Acessibilidade / Reportar erro

Distrofia muscular familial: A propósito de três casos da moléstia de Steinert

Resumos

Os AA. apresentam as observações clínicas de três irmãos portadores de Distrofia Miotônica. Depois de justificarem esse diagnóstico (baseado na presença de amiotrofias, fenômenos miotônicos, persistência de um sulco determinado pela percussão de massas musculares, atrofia testicular com azoospermia, catarata, hipersecreção lacrimal, etc.), salientam algumas particularidades dos casos em estudo, chamando especialmente a atenção para a importância das alterações elétricas observadas (contração lenta, reação fibrilar, etc). Estas alterações da excitabilidade elétrica, aliadas à presença de contrações fibrilares e de mioedema, poderiam indicar a existência de comprometimento das células das pontas anteriores da medula (lesão nuclear), hipótese que é discutida pelos AA. Finalmente, são expostas as conclusões gerais relativas aos casos apresentados.


The clinic observations of three brothers presenting Dystrophia Myotonica (Steinert's disease) are reported. The patients presented wasting of several muscles and the mournful set expression of the face. By tapping some muscles (mainly the deltoides) with a percussion hammer, a weal was produced which slowly subsided. All the patients studied presented also atrophy of the testicles with azoospermia but without impotence; besides there was a peculiar cataract in all the patients, excessive secretion of tears and a mild mental deterioration. Attencion is recalled to some particularities of the observations, chiefly to the importance of electric changes (slow contraction, fibrillar reaction, etc). The changes of the electric excitability and the fibrillar contractions suggest the impairment of the cells of spinal cord's ventral horns.


Distrofia muscular familial. A propósito de três casos da moléstia de Steinert

Oswaldo Freitas JuliãoI; Roberto Melaragno FilhoII

ITerceiro assistente da Clínica Neurológica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

IIAssistente voluntário da Clínica Neurológica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

RESUMO

Os AA. apresentam as observações clínicas de três irmãos portadores de Distrofia Miotônica. Depois de justificarem esse diagnóstico (baseado na presença de amiotrofias, fenômenos miotônicos, persistência de um sulco determinado pela percussão de massas musculares, atrofia testicular com azoospermia, catarata, hipersecreção lacrimal, etc.), salientam algumas particularidades dos casos em estudo, chamando especialmente a atenção para a importância das alterações elétricas observadas (contração lenta, reação fibrilar, etc). Estas alterações da excitabilidade elétrica, aliadas à presença de contrações fibrilares e de mioedema, poderiam indicar a existência de comprometimento das células das pontas anteriores da medula (lesão nuclear), hipótese que é discutida pelos AA. Finalmente, são expostas as conclusões gerais relativas aos casos apresentados.

ABSTRACT

The clinic observations of three brothers presenting Dystrophia Myotonica (Steinert's disease) are reported. The patients presented wasting of several muscles and the mournful set expression of the face. By tapping some muscles (mainly the deltoides) with a percussion hammer, a weal was produced which slowly subsided. All the patients studied presented also atrophy of the testicles with azoospermia but without impotence; besides there was a peculiar cataract in all the patients, excessive secretion of tears and a mild mental deterioration. Attencion is recalled to some particularities of the observations, chiefly to the importance of electric changes (slow contraction, fibrillar reaction, etc). The changes of the electric excitability and the fibrillar contractions suggest the impairment of the cells of spinal cord's ventral horns.

As observações clínicas que constituem o núcleo deste trabalho referem-se a três irmãos portadores de uma distrofia muscular dotada de caracteres muito especiais. Os comentários que sugerem essas observações e a raridade do quadro sintomatológico que apresentam justificam, a nosso ver, a sua publicação.

OBSERVAÇÕES

OBSERVAÇÃO I - Nicola L., 28 anos, solteiro, operário, argentino, internado na 2.ª M. H. (Serviço do Prof. Rubião Meira)1 1 Deixamos aqui consignados os nossos agradecimentos aos Drs. João Alves Meira e Luiz V. Décourt, por nos haverem permitido o estudo e a publicação deste caso. .

A doença iniciou-se, aproximadamente, há 2 anos, por sensação de fraqueza generalizada, indisposição para o trabalho e sonolência após as refeições. Refere ainda o paciente que, ao executar o seu trabalho habitual de costurar sacas de pano, começou a notar dificuldade no ato de abrir as mãos, que continuavam, involuntariamente, a manter o tecido na posição em que havia sido colocado. Durante dois meses esteve afastado do serviço; retornando ao trabalho, percebeu que a força de seus braços estava diminuída, não conseguindo mais executar com a mesma facilidade os serviços que exigiam esforço muscular dos membros superiores, sobretudo das mãos. Progressivamente, essa fraqueza dos membros superiores foi se tornando mais pronunciada, notando então que se cansava facilmente e que seu esforço rendia pouco. Muitas vezes os objetos escapavam-lhe das mãos, pois não tinha força suficiente para bem os apreender. Quasi na mesma época, surgiu enfraquecimento nos membros inferiores que progressivamente se foi agravando, até chegar a ultrapassar em intensidade a fraqueza que sentia nos braços. Assim, não conseguia manter-se de pé por muito tempo e, para caminhar, era obrigado a desenvolver maior esforço, levantando excessivamente a perna e batendo fortemente a ponta do pé contra o sólo. A fraqueza dos membros inferiores não poucas vezes determinou quedas. A não ser essa fraqueza muscular, nenhuma outra queixa apresentava o paciente. Ausência de desordens sensitivas, esfinctéricas e da potência sexual.

Antecedentes pessoais e familiares - Na infância teve sarampo e verminose. Desenvolvimento normal até o início da moléstia atual. Nega passado venéreo-sifilítico. Não era etilista e fumava moderadamente. O pai era forte e faleceu por suicídio. Mãe falecida em consequência de pneumonia. Seus pais tiveram 7 filhos, todos do sexo masculino. O mais velho, Dionisio L. (50 anos), reside na Espanha e o nosso enfermo não possue do mesmo maiores informações. O segundo filho é o paciente José L. (44 anos) a quem se refere a observação III. Sucessivamente, vem: Antonio L. (40 anos), sadio e com 4 filhos normais; Manoel L. (37 anos) também sadio e com 6 filhos (o mais velho tendo 15 anos e o menor 3), todos fortes, conforme verificámos; Vicente L. (34 anos) de quem trata a observação II; João Antonio (32 anos), que reside no interior do Estado e de quem seus irmãos não têm notícias; finalmente, Nicola L., a quem se refere a presente observação. Dois outros irmãos faleceram na primeira infância de causa que ignora.

Exame geral; A musculatura se apresenta de modo geral hipotônica, notando-se a existência de amiotrofias nos membros superiores e inferiores, principalmente em seus segmentos distais. Fácies sem expressão. Troncos nervosos não espessados, nem dolorosos. Gânglios de volume normal. Sistema piloso normalmente desenvovido. Dentes relativamente bem conservados. Aparelhos respiratório, circulatório e digestivo: nada de particular. Pressão arterial: Mx. 95 - Mn. 50.

Exame Neurológico; Chama desde logo a atenção a existência de atrofias musculares, nos membros superiores e inferiores (Figs. 1 e 2). Predominam nas pernas e metade inferior das coxas (a perna esquerda apresenta, na face posterior, um aspecto que recorda o da pseudo-hipertrofia muscular) ; são também pronunciadas nas mãos e antebraços, sobretudo na face posterior destes. Fossas supra e infra-espinhosas deprimidas. Nítida atrofia dos músculos esterno-cleido-mastoidêos, especialmente do esquerdo, cujo relevo está completamente desaparecido (Fig. 3). Facies inexpressiva. Apagamento dos sulcos faciais; apenas se observam algumas rugas na região frontal. A oclusão das pálpebras realiza-se incompletamente. Pronunciada hipersecreção lacrimal. Motricidade ativa : Nos membros inferiores, são praticamente impossíveis os movimentos de flexão dorsal dos pés e extensão dos dedos (em consequência, pés caidos e marcha escarvante) ; os movimentos dependentes de outros grupos musculares (extensores dos pés, flexores e extensores das pernas) realizam-se aparentemente de maneira normal, mas a força muscular se encontra diminuída, especialmente a dos extensores das pernas. Os flexores e extensores das coxas apresentam, ao contrário, força muscular normal. Manobra deficitária de Mingazzini positiva, verificando-se a queda imediata das pernas; as coxas mantém-se na posição em que são colocadas. Negativa a manobra de Barré. Não se observam, ao exame clínico, fenômenos miotônicos após a contração muscular ativa. Nos membros superiores, os movimentos das mãos e dos dedos (especialmente do polegar), como também os dos antebraços, executam-se com dificuldade, em virtude do comprometimento da força muscular. Nos braços é menos pronunciada essa diminuição da força muscular. Na face, alguns músculos cuticulares (orbicular das pálpebras, principalmente) também apresentam insuficiência funcional. Os atos de assoprar e assobiar realizam-se bem, da mesma forma que a contração do cuticular do pescoço. Hipotonia muscular, pronunciada nos membros. Pés e mãos balouçantes. Contrações fibrilares presentes em alguns músculos da cintura escapular, especialmente no deltoïde; tornam-se mais nítidas após a percussão. Miodema evidente no biceps braquial. Reflexos ídiomusculares presentes e níticos. Digno de destaque é o fato da conservação, por alguns segundos, da impressão fascicular deixada no músculo pêlo martelo de percussão, fenômeno bem evidente ao nivel dos deltoides, peitorais, gêmeos (Fig. 4). Reflexos clônicos profundos: médio-plantares e aquileus nítidos; patelares muito enfraquecidos. Médio-púbico : nítida a resposta abdominal e muito fraca a crural. Estilo radial: normal de ambos os lados. Bicipitais e tricipitais : nítidos. Cúbito-pronador e olecraniano não foram obtidos. Mentoneiro, oro-orbicular e naso-palpebral, normais. Sinais de Rossolimo e de Mendel-Bechterew ausentes. Reflexos superficiais: cutâneo-plantar pouco evidente, demonstrando, de ambos os lados, discreta flexão (em outros exames, teria sido observada tendência à extensão, no lado direito). Manobras de Gordon e Schaeffer, negativas. A manobra de Oppenheim, raras vezes, determina esboço de extensão do grande artelho, à direita. Cutâneo-abdominais vivos. Cremastéricos pouco evidentes. Clono. trepidações, automatismos e sincinesias : ausentes. Sensibilidade normal em todas as suas formas, superficiais e profundas. Não há ataxias.




Exame endocrinológico - Pêlos pubianos longos e lisos. Mãos cianosadas e úmidas, do tipo hiposexual. Testículos moles e hipotróficos, discretamente fibrosos em sua parte interna. Hipoorquidía. Caracteres sexuais secundários bem desenvolvidos.

Exame psíquico : Interrogado, refere que frequentou diversas escolas, durante o período de ano e meio, apenas conseguindo aprender a assinar o nome e a contar. Realiza somente serviços bastante rudimentares na lavoura e nas fábricas onde tem trabalhado. Não sabe fornecer dados acerca do seu desenvolvimento sômato-psíquico e a respeito da infância em geral. Sempre foi calado, retraído, tímido, pouco sociavel. Jamais manteve relações sexuais, acusando indiferença sexual, ao que se pode concluir através do interrogatório do paciente. Facies e atitude algo interiorizadas. Vestuário bem composto. Atenção voluntária facilmente exaurivel. Não acusa distúrbios da percepção. Memória relativamente conservada nas diversas modalidades. Associação ideativa bastante lenta; viscosidade mental acentuada. Ausência de delírios. Orientação auto e alopsíquica conservadas. Nítida indiferença afetiva pela família; tendência ao autismo. Vontade deficiente. Capacidade pragmática pouco desenvolvida. Ausência de impulsos agressivos e de reações anti-sociais.

Exames complementares - Exame elétrico (vide resultado analítico em quadro anexo) - "Conclusões: Face - Síndrome elétrica de degeneração parcial nos músculos frontal e superciliar de ambos os lados; os outros músculos pesquizados, inervados pelo facial e trigêmio, respondem normalmente ao excitante galvânico. Membros superiores - Síndrome elétrica de degeneração nos músculos longo supinador e oponente do polegar, de ambos os lados. Membros inferiores - Síndrome elétrica de degeneração parcial nos músculos vasto interno, vasto externo, longo peroneiro, semi-membranoso, semi-tendinoso, extensor próprio do grande artelho e gêmeos de ambos os lados e, também, nos músculos tibial anterior e extensor comum dos artelhos, à esquerda. Síndrome elétrica de degeneração completa nos músculos tibial anterior e extensor comum dos artelhos à direita". (C. V. Savoy). Eletro cardio grama: Ritmo sinusal regular. Frequência em torno de 85 batimentos por minuto. Onda P isoelétrica em Dl. Espaço PR medindo 0,26 (normal até 0,22). QRS não alargadas e de pequena amplitude. Espaço ST não desnivelado. Onda T difásica em Dl, D2, D4, R e T. Eixo elétrico ventricular em torno de 90°. Diagnóstico: Sinais elétro-cardiográficos de bloqueio auriculo ventricular incompleto. Sinais discretos de comprometimento do miocardio (J. Barros Magaldi). Líquido céfalo-raquidiano normal (O. Lange). Metabolismo basal diminuído de 4,8% (S. Ribeiro). Reação de Wassermann no sangue negativa. Fósforo no sangue 4,4 mgrs. %o. Creatinina preformada 1,3 mgr. %. Creatinina total 6,4 mgr. %. (N. Pimenta - Departamento de Química Fisiológica da Fac. Medicina). Exame do esperma - O exame diréto e a fresco, praticado em material obtido por ejaculação recente, não revelou a presença de espermatozóides : azoospermia absoluta (H. Cerruti). Exames de urina e fezes : negativos.

OBSERVAÇÃO II - Vicente L, 34 anos, casado, servente de pedreiro, argentino. Examinado no Ambulatório de Neurologia da Faculdade de Medicina.

Há cerca de 7 anos, começou a sentir fraqueza nos membros inferiores. Pouco a pouco essa fraqueza se foi tornando cada vez mais pronunciada, dificultando a marcha e o exercício de sua profissão. Para subir uma ladeira ou para galgar uma escada, via-se obrigado a dispender grande esforço, necessitando inclinar o corpo para a frente e apoiar as mãos nos joelhos. Atualmente, é incapaz de subir uma escada de pedreiro, o que até há 4 anos fazia rotineiramente e com toda a facilidade. Dois anos depois do início da moléstia, a força muscular dos membros superiores também começou a diminuir consideravelmente e, hoje, não consegue levantar um peso maior do que 5 Kg.. Não notou qualquer diferença de volume em seus membros. Nestes últimos anos, sofreu várias quedas durante o serviço. Nega perturbações esfinctéricas ou da potência sexual. Queixa-se de "fraqueza da vista". há 4 anos. Quanto aos dentes, o paciente refere a queda de 2 molares superiores e de 2 inferiores, nestes últimos anos; os outros dentes também perderam a firmeza, encontrando-se atualmente todos abalados (sic).

Antecedentes pessoais e familiares - Ignora se teve as moléstias infecciosas comuns na infância. Sempre gozou saúde. Nega passado venéreo-luético. Há 7 anos, caiu de um caminhão, traumatizando o lado direito do corpo e desde então notou "adormecimento" da face externa da coxa direita. A respeito dos antecedentes familiares, vide o que está referido na observação I. O enfermo Vicente L. é casado há 5 anos; sua esposa é sadia, porem jamais concebeu.

Exame geral: À inspeção, nota-se ligeira atrofia da musculatura da perna direita e, ainda menos nítida, da face posterior da perna esquerda (Fig. 1). Omoplatas com tendência à rotação externa; scapula alatœ (Fig. 2). Contrações fibrilares ou fasciculares em diversos músculos da cintura escapular e dos membros inferiores, bem como nos músculos mastigadores, sendo particularmente nítidas nos masseteres; acentuam-se após a percussão das massas musculares. Boca entreaberta (o doente consegue, todavia, fechá-la sob a ação da vontade). Facies pouco expressiva; sulcos faciais pouco pronunciados. Hipersecreção lacrimal. Abdomen proeminente; pelos atos de tossir, assoprar, etc., acentua-se a flacidez da musculatura abdominal. Aparelhos digestivo, respiratório e circulatório: nada digno de menção. Tensão arterial: Mx. 110 - Mn. 80. O exame das funções psíquicas mostra apenas bradipsiquismo.

Exame Neurológico: Os movimentos de extensão dos artelhos e dorsiflexão dos pés executam-se com alguma dificuldade. Os demais movimentos dos membros inferiores realizam-se de maneira normal. A força muscular encontra-se praticamente conservada em todos os grupos musculares dos membros inferiores, excetuando-se os flexores dorsais dos pés e extensores dos artelhos, que a apresentam um pouco diminuída. Manobras deficitárias de Mingazzini e Barré negativas (o doente necessita entretanto esforçar-se para manter as posições). Os movimentos dos membros superiores realizam-se satisfatoriamente; entretanto, a energia muscular encontra-se francamente comprometida, especialmente nos extensores e flexores das mãos e dedos e, em grau menor, nos extensores do antebraço, principalmente à esquerda. Manobras de Raimiste e dos braços estendidos: negativas. Face: o paciente consegue executar relativamente bem os atos de assobiar, assoprar, enrugar a fronte e contrair os supercílios. Consegue também fechar os olhos, embora a flacidez do orbicular das pálpebras seja nítida; as pálpebras oferecem pouca resistência contra a sua abertura passiva. Movimentos da boca, conservados. Músculos cuticulares do pescoço, normais. Quanto aos músculos mastigadores, nota-se que, por ocasião da contração ativa do masseter, há um certo tempo de latência antes de ocorrer a sua descontração, que também se processa lentamente. Movimentos passivos com amplitude normal. A palpação das massas musculares, principalmente das pantorrilhas, revela kipotonia muscular. Pés e mãos balouçantes. Os músculos abdominais apresentam-se também flácidos e hipotônicos. Não há ataxias, dismetrias, adiadococinesias. A marcha realiza-se com alguma dificuldade, mas nada de característico apresenta (tronco oscilante). Contrações fibrilares bem evidentes nos músculos deltoïde, trapézio, masseter, quadriceps crural e músculos das pantorrilhas. Reflexos: patelar, aquileu e medio-plantar diminuídos, de ambos os lados. Médio-púbico: resposta abdominal viva e crural ausente. Estilo-radial e cúbito-pronador não foram obtidos à direita e normais à esquerda. Naso-palpebral muito diminuido; mentoneiro e cutâneo-abdominais : bem evidentes. Reflexos pupilares normais. Sinais de Mendel-Bechterew e de Rossolimo ausentes, bem como trepidações, clono e automatismos. Reflexos idio-musculares nítidos; no ponto em que se realiza a percussão dos fascículos musculares, nota-se a formação de um sulco que perdura alguns segundos. Sensibilidade: estreita faixa de hipoestesia tactil, dolorosa e térmica na região lateral da coxa (território do nervo cutâneo femural lateral, parte inferior), possivelmente relacionada ao acidente mencionado na anamnése. Sensibilidades profundas normais.

Exame endocrinológico : Tipo morfológico esboçando o tipo feminino: cintura pélvica alargada, coxas roliças e unidas. A distribuição do sistema piloso é do tipo masculino. Barba normal ; pêlos pubianos longos, pouco crespos. Testículos hipotróficos e de consistência flácida. Mãos cianóticas, violáceas, frias e úmidas, do tipo hipo-sexual.

Exames complcmentares: Exame Elétrico: "Conclusões: Face - Com exceção dos músculos bucinador e cuticular de ambos os lados, que respondem normalmente ao excitante galvânico, todos os outros músculos pesquisados e pertencentes à inervação do facial e trigêmio apresentam síndrome elétrica de degeneração parcial. Cintura escapular e membros superiores - Síndrome elétrica de degeneração parcial nos músculos romboide, longo-supinador e oponente do polegar de ambos os lados e nos músculos triceps e abdutor do minimo, à direita. Síndrome elétrica de degeneração fibrilar (R. F.) nos músculos deltoïde e biceps de ambos os lados. Cintura pélvica e membros inferiores - Síndrome elétrica de degeneração parcial nos músculos biceps de ambos os lados, costureiro e semi-membranoso à direita e, também, no território muscular dependente do ciático popliteo externo, de ambos os lados" (C. V. Savoy). Líquido céfalo raquiano normal (O. Lange). Metabolismo basal diminuído de 5,1% (S. Ribeiro). Exame do esperma: azoospermia absoluta (H. Cerruti). Reação de Wassermann no sangue: levemente positiva (+). Colesterol no sangue: 150 mg. % pelo método de Bloor (normal: 140-170 mg. %). Cloro no sangue total: 500 mg. % expressado em CINa (mét. Whitwhorn normal: 350-550 mg. % em CINa). Sódio no soro: 300 mg. % pelo método de Kramer-Tisdall (normal: 325-345 mg. %). Uréa no sangue total: 35 ctgr %o pelo método Dell'Aria (normal: 0,20 a 0,50 gr. %o). Gonzales Torres - Lab. Paul. de Biologia). Exame hematológico : Hemácias nada apresentam de particular. Leucocitose com neutrofilia absoluta, com tendência de desvio para a esquerda. Neutrófilos apresentam granulações A.. Linfocitose relativa e absoluta. Mielograma : A medula apresenta discreta hiperplasia, tomando o aspecto de uma medula metamiélo-mielocitária, com grande número de sinais próprios dos processos toxi-infecciosos. Raros linfocitos e Plasmazellen". (J. Paula e Silva).

OBSERVAÇÃO III - José L. ; 44 anos, casado, pintor, espanhol. Examinado no Ambulatório de Neurologia da Faculdade de Medicina.

Encontra-se doente há aproximadamente 13 anos. Até essa época gozava saúde perfeita, trabalhando normalmente. Há 12 ou 13 anos, porém, começou a notar enfraquecimento nos membros inferiores, que rápida e progressivamente se agravou. Um mês depois do início da moléstia, já não podia mais caminhar, nem conseguia manter-se firme, quando na posição erecta. Durante 2 meses esteve acamado, em virtude de falta de força nos membros inferiores (especialmente no direito). Depois, obtendo algumas melhoras conseguiu levantar-se e andar, embora defeituosamente e com muita dificuldade; entretanto, não poude mais voltar ao seu trabalho costumeiro, conseguindo apenas realizar pequenos trabalhos caseiros. Sete anos depois, a fraqueza das pernas ainda mais se acentuou e a debilidade muscular invadiu o resto do corpo. Percebeu então que seus membros emagreciam e, si elevasse os membros inferiores, os pés ficavam como que dependurados (sic). A fraqueza muscular e as atrofias aumentaram com o correr do tempo e, assim, dc dois anos para cá, não consegue caminhar senão com o auxílio de bengala. Nega perturbações esfinctéricas, mas refere discreta diminuição da potência sexual. Nunca teve distúrbios visuais, auditivos ou desordens da sensibilidade.

Antecedentes pessoais - Na infância, sarampo. Aos. 14 anos teve tifo. Sofreu do pulmão mas os exames foram negativos para tuberculose (Instituto Clemente Ferreira). Bronquite. Disenteria. Nega passado venéreo.

Exame geral: À inspecção, destaca-se a existência de pronunciada atrofia muscular, generalizada (Figs. 1 e 2). Nos membros inferiores, as amiotrofias são predominantes, afetando intensamente a metade inferior das coxas e as pernas onde não se vêem os relevos musculares. Pés caidos e em rotação interna. Nos membros superiores, a amiotrofia é global, embora mais nítida na face posterior dos ante-braços e nas mãos. O polegar conserva-se em adução, principalmente à esquerda. Tronco semi-fletido; esta atitude se acentua, desde que o paciente aproxime os pés um do outro ou por ocasião da marcha. Pescoço e cabeça inclinados para a frente, permanentemente. Na postura erecta, o doente procura, para melhor se equilibrar, manier os pés um pouco afastados, apoiando-se mais sobre um dos membros, geralmente o direito. Facies inexpressiva. Hipersecreção lacrimal. Queda dos cabelos nas regiões frontal e parietal superior. Gânglios axilares, epitrocleanos, inguinais facilmente palpáveis, mas de volume normal. Panículo adiposo escasso. Dentes mal conservados e frágeis, com numerosas falhas. Aparelhos circulatório, digestivo e respiratório normais. Tensão arterial: Mx. 115 - Mn. 70. O exame psíquico revela, apenas, bradipsiquismo.

Exame Neurológico - Pronunciadas atrofias musculares, sobretudo das pernas. Contrações fibrilares presentes, intensificando-se após ligeira percussão das massas musculares. À percussão nota-se ainda, de maneira muito nítida, o fenômeno da persistência de um sulco no ponto em que é realizada a excitação, principalmente ao nivel do deltóide, do quadriceps crural e dos glúteos. Os fascículos conservam, por alguns segundos, a impressão determinada pela percussão, evidenciando dessa forma, a lentidão da descontração muscular. Miodema presente em vários grupos musculares. Os movimentos voluntários apresentam-se nitidamente prejudicados apenas nas extremidades dos membros. Membros inferiores: muito restritos os movimentos de extensão dos dedos, bem como o da flexão dorsal dos pés, principalmente à direita. Em consequência, pés caidos, positividade da prova de Pitres e marcha escarvante. Os movimentos de flexão dos dedos, extensão dos pés, flexão e extensão das pernas e coxas realizam-se relativamente bem. A força muscular, praticamente abolida nos flexores dos pés, encontra-se um tanto diminuída nos extensores dos pés e flexores das pernas. A diminuição é menos pronunciada nos extensores das pernas. Manobra de Mingazzini negativa. A manobra de Barré demonstra ligeiríssimo desnivelamento da perna esquerda. Membros superiores: os movimentos voluntários realizam-se de maneira praticamente normal, porém a força muscular dos flexores da mão e do antebraço apresenta-se bem diminuida. Menos pronunciada é a diminuição da força dos extensores dos antebraços. Manobra de Raimiste negativa. Os movimentos ativos são perfeitamente coordenados : as provas index-index, index-nariz e calcanhar-joelho executam-se corretamente. Nítida hipotonia muscular, tanto nos membros superiores como nos inferiores. Pés e mãos balouçantes. Marcha de caráter francamente escarvante. Sensibilidades normais. Reflexos: Não foram obtidos, em ambos os lados, os reflexos médio-plantar, aquileu, patelar, condilo-femural, estilo-radial, cúbito-pronador, bicipital, tricipital e olecraniano. Médio-púbico : resposta superior presente e inferior ausente. Mentoneiro presente. Oro-orbicular algo vivo. Nasopalpebral, normal. Cutâneo-plantar em flexão de ambos os lados. Negativas as manobras de Gordon, Schaeffer e Oppenheim. Ausentes os sinais de Mendel-Bechterew e Rossolimo. Cremastéricos, superficiais e profundos, pouco evidentes. Abdominais nítidos, especialmente os superiores. Reflexos pupilares normais. Não há clono nem trepidações. Negativas as manobras reveladoras de automatismo.

Exame endoermológico: Acentuada hipotrofia testicular. Caracteres sexuais secundários normalmente desenvolvidos.

Exames complementares: Exame elétrico: "Conclusões: Face - Síndrome elétrica de degeneração parcial apenas nos músculos frontal, supraciliar e orbicular das pálpebras. Cintura escapular e membro superior direito - Síndrome elétrica de degeneração parcial nos músculos triceps, longo supinador, grande palmar e nos músculos próprios da mão. Síndrome elétrica de degeneração fibrilar (R. F.) nos músculos deltoide e biceps. Síndrome elétrica de degeneração parcial nos músculos infra-espinhoso e romboide. Cintura pélvica e membro inferior direito - Síndrome elétrica de degeneração parcial nos músculos extensor comum dos artelhos, longo peroneiro lateral e gêmeos. Síndrome elétrica de degeneração completa nos músculos tibial anterior e extensor próprio do grande artelho. Síndrome elétrica de degeneração fibrilar nos músculos vasto-externo, vasto-interno, adutor da coxa e biceps. Síndrome elétrica de degeneração fibrilar (R. F.) no músculo grande oblíquo" (C. V. Savoy). Reação de Wassermann no sangue negativa.

DIAGNÓSTICO

Nos três irmãos, a moléstia iniciou-se entre os 25 e 30 anos de idade, sorrateiramente, por fraqueza muscular, principalmente nos membros inferiores, que se fazia notar sobretudo por ocasião da marcha. Gradualmente, o déficit motor foi se tornando mais pronunciado, evidenciando-se, ao mesmo tempo, amiotrofias nos segmentos afetados. O exame somático revelou que o quadro clínico observado é, essencialmente, o mesmo nos 3 irmãos, nele se destacando, sob o ponto de vista neurológico, a existência de atrofias musculares e, sob o ponto de vista endócrino, hipotrofia testicular.

O fáto de se apresentarem aliados a atrofia muscular e o caráter familial obriga-nos a discutir, entre as hipóteses diagnósticas mais sugestivas, principalmente as miopatias e a amiotrofia tipo Charcot-Marie-Tooth, já que os demais tipos de atrofias musculares familiais (amiotrofia Werdnig-Hoffmann, neurite intersticial hipertrófica de Déjerine-Sottas, etc.) são prontamente afastados, por isso que apresentam uma sintomatologia bem diversa da observada em nossos pacientes. Entretanto, também o diagnóstico de amiotrofia protopática (miopatia), em favor do qual falariam o caráter familial da doença e, talvez, uma pseudo-hipertrofia de certos grupos musculares, pode ser rejeitado, em virtude da distribuição topográfica das amiotrofias, da presença e mesmo exaltação dos reflexos ídio-musculares, da existência de tremores fibrilares e das alterações elétricas evidenciadas. Da mesma forma, o diagnóstico de amiotrofia peroneal tipo Charcot-Marie-Tooth - o qual contaria em seu favor, além do caráter familial da afecção, o modo de distribuição das amiotrofias que, nos membros, recordam, até certo ponto, o tipo da atrofia "en jarretière" - pode ser seguramente afastado, em vista da participação da musculatura do tronco e face e devido ainda à ausência de desordens sensitivas.

Cumpre assinalar, por outro lado, que em nossos pacientes se manifestam sintomas muito particulares - distróficos, glandulares e miotônicos - os quais, associados às características especiais que apresentam as atrofias musculares, impõem um único diagnóstico: Distrofia Miotônica.

Com efeito, a Distrofia Miotônica (Curschmann), Miotonia Atrófica (Rossolimo) ou Moléstia de Steinen é uma afecção familial que se inicia geralmente entre os 20 e 30 anos de idade e que apresenta, entre suas manifestações mais típicas, as seguintes: a) atrofia muscular que recorda, por alguns de seus atributos, as do tipo miopático. A sua distribuição é particularmente característica, afetando predominantemente certos grupos musculares: na face, os músculos cuticulares (especialmente o orbicular das pálpebras), os temporais e os masseteres; no pescoço, o esterno-cleido-mastoideo; nos membros superiores, o longo supinador e os músculos da mão; nos membros inferiores, o quadriceps e os músculos dorsi-flexores dos pés; b) fenômenos miotônicos, caracterizados essencialmente pela descontração muscular lenta; a miotonia ativa e a miotonia reacional (mecânica e elétrica) são habitualmente observadas. A percussão das massas musculares determina, em tais casos, no ponto estimulado, a formação de um sulco que se conserva nítido durante alguns segundos (fenômeno nunca observado no indivíduo normal e nos outros tipos de amiotrofia). O exame elétrico revela geralmente a clássica reação miotônica de Erb (nachdauer), evidenciando ainda, na maioria das vezes, a reação galvanotônica (Huet e Bourguignon); c) fenômenos distróficos, que constituem manifestações básicas do quadro clínico da moléstia; seriam mesmo, segundo Curschmann2 2 Curshmann-Krammer - Tratado de las enfermedades dei Sistema Nervioso. Ed. Labor, Barcelona, 1932, pgs. 334-337. , os de maior importância, donde o nome de distrofia miotônica, proposto por esse autor. Destas distrofias, as principais são: catarata (que se reveste de caracteres muito especiais, perceptíveis geralmente apenas à lâmpada de fenda), atrofia testicular, calvície frontal, queda dos dentes, fragilidade óssea; d) distúrbios neuro-vegetativos (acrocianóse; hipersecreção, especialmente lacrimal), comprometimento de funções psíquicas, etc.3 3 Leia-se, a propósito do assunto, o trabalho de Genival Londres (ao que sabemos a primeira e única publicação sobre a referida moléstia na literatura brasileira): Da Miotonia Atrofica. Jornal dos Clínicos (Rio de Janeiro) 18 nº s 13 a 17 - 1937. Nesse trabalho, o autor apresenta minuciosa observação anátomo-clínica de um caso cuja evolução acompanhou e no qual o exame histo-patológico do coração foi praticado, pela primeira vez, na moléstia de Steinert.

Acreditamos, pelo exposto, que o diagnóstico de Miotonia Atrófica, nos casos por nós estudados, acha-se plenamente justificado. Estão, com efeito, presentes em nossas observações: a) amiotrofias, que comprometem os músculos predominantemente afetados na miotomia atrófica (músculos da face, esterno-cleido-mastoideo, longo supinador, pequenos músculos das mãos e flexores dorsais dos pés) ; b) fenômenos miotônicos : persistência do sulco muscular fascicular, determinado pelo martelo percussor; lentidão da descontração muscular, bem comprovada pelos gráficos da fig. 4 (a descontração processando-se entre 4 e 10 segundos aproximadamente) ; miotonia ativa (isto é, surgindo após um movimento voluntário), referida pelo doente da observação I, e precedendo, ao que parece, as amiotrofias; reação galvanotônica nítida, especialmente nos músculos faciais comprometidos (a clássica reação miotônica, não foi, todavia, evidenciada, quer pelo excitante galvânico, quer farádico); c) atrofia testicular, esterilidade e azoospermia; catarata, hipersecreção lacrimal, acrocianóse e viscosidade mental (bradipsiquía).

Convem, desta ultima serie de desordens, destacar o importante papel desempenhado pela catarata no tocante ao diagnóstico da moléstia, em virtude dos atributos muito especiais de que é dotada. Vejamos, nos casos que estudámos, as informações trazidas pelo exame do cristalino, realizado pelo Dr. Mendonça de Barros, à lâmpada de fenda: "O exame do cristalino mostrou em ambos os olhos, ao corte óptico, a existência de um fino pontilhado branco, localizado tanto na cortex anterior como na posterior, mais evidente nesta que naquela, e mais numeroso na porção que se avizinha do equador da lente do que em seu polo. De permeio, situados bem superficialmente, logo abaixo da linha sub-capsular, tanto adiante como atrás, notam-se formações de aspecto irregular, alongadas umas, mais ou menos esféricas outras, refletindo intensamente à luz e exibindo cor intensamente verde umas (as mais numerosas) e purpura outras, tendendo para o vermelho (cristais). Não existem alterações nas demais camadas do cristalino. Este quadro biomicroscópico é dado como patognomônico da Distrofia Miotônica. As alterações do cristalino referidas são mais acentuadas nos doentes das observações II e III, onde os cristais são mais numerosos e a alteração é predominante ou, pelo menos, existe em proporção acentuada nos polos da lente, particularmente no polo posterior".

COMENTÁRIOS

Uma vez justificado o diagnóstico de Distrofia Miotônica, desejamos destacar, nos casos que estudámos, alguns pontos dignos de maior reparo.

Assim, a propósito das atrofias musculares, lembraremos que são bem mais pronunciadas e extensas no doente da observação III (amiotrofia universal) do que na observação I; na observação II são discretíssimas, esboçando-se apenas na face, em certos músculos do dorso e na perna direita. Esta variedade no grau das amiotrofias, observada em três irmãos portadores, indiscutivelmente, da mesma doença, documenta bem o fato, assinalado por vários autores, da possibilidade de ocorrerem, na moléstia de Steinert, aspectos os mais diversos, desde aqueles com atrofia muscular generalizada até formas praticamente destituidas de amiotrofias (miotonia atrófica sem atrofia).

O eletrodiagnóstico mostrou ainda a existência de nítidas alterações da excitabilidade elétrica em músculos aparentemente íntegros (biceps, triceps, vastos externo e interno, adutores das coxas, etc.) e confirmou a predominância dos distúrbios ao nível dos segmentos distais dos membros, especialmente dos inferiores ; ficou, entretanto, também perfeitamente comprovada a participação de alguns músculos do tronco e da cintura escapular, tais como os músculos deltóide, rombóide, infra-espinhoso, grande oblíquo do abdomen, músculos esses que se encontram poupados nas formas habituais da moléstia. Constituem esses fatos mais uma demonstração de que toda a musculatura esquelética pode ser comprometida na distrofia miotônica, embora não se deva desprezar a noção da preferência do processo amiotrófico para determinados músculos. É ainda interessante salientar, para o lado da face, o comprometimento eletivo, apenas de alguns dos músculos subordinados ao facial, nas observações I e III : assim, na observação I, alterações elétricas foram evidenciadas somente nos músculos frontal e supraciliar e, na observação III, nos músculos frontal, supraciliar e orbicular das pálpebras. Já na observação II, a síndrome elétrica de degeneração parcial foi encontrada em todos os músculos dependentes do nervo facial (excetuando-se os músculos bucinador e cuticular do pescoço), como nos inervados pelo trigêmeo (masseter e temporal).

Quanto aos fenômenos miotônicos, frizamos a importância do comportamento singular de certos fascículos musculares à percussão, notando-se, por alguns segundos, a persistência de um sulco no ponto estimulado, traduzindo esse fenômeno a lentidão da descontração muscular, tão propria da miotonia. É curioso, entretanto, o fato de o excitante elétrico, ao contrário do que se poderia esperar, não haver determinado, em nossos casos, a mesma resposta que a obtida pelo excitante mecânico, isto é, a referida persistência do sulco post-reacional.

A particularidade mais importante dos casos apresentados reside porém, a nosso ver, nas pronunciadas alterações da excitabilidade neuro-muscular verificadas. Como vimos, são muitas as semelhanças existentes, nos 3 casos, na maneira pela qual os músculos reagiram ao excitante elétrico, observando-se, quasi sempre, nos mesmos grupos musculares, uma contração lenta e a denominada reação fibrilar4 4 Savoy, C. V. e Khoury, M. E. B. - Particularidades e valor do exame elétrico nas afecçôes do corno anterior da medula. Reação fibrilar. Arquivos de Neuro-Psiquiatria (S. Paulo) neste mesmo número. . Além disto, alterações da fórmula polar (igualdade e inversão polar, hipoexcitabilidade) foram registadas em alguns músculos. Tais elementos, associados ao fato de existirem nítidas contrações fibrilares, fasciculações e mioedema em diversos músculos, parecem indicar o comprometimento das células da coluna ventral da medula ; tratar-se-ia, por conseguinte, de um processo nuclear. Este comprometimento, aliás, não seria totalmente de extranhar na miotonia atrófica, visto como a participação dos neurônios motores periféricos já foi assinalada em alguns casos anátomo-clínicos da moléstia, sendo, por exemplo, muito nítida na observação de Hitzemberger e na de Guillain, Bertrand e Souques; na de Steinert e de Bramwell, as mencionadas lesões eram muito discretas5 5 Cit. por Guillain, G., Bertrand, I., Souques, L. - Les lésions de la myotonie atrophique. Annales de Médecine, 31:180 (1932). . No caso estudado por Genival Londres (3) o comprometimento das células dos cornos anteriores também foi evidenciado, consistindo em atrofia de algumas células e hipercromatóse de outras. Convém recordar, porém, que as observações anátomo-clínicas de distrofia miotônica são ainda em pequeno número (Guillain reuniu apenas 9 até o ano de 1932) e que o significado das lesões nervosas verificadas, por uns e outros autores, variadas e discordantes, prestam-se a dúvidas e discussões.

Da mesma forma, os dados fornecidos pelo exame histológico dos músculos afetados são também precários, não permitindo decidir a influência das eventuais lesões do sistema nervoso periférico. Em dois de nossos pacientes (Observações I e II) a biópsia de músculos comprometidos (vasto externo e tibial anterior) foi praticada e o material examinado pelo Dr. Paulo Tibiriçá (Departamento de Anatomia Patológica da Fac. Medicina). Os resultados foram os seguintes: Nicola L. (Obs. I) - Algumas fibras musculares apresentam desintegração do sarcoplasma em blocos irregulares, granulósos (Fig. 5). Outras apresentam proliferação dos núcleos, formando séries e acúmulos. O tecido conjuntivo do perimisio interno está proliferado e contém células e ilhotas de células gordurosas. Diagnóstico: Miodistrofia miopática. - Vicente L. (Obs. II) - Muitas fibras musculares estão adelgaçadas. As mais adelgaçadas apresentam proliferação dos núcleos, de modo que ao desaparecerem finalmente os elementos contrácteis, encontramos o sarcolema cheio de núcleos (Fig. 6). Em outros pontos, sarcoplasma e fibrilas formam blocos compactos, separados uns dos outros e sem estrutura. Aqui e ali o perimisio apresenta ilhotas de tecido gorduroso. Diagnóstico : Miodistrofia.



Em virtude da precariedade dos conhecimentos anátomo-patológicos e etiopatogênicos da afecção em apreço, é assim perfeitamente justificável a dificuldade em que nos encontramos para a exata interpretação das desordens elétricas observadas em nossos pacientes. Si admitirmos como real a existência de lesões nas pontas anteriores da medula, poderíamos ainda perguntar si seriam tais lesões primitivas ou secundárias ao processo amiotrófico. Inclinamo-nos mais para esta segunda hipótese, que consideraria as mencionadas lesões apenas como uma consequência das pronunciadas e indiscutíveis alterações musculares.

CONCLUSÕES

A propósito dos três casos estudados, as seguintes conclusões podem ser estabelecidas:

1) Está presente, nos três irmãos, a síndrome completa, neuroglandular e simpática, da Distrofia Miotônica, impondo-se, por conseguinte, este diagnóstico;

2) o início da moléstia processou-se entre os 20 e 30 anos de idade, de maneira lenta e progressiva, por sensação de fraqueza muscular. Apenas na Obs. I, há referência a fenômenos miotônicos ativos iniciais;

3) observou-se uma diversidade no gráo e na distribuição das atrofias musculares, as quais são mais intensas e extensas em José L. (Obs. III) do que em Nicola L. (Obs. I) e discretas e restritas a poucos músculos em Vicente L. (Obs. II) ;

4) o exame elétrico comprovou, nos 3 casos, a participação de alguns músculos do tórax e do abdomen, o que é de rara observação na moléstia em apreço;

5) os fenômenos miotônicos manifestaram-se, nas 3 observações, pela produção, ao nível das massas musculares percutidas, de um sulco, que se conservava durante alguns segundos. Fenômenos miotônicos ativos, discretos, foram, observados ao nível dos masseteres, no doente da Obs. II e referidas, pelo paciente da Observação I, nos músculos das mãos;

6) os fenômenos amiotróficos predominam francamente sobre os miotônicos nas observações I e III. Na observação II, as amiotrofias são restritas e os fenômenos miotônicos também relativamente discretos;

7) uma diminuição pronunciada da energia contrátil foi verificada em músculos que se achavam relativamente pouco atrofiados, evidenciando este fato desproporção entre o gráo de certas amiotrofias e o deficit da força muscular;

8) contrações fibrilares foram observadas nos três pacientes (especialmente nos músculos da cintura escapular), fenômeno inhabitual na distrofia miotônica;

9) alterações elétricas importantes, análogas às observadas nas lesões do neurônio motor periférico, foram evidenciadas em numerosos músculos: contração lenta, reação fibrilar, alterações da fórmula polar, hipoexcitabilidade. A reação galvanotônica foi também observada, enquanto que a clássica reação miotônica (Erb) em nenhum caso ficou patente ;

10) fenômenos distróficos e glandulares (catarata, atrofia testicular com azoospermia e diminuição da libido) estavam presentes nos três irmãos;

11) os exames de laboratório realizados nenhuma informação realmente importante trouxeram à interpretação dos distúrbios observados. Outros exames, além dos mencionados neste trabalho, estão sendo praticados e seus resultados serão apreciados em publicação ulterior. Para a sua realização contamos com o valioso concurso do Dr. Ciro Camargo Nogueira, do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina. Pretendemos então considerar, ainda, os problemas etiopatogênicos da moléstia e a possivel influência terapêutica do Propionato de Testosterona e da Vitamina E nos casos que constituíram objeto do presente estudo.

Trabalho apresentado na Associação Paulista de Medicina, em 5 de Maio de 1943

  • 2 Curshmann-Krammer - Tratado de las enfermedades dei Sistema Nervioso. Ed. Labor, Barcelona, 1932, pgs. 334-337.
  • 4 Savoy, C. V. e Khoury, M. E. B. - Particularidades e valor do exame elétrico nas afecçôes do corno anterior da medula. Reação fibrilar. Arquivos de Neuro-Psiquiatria (S. Paulo) neste mesmo número.
  • 5 Cit. por Guillain, G., Bertrand, I., Souques, L. - Les lésions de la myotonie atrophique. Annales de Médecine, 31:180 (1932).
  • 1
    Deixamos aqui consignados os nossos agradecimentos aos Drs. João Alves Meira e Luiz V. Décourt, por nos haverem permitido o estudo e a publicação deste caso.
  • 2
    Curshmann-Krammer - Tratado de las enfermedades dei Sistema Nervioso. Ed. Labor, Barcelona, 1932, pgs. 334-337.
  • 3
    Leia-se, a propósito do assunto, o trabalho de Genival Londres (ao que sabemos a primeira e única publicação sobre a referida moléstia na literatura brasileira): Da Miotonia Atrofica. Jornal dos Clínicos (Rio de Janeiro) 18 nº
    s 13 a 17 - 1937. Nesse trabalho, o autor apresenta minuciosa observação anátomo-clínica de um caso cuja evolução acompanhou e no qual o exame histo-patológico do coração foi praticado, pela primeira vez, na moléstia de Steinert.
  • 4
    Savoy, C. V. e Khoury, M. E. B. - Particularidades e valor do exame elétrico nas afecçôes do corno anterior da medula. Reação fibrilar. Arquivos de Neuro-Psiquiatria (S. Paulo) neste mesmo número.
  • 5
    Cit. por Guillain, G., Bertrand, I., Souques, L. - Les lésions de la myotonie atrophique. Annales de Médecine, 31:180 (1932).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Mar 2015
    • Data do Fascículo
      Set 1943
    Academia Brasileira de Neurologia - ABNEURO R. Vergueiro, 1353 sl.1404 - Ed. Top Towers Offices Torre Norte, 04101-000 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 5084-9463 | +55 11 5083-3876 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista.arquivos@abneuro.org