância nervosa consequentes à trombose da artéria basilar ou dos ramos dela originados. As embolias são verdadeiramente excepcionais.

Nos hipertensos e nos indivíduos idosos, os amolecimentos da região em apreço são observados com relativa frequência e decorrem habitualmente de lesões de natureza não inflamatória, que determinam o espessamento da parede do vaso, diminuindo-lhe a luz (arteríolo e arteriosclerose). Neste sentido, publicaram Lhermitte e Trelles excelente artigo 9 9 . Lhermite, J. e Trelles, J. O. - L'artério-sclerose du tronc basilaire et ses conséquences anatomo-cliniques. Jahrbuch. fur Psychiatrie und Neurologie, B. 51, H. 1/3, p. 91-107. no qual, tratando das conseqüências anátomo-clínicas da arteriosclerose do tronco basilar, salientam os seguintes pontos: "De toutes Jes artères cérébrales l'A. basilaire est celle qu'atteint le plus régulièrement l'athéro-sclérose. Cette lésion n'est pas l'apanage de la sénilité, nous la rencontrons, dès avant la cinquantaine, chez des sujets hypertendus artériels et surtout chez d'anciens syphilitiques. De l'extension du processus athéro-scléreux dépend la sténose et l'oblitération brusque ou progressive des artères qui en dépendent et, tout particulièrement, des artères para-médianes et circónférentielles courtes. Tout de même que les artères lenticulo-strièes sont branchées directement sur la sylvienne, les artérioles protubérantielles médianes ou juxta-médianes s'insèrent à angle presque droit sur l'énorme vaisseau qu'est le tronc basilaire. On comprend ainsi combien aisé peut être le retentissement des altérations basilaires sur d'aussi fines collatérales et aussi combien fréquents en pratique apparaissent les foyers malaciques dans les territoires qu'irriguent les artères dérivées de l'artère basilaire".

Ainda nos indivíduos idosos e portadores de arteriosclerose podem desenvolver-se, em vários pontos do tronco encefálico, focos múltiplos de amolecimento miliar (desintegração lacunar de Pierre Marie). Os focos de amolecimento protuberancial podem mesmo traduzir-se por um quadro tipicamente pseudobulbar (fenômenos piramidais, marcha em passos miúdos, disfagia, disartria, riso e choro espasmódicos, etc.); a estes sinais superpõem-se, em determinados casos, desordens da série cerebelar (dismetria, assinergia, tremor, marcha titubeante, etc.) que caraterizam a forma pontocerebelosa da paralisia pseudobulbar (Lhermitte e Cuel).

O mais importante papel etiológico dos processos vasculares do tronco do éntéfalo parece, contudo, caber à sífilis, cuja predileção para os vasos da base, notadamente para a artéria basilar, é bem conhecida. Daí a frequência com que a trombose dessa artéria ou de suas ramificações, subordinam-se, nos indivíduos jovens, à etiologia luética.

Do ponto de vista clínico, a trombose do tronco basilar manifesta-se sob dois aspectos fundamentais:

a) em alguns casos (forma fulminante ou apoplética), o início é súbito, estabelecendo-se imediatamente estado de coma e paralisias, que acometem em geral os quatro membros. Contraturas, paralisia facial, paralisias oculares, miose, taquicardia e hipertermia são comumente observadas. A morte sobrevêm dentro de algumas horas, de um ou dois dias e, segundo Duret, resultaria da obliteração das artérias correspondentes aos núcleos dos nervos vago e glossofaríngeo.

b) Em outros casos, o início é lento, gradual, traduzindo-se por manifestações prodrômicas mais ou menos acusadas (cefaléias, vertigens, parestesias, etc.), estabelecendo-se ulteriormente os fenômenos paralíticos (tetraplegia, hemiplegia, paraplegia), sob a forma de icto ou não. Os vários tipos de hemiplegias alternas podem ocorrer, assim como desordens cerebelares, sensitivas, alterações dependentes da paralisia de nervos cranianos, hipertermia (que pode atingir 42 e 43°), idéias delirantes e mesmo estado de coma. Nem sempre, entretanto, produz-se o êxito letal e uma certa regressão dos distúrbios motores, sensitivos, cerebelares e outros, é verificada não poucas vezes.

A seguinte observação, relativa a paciente que passou pela 1.a Enfermaria de Medicina de Homerps, onde o examinamos em companhia do Dr. Rolando Tenüto, exemplifica o primeiro tipo, apopletiforme, da trombose do tronco basilar:

Observação 7: J. R., 40 anos, brasileiro, operário. Observado em 24 de março de 1943. No dia anterior ao em que deu entrada na enfermaria, o paciente apresentara bruscamente alterações da fala, a que se seguiram convulsões violentas e torpor. Em estado de coma foi levado para a Santa Casa no dia 24 de março.

Antecedentes: A esposa do paciente teve 5 abortos espontâneos. Exame somático: Temperatura: 38° por ocasião do primeiro exame; posteriormente elevou-ise a 40°,5. Pulso rítmico, 110 batimentos por minuto. Pressão arterial: 220-160.

Sistema nervoso: Contratura, de tipo piramidal, no membro superior direito. Neste membro, e no inferior do mesmo lado, estavam francamente exaltados os reflexos profundos (aquileu, patelar, estilo-radial, cubitopronador, bicipital e tricipital). Cutâneo-abdominais e cremastéricos abolidos à direita. Sinais de Babinski e de Rossolimo presentes à direita. Paralisia facial, tipo central, à direita. Pupila direita em miose.

Evolução: No dia seguinte ao da entrada na enfermaria, o paciente faleceu e a necropsia, praticada no Departamento de Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina de São Paulo (SS-18.030) pelo Dr. Walter E. Maffei* forneceu os seguintes elementos dignos de apreciação. Encéfalo: Leptomeninges lisas, finas e transparentes, nada existindo externamente, a não ser ligeira arteriosclerose dos vasos da base. Aos cortes frontais nada há digno de nota no cérebro. Cortado o rombencéfalo, verifica-se na protuberância uma área de necrose recente, de aspecto granuloso e impregnada de sangue, tomando a metade esquerda; essa área não atinge a superfície, sendo dela separada por delgada faixa de substância branca. O tronco basilar está obliterado por trombo (fig. 6), sem apresentar outra alteração macroscópica. Diagnóstico: Trombose do tronco basilar. Amolecimento da metade esquerda da protuberância. Laudo histológico: Corte do cérebro ao nível da cisterna quiasmática: os espaços aracnóideos estão infiltrados por linfócitos e plasmócitos que formam faixas difusas e perivasculares. Os vasos estão dilatados e cheios de hemácias, vendo-se diversos com sua parede espessada, à custa de proliferação da íntima. Em vários pontos vê-se o infiltrado perivascular que, seguindo o vaso, penetra também nas camadas superficiais do tecido nervoso, que se mostra com numerosos corpos amiláceos. Diagnóstico: Leptomeningite sifilítica".

Comentários: Neste caso, as verificações anatômicas comprovaram, pois, claramente, o importante papel desempenhado pela sífilis como fator etiológico da trombose do tronco basilar e amolecimento subsequente. Do ponto de vista clínico, a sintomatologia apurada (coma profundo, instalando-se de maneira brusca, acompanhado de contratura precoce, hemiplegia, paralisia facial tipo central, etc.) fizera-nos admitir que o insulto apoplético dependesse de hemorragia cortical ou capsular esquerda, com inundação ventricular; o sítio protuberância da lesão (amolecimento) foi, efetivamente, apenas verificado à autópsia, que demonstrou, ademais, a trombose do tronco basilar. Esta observação realça, por conseguinte, as dificuldades que pode oferecer o diagnóstico topográfico das lesões vasculares do tronco encefálico, mormente o da trombose do tronco basilar. Quanto à origem protuberancial das hemiplegias parece-nos oportuno citar os elementos que permitiriam reconhecer, segundo Lhermitte e Trelles,10 10 . Lhermitte e Trelles - loc. cit. 9: 97. tal localização: "l'absence de perte de connaissance prolongée malgré l'intensité et l'étendue de la paralysie, la rétrocession rapide des troubles de la sensibilité objective, l'intégrité du langage intérieur et extérieur ainsi que des fonctions psychiques, dans le cas d'hémiplégie droite, la stabilité de la paralysie, l'absence de phénomènes cérébelleux".

Nas demais observações relatadas, puramente clínicas, a influência da lues apenas está documentada na obs. 1, caso no qual, além das lesões isquémicas decorrentes de arterite sifilítica, é inegável o comprometimento do parênquima nervoso (v. reações liquóricas). Na observação 2, a lues deve também ser incriminada, de acordo com o passado venéreo-sifilítico acidentado e positividade da R. de Wassermann há alguns anos. Na observação 3, não apuramos elementos suficientes para esclarecer a etiologia do processo isquémico; como foram negativos os exames complementares, apenas considerando a predominância da causa sifilítica nas lesões vasculares do tronco encefálico em indivíduos jovens, pode-se, também nesse caso, suspeitar da lues. Ao contrário, nas restantes observações (4, 5, 6), parece-nos mais provável a participação da aterosclerose no desenvolvimento das lesões referidas.

Alameda Rocha Azevedo, 921 - casa 7 - São Paulo.

  • 1. Ottoni de Rezende, M. - Contribuição da otorrinolaringologia ao diagnóstico das afecções bulboprotuberanciais. Rev. de Otolaringol. de S. Paulo, 6: 261-345 (julho-agosto) 1938.
  • 2. Rezende Barboza, J. E. - As vias vestibulares nas lesões bulbares. Rev. Brasil, de Otorrinolaringologia, 7: 485-540 (dezembro) 1939.
  • 3. Lange, O. - Semiologia das provas dos braços estendidos. Rev. Brasil, de Otorrinolaringologia, 9: 315-383 (setembro-outubro), 1941.
  • 4. Tolosa, A., - Contribuição otorrinolaringológica ao diagnóstico das moléstias nervosas. Rev. de Biol. e Med. 1: 198-213 (julho-agosto) 1940.
  • 5. Marie, P. e Foix, Ch.. - Formes cliniques et diagnostic de l'hémiplégie cérébelleuse syphilitique. Semaine Médicale, 33: 145-152 (março, 26) 1913.
  • 6. Guillain, G. e Mollaret, P. - Deux cas de myoclonies synchrones et rhythmées vélo-pharyngo-oculo-diaphragmatiques. Pm Neurologique 2: 545-566 (novembro) 1931.
  • 7. Marie, P. e Foix, Ch. - cit. por Guillain e Alajouanine in Pathologie du Mésocéphale. Nouveau Traité de Medicine, vol. XX, Masson et Cie., Paris, 1935.
  • 9. Lhermite, J. e Trelles, J. O. - L'artério-sclerose du tronc basilaire et ses conséquences anatomo-cliniques. Jahrbuch. fur Psychiatrie und Neurologie, B. 51, H. 1/3, p. 91-107.
  • *
    Expressamos os nossos agradecimentos ao Dr. Walter E. Maffei, que gentilmente nos forneceu o laudo da necropsia acima transcrito e a fotografia (
    fig. 6) correspondente ao caso.
  • 1
    . Ottoni de Rezende, M. - Contribuição da otorrinolaringologia ao diagnóstico das afecções bulboprotuberanciais. Rev. de Otolaringol. de S. Paulo,
    6: 261-345 (julho-agosto) 1938.
  • 2
    . Rezende Barboza, J. E. - As vias vestibulares nas lesões bulbares. Rev. Brasil, de Otorrinolaringologia,
    7: 485-540 (dezembro) 1939.
  • 3
    . Lange, O. - Semiologia das provas dos braços estendidos. Rev. Brasil, de Otorrinolaringologia,
    9: 315-383 (setembro-outubro), 1941.
  • 4
    . Tolosa, A., - Contribuição otorrinolaringológica ao diagnóstico das moléstias nervosas. Rev. de Biol. e Med.
    1: 198-213 (julho-agosto) 1940.
  • 5
    . Marie, P. e Foix, Ch.. - Formes cliniques et diagnostic de l'hémiplégie cérébelleuse syphilitique. Semaine Médicale,
    33: 145-152 (março, 26) 1913.
  • 6
    . Guillain, G. e Mollaret, P. - Deux cas de myoclonies synchrones et rhythmées vélo-pharyngo-oculo-diaphragmatiques. Pm Neurologique
    2: 545-566 (novembro) 1931.
  • 7
    . Marie, P. e Foix, Ch. - cit. por Guillain e Alajouanine in Pathologie du Mésocéphale. Nouveau Traité de Medicine, vol. XX, Masson et Cie., Paris, 1935.
  • 8
    . As síndromes clássicas seriam, na opinião de Foix e Hillemand, raramente determinadas por amolecimentos, evidenciando-se geralmente nos casos de tumores, tubérculos ou hemorragias.
    Foix, Ch. e Hillemand, P. - cit. por Guillain de Alajouanine loc. cit.
    7: 103.
  • 9
    . Lhermite, J. e Trelles, J. O. - L'artério-sclerose du tronc basilaire et ses conséquences anatomo-cliniques. Jahrbuch. fur Psychiatrie und Neurologie, B. 51, H. 1/3, p. 91-107.
  • 10
    . Lhermitte e Trelles - loc. cit.
    9: 97.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Mar 2015
    • Data do Fascículo
      Set 1944
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